CRÔNICA DA NOVA LUSITÂNIA

Consta os ancestrais terem-se esfolado nas pedras pontiagudas e afiadas das praias apinhadas de selvagens graves e ansiosos. Ao esgueiro do sopro mórbido da armada, fugitivos das caravelas reais, lançadas na aventura ultra marinha de grandes descobertas e conquistas, escaparam da miséria e do desamparo do reino lusitano. O soberano português, no aconchego do paço, acercado por vassalos à cata de lucros e pensões, minguava a vida dos gentios desfavorecidos em batalhas de adulação por condecorações de títulos e brasões do estado monárquico, patrimonialista e de estamentos. Ao invés das sobras do infortúnio e das picuinhas palacianas, deslumbraram-se com a exuberância do território remoto onde preferiram gozar, em águas cálidas, as delícias das ancas carnudas e escuras das ninfas sedutoras, cobiçosas e sem malícia avistadas... Nenhum vivente, surpreso ao desembarque na terra nova, ficara indiferente aos seios fartos e corpos rotundos, oferecidos ao mero querer pegar. Roliças e ditosas, indiferentes à cor pálida e encardida das cristãs patrícias, as pagãs esfregavam-se ao magote de homens sujos, mal cheirosos e encharcados da solidão dos mares. O “ora pro nobis”, clamado pelo pároco se esvaía aos ventos, enquanto a marujada, alheia ao olhar divino, afrouxava o cinto sobre areias escaldantes, escorregando a incredulidade cristã em estonteante nudez. Homens rudes acostumados à aridez de longas travessias abandonavam infantilmente a fé e os preceitos cristãos. As roupas pesadas, apressadamente, iam-se descasando. O mundo idílico acolhia a todos igualmente nus, como assim o fizera a natureza selvagem. Fora difícil, quase impossível boiar na superfície escura e revolta, suportando o peso das quinquilharias surrupiadas ao saltar das escotilhas e afundar no mar trevoso. Os amotinados que não sucumbiram à desgraça derradeira do afogamento e do furor dos bacamartes deviam suas desventuradas vidas às louças e aos bregueços furtados. A realidade desmentira o mito do selvagem cordial dos primeiros instantes. O aborígine feroz, senhor da terra, traiçoeiro, impiedoso, ressurge desfeita a curiosidade. Destrói-se a parte ilusória. O triste que se deixou guiar pela cobiça, querendo o desfrute gracioso dos vazios das índias, esquartejados como aves, serviram de repasto em animados banquetes de canibais. O afortunado que retribuíra com as bugigangas catou o xodó das mulheres e recebeu dos homens a riqueza da terra da qual não davam conta. A mãe da mãe da avó mestiça frutificara sob as bênçãos da cruz de madeira fincada na terra aparecida. A ninguém carecia saber de qual aventureiro embuchara no morno colchão de areia. Os pardos proliferaram na beira das águas. Nas franjas dos séculos, os Vasco Pegado, linhagem da qual Ayres do Couto derivava, vigiavam os estropícios das ruas poeirentas da Nova Lusitânia, no Mundus Novus. Mulato não embranquecido ou elevado por patente, filho bastardo de um oficial de nobreza decadente, almejava servir na tropa de linha como cadete. Diante de forçado retraimento, pois as regulamentações resguardavam a regalia para filhos de casta privilegiada, recebera do populacho a alcunha de Infante. Embora a astúcia mesquinha e a velhacaria fossem a tônica no comportamento dos negociantes portugueses e colonos, o infante primava pela honestidade e honra, ganhando a vida comerciando diferentes artigos sertão adentro, mexendo com uma rede de mascates a distribuir cobre, ferro, aço, breu, velas e peças de escravos para os opulentos senhores. Dito corrente na época dizia que quem ainda não fosse, haveria uma vez de ser enganado e enganar, roubar e ser roubado antes de perder a vida sob o luzeiro dos trópicos. O destino, com certeza, urdia sua chegada. As terras repartidas entre a nobreza peninsular se perderam no nada. Os índios e os colonos vis, embarcados nas primeiras caravelas de caráter