A PRIMEIRA NOITE

O Barão William de Abetot, Senhor de propriedades estendidas por milhares de feudos ao redor do mundo conhecido, se impacientava

diante do vassalo a pintar pacientemente seu retrato. Não conseguia dissimular o mau-humor, após permanecer imóvel o tempo em que o

artista esboçava em tela seu anguloso perfil.

- Não fico mais um segundinho só nessa posição. Basta! Você hoje agiu de propósito.

Como pode? Até salpicou tintas em meu traje novo. Suma de minha vista. Céus! Como posso aceitar tanto desmazelo sendo Senhor! Eu devia ser tirano e furioso como o Barão de Doistar.

Com passos apressados e abanando as aparas da vestimenta de seda, atravessou o salão em visível descontrole, refugiando-se nas galerias

abertas nas grossas paredes do castelo. Lucano, o retratista, cuja arte o tornara predileto do Senhor, permanecera impassível a recolher os

apetrechos de pintura. Acostumara-se aos constantes ataques de histeria. Conhecia-o muito bem para saber que a imobilidade pouco o

contrariava. Apreciava seu talento e chegara a confessar a excitação sentida ao vê-lo imprimindo traços delicados com os longos pincéis, rascunhando as formas de seu corpo.

Ademais, nesses tempos de transformações e conquistas, um Senhor tinha muitas preocupações, artigo farto no Condado de Abetot. A primeira encrenca arranjara ao construir uma ponte, ligando duas veredas malconservadas, sem cobrar dos transeuntes – principalmente dos comerciantes - o pedágio devido. Isso bastou para enfurecer o Barão de Doistar. O irascível vizinho temia a ocorrência de sublevações em seus domínios, se a prática se incorporasse aos costumes da região. Além dos transtornos para conter o levante, deixaria de auferir as rendas com a cobrança das taxas de passagens. Prometera vingança e e reparava-se para mais uma das constantes guerras mantidas

contra os vizinhos. Por motivo qualquer, Sir Doistar alimentava rixas e logo as transformava em sangrentos conflitos. Porém, mais do que a

glória dos campos de batalha, empregava a força das espadas contra os desafetos para usurpar-lhes as propriedades.

Como todos os homens de fortuna da época, o Barão Vitimador, alcunha de Doistar, acostumara-se aos torneios bélicos, lutando pela posse da terra, única fonte de poder e medida de riqueza, capaz de produzir todas as mercadorias de então.

Sendo ele arraigado no costume milenar, um andarilho que quisesse vencer as distâncias, arrastando-se entre as propriedades, sujeitava-se

às exigências dos senhores. A aventura de cruzar as poucas e maltratadas trilhas escavadas nas florestas para lazer ou comerciar artigos transportados no lombo de animais ou em toscas carroças custava o preço de pesadas multas e taxas. O tributo, diziam os senhores, servia para alimentar a milícia pública que protegia as

estradas do ataque de salteadores que infestavam todo o reino. A proteção contudo não passava de ilusão. O mais das vezes, os quadrilheiros prestavam serviços aos senhores das terras por onde as estradas toscas e lamacentas se estendiam e assim ganhavam duplamente com as taxas e com a pilhagem das mercadorias.

Os boatos fervilhavam nas tavernas e consideravam a batalha inevitável.

O Vitimador caçava homens sãos e disponíveis por todas as aldeias. Preparava mais uma conquista e ao senhorio de Lucano, restava a infâmia da derrota. A luta apregoada contra o indulto da travessia era subterfúgio do vizinho mal intencionado. Na realidade, ele queria se apossar das terras arrendadas e mantidas pelo vizinho por concessão direta do Rei. A área de seu interesse, fronteiriça a seu feudo, permanecia em estado de “pousio”. Na agricultura de subsistência da época, praticava-se a suspensão periódica do plantio. Isso servia para revigorar a terra. Estando a cevada e o trigo semeados, a pradaria guardava resguardo, permitindo a formação de campos cobertos com vasta vegetação. Aos não iniciados, parecia ser a gleba tratada com descuido por um despreparado senhor.

O Barão de Doistar, desconsiderando o conceito de repouso, formulara ao principal arrendatário denúncia de terras abandonadas, incultas, abrindo disputa e se qualificando como novo interessado. Sentença real, no entanto, deliberara sobre o despropósito da ação, julgando-a em favor do antigo beneficiário, acirrando os ânimos vingativos do postulante.

