RATOEIRA

“O rato roeu a mente do Rei. Fui...” Numa virada de olhos e em interpretação puramente gramatical, nada havia de excepcional na consonância da frase modificada de O Rato Roeu a Roupa do Rei de Roma, realçando a repetição do som do R no início das palavras. Mas, na frase escrita com giz vermelho na pequena lousa destinada às anotações das tarefas diárias nada era insignificante. E com aquela cor então! De significantes e significados assim como o inferno, a superfície da lousa feita de fina camada de ardósia escura estava cheia, senão cheíssima como superlativamente diria José Dias no humor machadiano...

Apesar dos significantes implícitos, não havia dúvida de que alguém se servira do ditado popular para atribuir a outrem a pecha de louco, presente na locução roeu a mente que se inscrevia entre O rato e do Rei... Havia algo entre o rato e o rei, não se podia desprezar a assertiva e nem as reticências... E não há nada de mais perigoso do que as reticências... O que se esconderá entre um espaço e outro dos pontinhos intermitentes? O coração interrompe a sístole enquanto a diástole bate freneticamente deixando a vida em suspenso, em reticências, pois como dizia Quintana elas são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho...

O que alguém pretendera, deixando a vida em suspenso com aqueles três pontinhos infernais? Pergunta simples... Cuidado com a aparente simplicidade das perguntas, afinal, a genialidade das pessoas está em que elas fazem perguntas simples, inocentes, que vem a ter respostas com efeitos enormes sobre a sociedade e os indivíduos. Acho que foi Jacob Bronwski o autor da frase referindo-se a Newton e Einstein descobridores da atordoante visão da complexidade do mundo físico...

Semelhante à história da física, quem deixou a vida em suspenso com os infernais três pontinhos deve ficar pra depois, por enquanto vamos nos preocupar com o que roera a mente do rei, deixando-a parecida com um pedaço de queijo furado. E procurar saber quem era o rato poderoso capaz de roer a mente de alguém e quais as circunstâncias que fizeram com que a mente fosse corroída e por fim que rei é esse...

A chave do mistério que ficara enterrada alguns minutos na mente confusa passava pelo buraco da fechadura dos verdadeiros sentidos de cada um dos elementos da frase. E desvendar quem era quem passou a ser o exercício intelectual da madrugada fria...

O alguém, além do rei, era a figura mais conhecida de todas as criaturas aludidas na frase. Tratava-se da consorte do monarca, majestade do outro trava língua a Rainha Raivosa Resolveu Remendar. Com certeza Sua Majestade resolvera remendar o ditado para poder provocar o Rei. Desta forma, o alguém perdera de imediato a coroa da indeterminação por ter nome e endereço certos, embora àquela hora da madrugada, já quase manhã, estivesse longe de seus aposentos e não se soubesse aonde recebia homenagens...

Rei, não se referia ao monarca do trava língua. Referia-se a alguém cujo nome se iniciava com Rei, certamente um apelido. O Rei não era, é a voz do conto. Um rei de faz de conta, mas rei que já tivera reinado deslumbrante em noites orgásticas de folia embora hoje rumoreje a queda monástica na frustração de uma aposentadoria não desejada, por não ter sido planejada. O Rei de hoje era epíteto que servia para resumir a casmurrice de andar empertigado como se fosse um rei, embora molambudo, sempre servido do mesmo terno surrado que o levara incontáveis vezes ao fórum e à tribuna do tribunal do júri, de onde algumas vezes saíra ovacionado...

Perdera o trono da fama e o respeito dos súditos ao resolver defenestrar a velha rainha e elevar ao trono uma estagiária peituda, trinta anos mais jovem. A rainha velha que era uma feiticeira e que deveria ter queimado na fogueira antes que as chamas da raiva arrefecessem e um jovem advogado que parece que advogara outras causas no interesse dos dois, com petições alcovais e requerimentos de travesseiros, acabaram com o reinado. O rei perdera a majestade, ficando apenas com o título de Rei, um diminutivo do nome próprio do qual nem mais se lembrava já que desde menino ostentara garbosamente o titulo de rei... Apesar do fracasso, era preciso seguir adiante, afinal, "A vida é uma sucessiva sucessão de sucessões que se sucedem sucessivamente, sem suceder o sucesso..."

O rato, por sua vez, e numa interpretação além da gramatical, teria duas conotações. O roedor de quatro patas que vivia a ratazanar a vida da voz do conto e o de duas patas que caíra na preferência da Rainha que sumira, escafedera-se em ataque de raiva, após ter sido humilhada com a comparação ao roedor que aos olhos do Rei circulava livremente pelo pequeno e desarrumado apartamento localizado em um bairro periférico de pessoas de baixa renda, mas que longe no tempo já fora o castelo da monarquia sentimental dos dois...