colonizador, embrutecidos pela chibata, não poucas vezes, se insurgiram à condição de cativos e explorados. Muita canela fina portuguesa abrasou fogueiras, vingando as chibatadas dos capitães-mores, sedentos de riqueza fácil e enlouquecidos pelo sonho edênico da volta triunfal ao reino repleto de honrarias. Tanta riqueza e ao populacho nada valia. A seiva do pau vermelho tingia as sedas e cetins das cortesãs palacianas, afundando os galeões nas águas separadoras dos mundos. Se as plantações vingassem frutos, a mercancia cabia a Portugal. Quisessem os colonos proverem-se de outro modo, somente o açúcar saído das moendas e engenhos de água da colônia adoçaria a boca do fidalgo na Metrópole. A ralé se alvoroçava, atolados os pés na miséria e no medo. O tinhoso urgia abalar para os cafundós da terra, à mercê do tacape, da borduna e da arma branca. A nenhum grumete português, bucaneiro da rainha ou flibusteiro de França caberia a glória de garrotear o destino da terra desbravada ao custo de sangue e suor de indômitos conquistadores. Os capelães riscaram a primeva fé, com as forquilhas versando à beira mar. Malocas, ocas e tabas desmemoriadas dos rituais antigos tapavam as vergonhas com trapos, lamentando o buxo prenhe de fome, diante da fartura e da cruz. O sinal na testa remetia à servidão. A verdadeira fé fora banida por hipócrita persuasão ou pela força das armas, mas, reconditamente, os pajés encarnavam a autoridade dos cânticos capazes de elevar as almas ao repouso dos antepassados. Ele, o infante Ayres do Couto, sem parentes ou aderentes com grau nobiliárquico, revirava essas histórias guardadas no baú de muitas gerações. Ao revolver o passado, refletia-se, em elemento da rala população, cujo sustento provinha dos roçados rasgados nos confins da donataria; no dono do casebre tosco mantido na vila guarnecido de teréns, protegendo das enxurradas. Embora os bens lhe bastassem, não conseguia superava a solidão. O porte atraente de Joana Cruz, fornido de carnes e traços subtraídos do índio e do branco, serva de Afrânio Coutinho, “fidalgo mui digno e famoso das cavalarias nas Índias”, alvo das esperanças de alcova, ardia nas trempes do peito. Mercador de primeira cepa, tomando a moça por coisa sua, embora fosse cristã e livre, o fidalgo não cedia, senão mediante boa paga. Podia bem lhe ser filha, enteada à família, gerada ao largo da casa de alpendre ou quiçá peça da qual já fizera bom uso. Ao fim de muito calcular, o fidalgo rendera-se aos cobres. Contrataram: pelo bem querer, o infante doaria, de bom grado, meia parte do dote de 18000 mil reais dado à custa d’El Rei à gente baixa que se contentasse com casamento inter-racial e promíscuo com fêmea da terra. O dote, retribuição monetária, surgiu como ardilosa estratégia de povoamento do largo território que permitisse proteção contra invasões externas e levantes locais. O chamego da mulher fixaria definitivamente o macho à terra. Os regulamentos impunham que as celebrações se realizassem sempre com a participação de dois ou mais casais, dado concorrerem com animadas festividades nos pátios das igrejas e as despesas eclesiásticas e às dos banquetes, rateados entre os nubentes, serem bastante elevadas. Ao único pretendente, restava aliciar quem como ele compartilhasse o interesse pelas mulheres da terra e os dispêndios da cerimônia. Assim, os costumes, dito e feito. Ansioso por desposar a moça e sem conhecimento de outros casais persuadiria João das Neves, miliciano d’El Rei, antigo confrade, cheio de dívidas contraídas em jogos de azar, a acompanhá-lo na empreitada. Com bigodinho bem cuidado, arrogância sutil, cheio de altos e baixos na vida financeira, recebera a alcunha de Vice-Versa.Toparia na certa. É certo não pretender desposar a sério qualquer cabrocha do arruado, mas os olhos esbugalhados se avivaram mais na intenção dos cobres reais. Dando corpo à fraude, contratariam