Mas não era a guerra o principal motivo das preocupações de Sir Willian. Com exército bem preparado e os celeiros abarrotados de mantimentos, Abetot poderia manter-se, por longo tempo, sob pesado cerco. O nobre se incomodava com as festividades desta noite, concorrida celebração de casamento da condessa de Ely, arrendatária de uma possessão situada

nos confins de sua propriedade.

A princípio, seguindo a tradição, logo após enviuvar e devotando fidelidade eterna ao falecido marido, caprichosamente pagara multa

para não se sujeitar a novas núpcias. E agora, sem motivação aparente, dizendo-se perdidamente apaixonada por um tal Baldwin, noticiado como afilhado encrenqueiro do bispo de Worcester, arcaria com nova taxa para se casar novamente.

O Senhor detestava a viúva e pela tradição lhe pertencia o privilégio de passar a primeira noite com a nubente. À falta de consumação do

coito, o Senhor cairia em vergonha, seria banido do Conselho de Cavaleiros e a prática da sodomia poderia ser apreciada pelo Tribunal do Santo Ofício, palco de horror, onde todos os suspeitos, a priori, eram considerados culpados, tendo os bens expropriados, incorporados ao patrimônio da Igreja e invariavelmente condenados aos flagelos da santa fogueira.

Muitos casamentos ocorreram anteriormente no feudo de Abetot, sem o

concurso do Senhor. Nessas ocasiões, outros se passaram por Sir Willian. Nas alcovas deliberadamente mal iluminadas, as mulheres

sofriam a curra de um dos muitos valetes mantidos secretamente pelo Barão em ala isolada do castelo. Sendo todos jovens e sequiosos pelos

prazeres da carne, logo se alastrou pelo feudo e adjacências a fama de amante impetuoso e insaciável do Senhor. Esse fato motivou muitas

noivas a se interessarem mais pela primeira noite do que pela permanência com os novos companheiros em fétidas e paupérrimas

choupanas. Muitas aldeãs enganadas engravidaram, pensando dar um varão ao Senhor, sonhando que isso lhes possibilitasse algum benefício.

À Condessa de Ely seria impossível enganar! Ela o conhecia bem demais para que o engodo prosperasse. E caso desvendasse seu lado obscuro, poderia denunciá-lo por desvirtuar os cristãos do caminho de Deus e ir abrasar vivo na fogueira da Inquisição.

- Com certeza, a Condessa e o Barão de Doistar estão mancomunados. Eles são amantes, todos sabem, menos o Bispo que se faz de desentendido, por manter também relações pecaminosas com várias mulheres e se locupletar com a venda de relíquias e negociação de

indulgências. O tal Baldwin pode até ser seu filho... resmungava, passeando pelos aposentos e tendo o vassalo Lucano colado a seus passos.

- Meu Senhor, procure não correr riscos desnecessários, pois se o caso for ao conhecimento dos clérigos, o corpo de meu amado nobre vai chamuscar como faisão na fogueira. Replicara o criado, acariciando as

longas madeixas do Barão.

- O tempo urge e providências rápidas são necessárias. Jamais dormirei com aquela víbora. Prefiro ser trespassado pela lança do Barão

Vitimador.

- Ai senhor! Não blasfeme! Até a noite, encontraremos a solução para esse complicado enigma. Enquanto o Barão e seu criado imaginavam a salvação, a Condessa, o Vingador e o futuro cônjuge aperfeiçoavam seu próprio estratagema.

- Barão, dizia a Condessa recostada confortavelmente em uma longa cadeira, logo mais desmascararemos a luxúria em que vivem

os habitantes de Abetot. Profanando o rito sagrado da primeira noite, Sir Willian se tornará indigno e amanhã mesmo o Bispo o denunciará

ao colégio de clérigos. Abetot e todas as propriedades adjacentes nos serão repassadas por documento selado com a cera verde do rei.

- Minha cara, Sir Willian é gazela astuta. E o mancebo com quem vive é assaz inteligente. Vá sem delongas a Abetot. Procure o Alcaide e

pague as taxas devidas, mesmo sendo escorchantes. Assunte a existência de contra-ataque. O rei não vê com bons olhos uma nova

guerra e fortalecido com o empréstimo tomado aos judeus, é provável que se volte contra mim e não renove minhas concessões. A formação do exército é parte do jogo. Todos serão dispensados, se sir Willian falhar na junção carnal, como se prescreve no código dos nobres.

Disse enrodilhando a mulher com rude abraço.

