O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA TUA VIDA: BEBE-SE A CORAGEM ATÉ D’UM COPO VAZIO
 
 
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À memória do Prof. Stephen R. Stoer, com saudades!

Por Leont Etiel
 
Após fazer o percurso dos Caminhos Românticos do Porto, e embebido pela consigna surrealista de Breton segundo a qual não devemos carregar os nossos pensamentos com o peso dos nossos sapatos, Ravi Sharma dirigiu-se à Rotunda da Boavista e, de chofre, foi tomado pela ideia do primeiro dia do resto de uma vida.
Em palavras mais precisas: hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. Sucedeu à mente de Ravi uma sensação tal qual ela fosse sendo absorvida por ondas sonoras que diziam: A princípio é simples, anda-se sozinho; passa-se nas ruas bem devagarinho; está-se bem no silêncio ou no burburinho; bebe-se as certezas num copo de vinho. Sonidos ao modo do tempo dos físicos, sentenciou o raciocínio de Ravi, para, em seguida, descobrir que não era bem assim, à medida que avançava passos deambulando pela Avenida da Boavista, no sentido Bessa Leite, pois as ondas sonoras voltaram a soar: Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo; dá-se a volta ao medo e dá-se a volta ao mundo; diz-se do passado, que está moribundo; bebe-se o alento num copo sem fundo.
Se sonido ao modo do tempo dos físicos fosse, imaginou o transeunte, ele, o tempo, aprisionado ao t que o categoriza, não remeteria ao sentimento de devir contínuo, incidindo sobre questões do início e do fim do tempo individual, que é o mesmo que dizer existência. Quer dizer, não remeteria às relações entre o sentimento de duração, a dinâmica da natureza e o tempo objetivo que cada um terá. Isso ficou ainda mais perceptível quando, novamente, as ondas sonoras voltaram: Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja; olha pra dentro e já pouco sobeja; pede-se descanso, por pouco que seja; enfim duma escolha faz-se um desafio; enfrenta-se a vida de fio a pavio; navega-se sem mar, sem vela ou navio; bebe-se a coragem até d’um copo vazio.
A essa altura, já metido no autocarro em direção à Foz do Douro, Ravi Sharma desceu na paragem à beira do Homem do Leme. Ali se pôs a pensar que é plausível considerar que a noção de espaço tenha sido percebida pelo ser humano antes da de tempo. É revelador, conjecturou, que os idiomas mais antigos que nos deixaram documentos, como o sumério e o egípcio, tendiam a especializar o tempo. Rememorou que o egípcio demorou até mesmo a desenvolver um sistema verbal baseado na ideia de tempo, dado que, em princípio, predominava a noção de “aspecto verbal” que distinguia o perfectivo (acções completas), o imperfectivo (acções em acto ou acções reiteradas) e o prospectivo (acções suscetíveis de ocorrer). Assim, Ravi se deu conta que, em português, se utiliza um vocabulário espacial para qualificar o tempo: curto ou longo.
E foram esses pensamentos espaciais que o levaram a observar o espaço da esplanada do Homem do Leme, onde pode ver que o sonido que lhe acompanhava era cantado em música, sob um cartaz que dizia: Tributo a Sérgio Godinho. As últimas ondas sonoras chegaram a Ravi despedindo-se, como se quisessem dizer que, de facto, não vale a pena carregar os nossos pensamentos com o peso dos nossos sapatos: Nasce um novo dia e no braço outra asa; brinda-se os amores com o vinho da casa; vem-nos à memória uma frase batida; hoje é o primeiro dia do resto da tua vida. 

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Sérgio Godinho, O Primeiro Dia: https://www.youtube.com/watch?v=E2nmshUNGzQ