uma rameira, cujo sumiço ocorreria após a cerimônia. Com tal acordo, de uma peitada, ludibriaria a Corte e a Igreja. Acertado o dia, a orada, alumiada pelo facho das fogueiras, recebera sombras perfilhadas diante do padre, mal se podendo ver o que fazia um perante o outro. Condizente com a tradição, o sacramento se realizaria findo o rega-bofe. Mesa farta de manjares e vinhos recepcionaria os convidados. A festa proporcionaria ocasião para o quadro administrativo da colônia: o juiz, os cobradores de tributos e rendas, os militares graduados e o padre, se empanturrariam do bom e do melhor, sem avanço direto no erário real. Ao cabo de repetidas salvas dos convivas, a cerimônia começara em plena madrugada. Os enxovais das noivas ornados por longos véus e a escuridão da sala impediam os olhos de colocar luz sobre quem neles se escondia. No chafurdo, o mistério de quem ficou ao lado de quem na hora da confirmação dos solenes votos se esclareceu, surgida a nova aurora. O engano da troca de esposas entre maridos traídos pela embriaguez do vinho alimentara a pilhéria da fidalguia e da ralé: Joana Cruz, a beleza pretendida pelo infante Ayres do Couto, esgarçara o cabaço na espada do miliciano João das Neves; a prostituta “mais feia do que o capiroto” gemera a noite inteiriça entre abraços mortais pela paixão, jamais carniceiras. E a honra? Ficasse à moda dos trópicos, tal a tal: não pertencendo a ninguém, pertencia ao mundo e todos se honravam, embora chafurdassem a lama. Tal predicado pouco importava ao inconsolado Ayres do Couto, arranhando a sanidade, querendo inutilmente desfazer o engano. Recorrera a todas as ordens religiosas: franciscanos, capuchinhos, beneditinos, carmelitas, oratorianos, jesuítas e até à cúria da Corte, instituições irredutíveis à renúncia dos sacramentos. Afrânio Coutinho, “o fidalgo mui...” vira no equívoco a oportunidade de abocanhar uns cobres de quem compartilhara o cabaço da afilhada, e embolsara metade do dote de João das Neves, que rifava amizade de muitos anos, negando-se a desfazer a troca, apesar das súplicas. Do choque entre a paixão desmedida e a astúcia, restara a Ayres do Couto a fuampa, futricada em toda bagaceira. Passou-se algum tempo antes de cair em si, reconhecer-se apanhado em flagrante pelos desígnios de Deus, aceitar a punição e elevar a dita à condição de senhora honrada e cheia de prendas, adulada por grande vassalagem. Profundamente sensível às coisas do destino, constituíra avantajada prole de mancebos e moçoilas. Enriquecera no comércio de escravos africanos. A sorte tornara-o mercador nos portos; adquiria peças da Guiné, à vista, e as revendia, fiado, aos donos de engenho com avançados ganhos. Erigira majestoso solar nas cercanias do bordel, onde instalara a concubina Joana Cruz. A donzela abandonara o lar para viver à toa, desgostosa do vexame e da conduta cruel, bárbara e imoral de João das Neves, adulador dos credores com as carnes roliças da mulher. Ayres do Couto, terminando a cópula, derrama sobre o catre de lençóis amarfanhados e amarelecidos alguns tostões para o gasto da quenga. De volta ao lar, mãos embolsadas, protegendo os dedos da friagem, rompia a noite. Ruminava como chegara até ali: provara a vez de ser enganado e de enganar, roubar e ser roubado e, em contentamento, restava esmorecer a vida sob o luzeiro dos trópicos. O destino urdira a arte. Agora nem a fidalguia, nem a ralé o alcunhava de “infante cornudo...” Ia, assim, de passo faceiro em direção ao recanto onde a esposa, plantada na janela, distraía-se com um olho no bastidor e outro na agulha. Na calmaria da noite, a cabeça de Ayres do Couto, parecendo imenso repositório de fatos, recolhia os pedaços da sua história, a partir da fuga dos ancestrais se atropelando no breu, se esquivando da mira dos arcabuzes, se ralando nas pedras pontiagudas encravadas nas areias salgadas do mundo novo... Se...