- E quanto a você Baldwin - vociferou olhando para o futuro consorte da condessa - uma palavra fora do combinado e o transformo em guisado. Fuja das tabernas por hoje. Arrume traje decente, pois não se freqüenta a corte em farrapos e esteja aqui no horário aprazado. Deves-me muito. Cumpre bem tua obrigação...

Essa época se caracterizava pela diversidade. Novos modos de produção e de pensar surgiam no horizonte, provocando mudanças. Desvendava-se aos homens enraizados na terra, prestadores de serviços aos senhores, em troca de proteção e víveres, o mundo novo das cidades, onde as relações de troca se representavam não mais por mercadorias

permutadas por outras, mas por moedas metálicas cunhadas. Nesse meio, os servos desvalidos, cuja vida sequer se igualava à dispensada pelos senhores aos animais retidos nos estábulos, revoltavam-se com freqüência. Em algumas possessões tinham-se homens e mulheres

apenas como espécie diferente de gado, com preço inferior ao dos cavalos e dos porcos.

Moravam em choupanas miseráveis construídas de barro e palha perdidas no ermo das florestas ou em vilas onde trabalhavam continuamente a troco de migalhas, beirando a indigência, privado

de qualquer propriedade. O pouco rendimento obtido gastava-se com o dizimo, cobrado pela igreja, sob pena de purgar nos caldeirões de

Belzebu, caso o sonegasse e os tributos, pagos aos senhores, quase nada restando para garantir a sobrevivência. A pouca ração consumida bastava unicamente para manter a vitalidade e se resumia a um pedaço de pão preto e a uma sopa rala. As roupas, cerzidas com couro ou tecidos grosseiros, estavam o mais das vezes rasgadas e sujas.

Com o aparecimento das cidades e a realização das grandes feiras armadas à sombra das muralhas dos castelos, as populações flageladas passaram a questionar a servidão de suas vidas. Se existiam feudos, como o de Abetot, onde os servos trabalhavam em troca de moedas

e gozavam de relativa liberdade, por que eles deveriam se sujeitar à brutalidade de alguns senhores que os submetiam a regime pior do que

a escravidão? Ou às rígidas normas das corporações de artesãos que controlavam os trabalhadores das incipientes cidades? O mundo

cristão conhecido estava preste a explodir.

Ademais, vinham das regiões baixas notícias sobre uma engenhoca criada por um monge para impressão de livros, consistindo em

blocos de letras gravadas que permitiam a impressão de textos. A leitura que antes convergia para os eleitos dos mosteiros e universidades generalizou-se e o povo, decifrando os tipos móveis, descobria as sutilezas com as quais os ricos exploravam a miséria.

Alguns feudos arbitravam a pena de morte para quem portasse livros.

Em outros, punições severas alcançavam os agricultores que simplesmente soubessem ler. A própria Igreja organizara um index relacionando as obras impedidas de circulação e muitos letrados

minguaram na fogueira o desejo de conhecimento.

Lucano, com arguta sagacidade, percebeu nessa turbulência a tábula salvadora de seu amo. Nada de coito forçado ou guerra iminente. O

momento era propício para semear a desavença entre senhores e servos. Atearia o fogo da revolta nessa parte do reino. Uma rebelião de

camponeses agruparia os proprietários em torno de uma causa única. Os poderosos se aliariam para apunhalar os pobres. A guerra na

nobiliarquia seria evitada, mas quem sabe, no auge do tumulto não sumissem algumas peças desse intrigante jogo?

- O jovem Baldwin será o nosso peão nesse tabuleiro. Não fora ele quem incentivara o primeiro levante? Andara espalhando idéias estranhas e se não fora aparentado do bispo teria ardido nas brasas? Convoque-o, Sir Willian.

Exija a contrapartida dos favores concedidos de imediato. Se não acatar vossas ordens, estará em nossas mãos e...

A ameaça do jovem Lucano baseava-se nos empréstimos concedidos a Baldwin. Embora os empréstimos a juro irritassem os homens da

igreja e sujeitassem o povo judeu à execração pública, toda a nobreza era usurária.

Emprestava e tomava empréstimos a juros enormes. Mesmo a Igreja socorria-se com os judeus ou emprestava, recorrendo ao Papa para

cobrar os juros dos devedores que tentavam calotear, sob ameaças de punições eternas.

- Lucano, decerto, tens parte com o demônio. Qualquer dia tu arderás nas brasas da Inquisição ou nas trempes das trevas. Despache

um mensageiro e traga-o.

