A COR DA VIDA QUANDO PASSA
 
 
Imagem relacionada

Por Leont Etiel
 
De nome, chamava-se José. Nunca terá tomado conhecimento das máximas de Emil Cioran a respeito da vida e da morte, e todavia, de quando em quando, dizia as suas que pareciam semelhantes às do exilado Cioran em Paris. Por este, sabemos que as camadas da existência carecem de espessura. Logo, quem a existência escava, o arqueólogo do ser, encontra, ao fim do seu labor, um profundo deserto enigmático.
Não é de se negar, seguindo o mesmo passo cioraniano, que esse encadeamento leva ao horizonte segundo o qual, de tanto monopolizar  o sem sentido, a vida poderá (a depender do modo como a existência seja concebida) inspirar mais pavor do que a morte.
José era dado a essas deambulações mentais, ao mesmo que o gosto pela terra fê-lo, desde sempre, levantar-se do chão e deixar-se dissolver pelos ares da natureza. Homem, por vezes, de poucas palavras, não perdia uma só oportunidade para fazer agrados aos entes do mato. Do que plantava, quando colhia, colhia a sua parte e sempre deixava outra para os pássaros e os demais habitantes do misterioso mundo natural.  Para ele, tratava-se de um justo pacto de convivência. Como os pássaros, com o seu canto, poderiam alegrar as matas e os terreiros, trazendo música aos seus ouvidos, se eles não eram alimentados? Não funcionaria, conforme a lógica probabilística de José. De igual modo, se ele não cuidasse de seu burro, dando-lhe, além de alimento, banho, penteando-lhe e perfumando-lhe, como poderia o animal se dispor de bom grado a ser seu meio de transporte e de condução de mercadorias entre Cruz da Serra e Osomim? Coisas dos cálculos das tabelas veritativas de José. O certo é que o grau de lealdade do burro a José estaria talvez, especula-se, acima do grau manifestado por determinados humanos. Conta-se que, mais de uma vez, tendo sido ele obrigado a fazer paragem forçada em decorrência da ingestão de determinados líquidos que desestabilizam o raciocínio e encurtam a visão, o animal a seu lado permanecia até que as condições de seguir viagem fossem restabelecidas.
Homem rural à antiga, daqueles que a palavra falada vale mais do que o papel escrito, José tinha as suas contas sob controle total. Criado num pedaço de terra em que era seu prazer agradar a quem lhe deu acolhida e morada, José tratava os filhos dos seus acolhedores com uma atenção poucas vezes vista. Dizia não querer muitas coisas, e que apenas o pequeno mundo que carregava em sua cabeça bastava para tocar os dias.
Esse seu pequeno mundo não resistiu à urbanização do rural e ao estabelecimento de lógicas monetárias no que é próprio da livre sociabilidade. Foi a firmação de um contrato, com ele entendendo ter assumido uma alta dívida, que o levou a ficar pensativo e cabisbaixo, a ponto de até descuidar do banho no burro. Dizem que, para grandes tragédias, coisas pequenas bastam. Assim sucedeu com José. De posse das cordas que amarrava o burro, num pé de jasmim subiu, fez o laço, colocou a cabeça e de lá não mais desceu por ele mesmo.  
Muito do que respira ou insiste em respirar só assume essa condição porque se alimenta do inverificável. No mais das vezes, só quando a vida passa, é que as suas cores são reveladas.