O roedor de quatro patas para a rainha não passava de fruto da imaginação de alguém em idade avançada e que se comportava como um velho senil, inventando coisas para atormentar Sua Majestade com ciúmes e insegurança, por ela ser bem mais jovem do que ele. Nesse ninho de mafagafos, havia quatro quadros três e três quadros quatro cheios de, senão mafagafinhos, e um ratão mais interessado em arranhar a aranha de rã do que em queijo. Mulher de cego, se é direita, não se enfeita e a mulher de rei não o enfeita, sem causar desfeita... O roedor de duas patas, rato no sentido de quem rouba, poderia ser quem, àquela quase manhã, conferia os predicados da aranha e da rã no vaso monárquico da bela Rainha. Talvez no Castelinho, um motel de segunda localizado além da via férrea...

O único elemento indecifrável da enigmática frase depois das reticências era o fui seguido dos três pontinhos... Talvez os três pontos estivessem no lugar de três palavras: Não dá, fui... E mais! Se a frase terminasse com um ponto final ou mesmo uma exclamação, vá lá, talvez o coração ficasse mais aliviado e a mente não pensasse em chifres como os da vaca malhada que foi molhada por outra vaca molhada e malhada... Era. Os três pontinhos intrigavam... Reticência gramaticalmente não é verbo, é pontuação a indicar a omissão de algo que poderia ter sido dito, mas se fosse, “reticenciar” poderia ser catalogado no grupo das ações que geravam um estado de pavor e um fenômeno a situar a mente entre o colapso e a loucura. Afinal representava algo que não foi dito por inteiro, cabendo ao interlocutor insinuar, segundo seus critérios...

A bela Rainha já abandonara o palácio inúmeras vezes, mas sempre passada a zanga voltara ao trono e nunca se ausentara por uma noite inteira, embora sumisse eventualmente, supondo que o Rei se demorasse em algum compromisso real, geralmente, as curtas viagens que levavam ao sítio, lugar que a Rainha passou a detestar, a partir de certo momento, preferindo a solidão da cidade...

Foi na vez em que o Rei teve de voltar às pressas para pegar a chave da carruagem, um velho e clássico automóvel dos anos sessenta, esquecida sobre a bancada da cozinha que a dúvida se instalara em sua mente e o roedor aparecera pela primeira vez... E o mais incrível era ele aparecer sempre estando a Rainha fora de casa, razão de ela afirmar ser o animal invencionice, coisa de mente roída...

O rato, uma rata, uma catita ou uma ratazana o que pertencesse à ordem dos roedores, era real, não da realeza do Rei, mas da realidade física e fática e tanto assim que lhe dera mais um ânimo na vida tão parada. Tornara-o Rei um colecionador de ratoeiras. De rei da tribuna passara a Rei das Ratoeiras, monarca de um arsenal de iscas envenenadas... E nenhuma armadilha instalada prestava, cada qual pior do que a outra.

Nunca conseguira pegar o danado do roedor, nesse tópico, a rata, que até nome tinha: Esperança. Por todas as santas coincidências o nome era igual ao de Sua Majestade a Rainha. Uma saía às escondidas quando o Rei se tornava invisível a outra aparecia quando o Rei nu de razão aparecia em casa... E, assim, as duas nunca se encontravam...

Como as duas davam ao Rei tamanhas preocupações, ele em sua sabedoria real as considerava de caráter igual à esperança que ruminava sob os muitos demônios que Pandora guardava em sua caixa de pesadelos... . O apartamento em sua miséria deixara de ser refúgio de amantes para se transformar na enorme e pesada Caixa de Pandora da qual até a esperança escapava sem, todavia trazer a felicidade esperada... A esperança da caia não fora bastante para sufocar todas as maldades liberadas...

Às vezes, duvidava se se tratava de um elemento só, ou se vinha visitá-lo em companhia de outro roedor mais esperto a vir roer não as roupas do rei, mas a paciência real encharcada de despeito e de ciúmes. Tornado especialista em roedores sabia de cor e salteado que as ratazanas jovens tinham o costume de cruzar com vários parceiros... A desconfiança tornara a casa estufada de ratoeiras e iscas. “Dia desses, quem sabe, ainda pego um...” Não se sabe se o Rei evitava pegá-la de propósito, pois na ausência da Rainha ficava a confidenciar suas lamúrias. “Por que ela não é igual a você, fiel a nunca abandonar o lar, todas as noites?”...

Tudo o que embriagasse fora ingerido naquele lento passar das horas, com a chuva fina estalando no vidro da varanda e janelas, até que surgiram as primeiras luzes do dia. Furtivamente a manhã adentrava as órbitas avermelhadas dos olhos cegos de embriaguez, transpondo a porta que se abrira vagarosamente, expondo a figura esguia da rainha. Um estalido, dois estalidos seguidos em tom acima do das tramelas de qualquer uma das ratoeiras foram ouvidos, até pela vizinhança...

Os telejornais contaram que o rei sucumbira à loucura. Um vizinho que testemunhara o fato e chegara por primeiro ao cenário do duplo homicídio, dissera a um repórter ter ouvido, logo após o primeiro estampido, a voz do Rei. “Eu não disse que um dia te pegava ratazana?” e “Chega aqui Esperança e diga agora que é coisa da minha mente”... E um segundo estampido abalou a manhã... A mente do rei que criara sua própria ratoeira, uma imensa caixa de Pandora de onde saíram a desconfiança, a dúvida, o ciúme que a esperança não pode superar, explodira confundindo a sala inteira com a cor vermelha do giz da lousa...