Todos no feudo sabiam onde encontrar Baldwin, o fanfarrão. Contumaz participante dos torneios de apostas, não raras vezes perdia tudo

para as bancas e nessas ocasiões refugiava-se na Taverna Dente do Dragão, implorando por um copo de vinho. Bêbado provocava confusões e invariavelmente terminava trancafiado nos calabouços até curar a bebedeira e ser solto pelo Bispo.

- Baldwin, ao que conste, logo mais à noite terás um encontro com a sorte, não? Podias parar com a bebedeira... O conselho partia da dona da Taverna, nem tanto para ser agradável, mas para se livrar do freguês indesejável, que embriagado, começava a incomodar a clientela.

- Amanhã mesmo, vou te expulsar daqui sua megera. O conde de Ely tomará conta dessa pocilga.

Cambaleante e desferindo impropérios, foi assim que o mensageiro de Sir Willian encontrou e levou Baldwin à sua presença. O que ficou acertado entre as paredes frias do castelo de Abetot nunca se soube. Mas depois da reunião havida entre Baldwin, Lucano e Sir Willian,

violenta revolta irrompeu nas redondezas, atingindo até o castelo do Barão Vitimador, cujas tropas pagas a peso de ouro não conseguiam

debelar. Os guardas tinham parentes e conhecidos nas levas de servos revoltosos e não agiam com o rigor pretendido. E, como fogo em

palha, a revolta alcançou os feudos mais recônditos, contendo-se nas franjas de Abetot.

O preposto do rei fora informado ser o levante, obra da incitação do enteado do bispo que “fora visto portando estandarte, reunindo

insurgentes, celebrando traiçoeiramente a insurreição”. E Baldwin curava a bebedeira no calabouço. Sem saber, aguardava para

comparecer à presença dos juízes nomeados do Condado. Antes do entardecer, certamente condenado como insurgente e traidor balançaria

na ponta de uma corda.

Esse imprevisto preocupava o Barão Vitimador e a Condessa.

- Avisei-o, Condessa, o imprestável não merecia confiança. E agora, o que será de nós, se der com a língua nos dentes?

- Ai Jesus, eu vos suplico Barão! Se prevaleça do título, desça às masmorras e elimine o calhorda antes de ir a julgamento. Quem sabe

escaparemos! O palerma com certeza nos implicará.

- Ainda aumentando nosso pesar, o desgramado do Willian avocou para Abetot o foro do julgamento pela prisão ter acontecido em suas terras.

Os arquivos não mencionam, mas algo incomum aconteceu. Na audiência perante os juízes, o preso compareceu com a cabeça

enfaixada. E como não dissesse uma palavra em sua defesa, presumiu-se estar ainda embriagado ou lhe terem decepado a língua. Presidindo a

corte, Sir Willian denunciou a influência da Condessa no levante, responsabilizando-a pela difusão de idéias reformistas, apuradas em livros indexados na consciência do sentenciado. Ao final, rogou extensão de pena ao Barão Vitimador, por se haver em conluio com os

insurretos.

A Condessa e Baldwin, entre o murmúrio das preces e a ladainha dos cânticos, entoados pela imensa multidão que acompanhara o cortejo

com tochas acesas, casaram-se, sob as bênçãos do Bispo de Worcester, antes de serem içados para a fogueira. Diante dos corpos que se retorciam nas chamas, o Barão Vitimador, fora despojado dos privilégios e das propriedades, anexadas ao feudo de Abetot.

Tempos depois de escapar dos barretes, das mordaças e das cogulas que prendiam os penitentes, Sir Willian foi procurado pelo Barão, oferecendo-se como “vilão”, servo em gozo de maior liberdade e prestador de serviços pessoais.

Nas aldeias o povo, incapaz de ouvir o diálogo abaixo, estranhava o fato de o Barão haver se arrependido e abjurado seus erros, passando a dispensar tratamento benevolente a todos e agir segundo os gestos afetados de Sir Willian, contrastando com a rudeza de antanho.

- Sabe Lucano, depois de emasculado, o Barão Vitimador desempenha as funções de “eunuco” no “portal dos inocentes” com muita

lhaneza e propriedade...

- Vá Barão, prepare um valete virgem para a primeira noite... (dele...). Tenho muito que descansar nesses tempos de crises.

- E, quanto a você Lucano, arme o cavalete. Quero ser retratado com as roupas que usarei nas festividades da noite. Pena não haver casamento...

Com uma piscadela, e abanando-se com as aparas da nova roupa de seda, Sir Willian encaminhara-se ao estúdio, onde, imóvel permanecera, observando Lucano manipular magistralmente os longos pincéis.