RURALFILLYS

Na loteria dos sonhos ele comprava o bilhete da esperança, tentando a sorte para ganhar o valor de uma perua rural, carro visto somente em propaganda que mantinha grudada à parede do quarto de solteiro. No lugar em que muitos tinham a imagem de um santo se enegrecendo à parede com o fumo das lamparinas, Santiago do Córrego Fino tinha a foto de uma camioneta que nunca vira. Era coisa de gente aluada. Não é assim? Acho que não. Se uns gostam de bicicleta, lambreta, Romi-Isetta, perua DKW, Kombi, jipes Willys e do Candango Vemag, ele tinha tara pela perua modelo rural, tudo no figurino de gente igual a qualquer outra. Pra quê queria, até aquele momento ninguém nem o destino sabiam... Questão de gosto, só. Uns gostam de azul, e ele era torado no azul da pintura do carro. Outros, de branco... E como ficar indiferente à brancura do capô e das laterais?

Não se sabe se a paixão surgiu quando ele quase morre num fiapinho vagabundo de água a escorrer entre o marmeleiral, seco no verão e enchido num desmazelo no inverno, invadindo tudo que ficasse às beiras. Pois foi, escapou fedendo de ser levado pela enxurrada para a cidade dos pés juntos. Isso mesmo. Dia desses, ele pescando a vida com varinha mequetrefe, se perdeu no chuá chuá cantado pela corredeira sobre as pedras e a chuva, vindo sem convite, bateu de supetão...

Evitou a grande viagem que ninguém se queixa da demora um balseiro epiléptico que ganhava a vida nos tempos de chuva fazendo baldeação entre a cidade e o distrito de Mata-cachorro onde moravam algumas almas tementes a Deus. A balsa não era balsa, mas o que o balseiro dizia ser teto de uma rural. Sabe-se lá, se foi isso mesmo. Na verdade nem Santiago nem o balseiro jamais tinham visto uma rural em suas severinas existências. Santiago só tempos depois colou em cima do carro que a imaginação tirara da história do balseiro a imagem tomada da revista que surrupiou da bodega do Zé da Venda. Fora tomar uma bicada e as butucas dos olhos congelaram vendo a revista no monte de papéis de enrolar fumo. Depois daquele dia, ninguém aguentava mais a conversa de rural pra aqui rural pra acolá...

- Chega Bacurau, cai no mundo... Com o odiado apelido a turma do vinte e um rebolava Santiago longe da roda de conversa fora. Sem a rural e muita conversa mole ele foi ficando cada vez mais, mais arredio.

A filha de Zé da Venda, e aqui há um porém pra contar. Zé da Venda vivia em casa com duas mulheres. Aliás, com três, contando Pituca, a filha. A mulher verdadeira e uma agregada de quem os cotovelos do povo falavam de um tudo e sem parar.

- Agregada? Se for, eu sou uma papa, dizia as carolas, às portas do confessionário, esperando a vez de contar o rosário de pecados...

- E eu, se for, como papa de caco de vidro, dizia uns e outros da turma dos longe de reza...

- Esse Zé da Venda não engana só nos nove foras de fiados...

A desconfiança, a suspeita encheu a rua de boatos. Começou quando a mulher de Zé da Venda ao desembuchar conquistou a parteira de tal modo que ela passou a morar em sua casa, dando cuidados à menina que não queria dar-se à luz de jeito algum, tendo ficado enganchada entre as pernas, dando o aleijo à Glória do Zé e uma cabeça fora de esquadro a Pituca. A parteira nunca casou, nunca namorou e nunca saiu da casa do Zé da Venda. Some-se tudo isso e nem precisa prova dos nove para se ter que dois e dois não dá quatro e nem vinte e dois, mas amigação, a mulher e a fuampa dentro da mesma casa.

Pois bem, deixando o porém e voltando à vaca fria. Pituca com a banda boa do quengo ficou com pena e se afeiçoou tanto de Santiago que começou o chamego. Não contei, mas ele não era doido de pedra de se jogar fora. Diziam que tinha a moleira mole por viver falando em rural, mas de possuído era seu um pedacinho de terra do tamanho dos miolos, mas bastante para tirar o sustento e sobrar um pouco para a loteria e para a poupança... E poupança para quê? Não é difícil de adivinhar, é? Isso mesmo. A sobra da boia, do paletó de algodão e chapéu de palha com que ele andava pra cima e pra baixo e renovava sempre no mesmo modelo e cores era pra comprar a danada da rural...

- Mas onde cristão tu vai comprar e de quem, se tu num sabe nem onde se vende tal coisa? E adiantava lá o que a doidinha da Pituca implicar com ele?

- Casar eu caso, “seo” Zé, mas só depois de ter uma rural. Zé encarava e ele fincava pé. Só depois da rural...

- Mas "homi" de Cristo, não é melhor ter uma mulher do que uma rural?

- E com mulher eu vou fazer o quê, "homi" do céu.

Ele era assim de viver orgias de trabalho esquecido do mais... Até nunca, nunquinha mesmo, caíra naquele pedacinho de infinito pra onde todos querem ir e de onde vem todo vivente.

- Ora, na bulé da rural eu viajo e no bagageiro, carrego as miunças, a safra de milho e tudo tudo o que a terra dá... Vou às quermesses, às festas da igreja, posso até conhecer o mundo.. Só caso depois da rural e bra e pronto!

Daí passou a ser três os interessados numa rural, bicho nunca visto naqueles cafundós de meu Deus... Cada qual defendendo seus propósitos. Pituca queria por que queria casar. E Santiago nem bulia nada nela, só pensando na rural.

- Isso é frieira, Pituca, coça que passa...

Zé da Venda querendo se livrar de uma boca e abocanhar os cobres do futuro genro.

- Ajuda pai do céu...

O terceiro, Santiago, o próprio, só queria vadiar na bulé de sua rural, ainda imaginária.

- Se sabia dirigir? Se perguntassem respondia,

-Carro de lata eu sei...

Carro de lata... Sabe o que é? Uma lata de leite em pó furada na tampa e no fundo com um arame trespassado e puxada por um pedaço de cordão. A meninada pegando carreira fazia vruuu vrummm com os beiços caídos e lombos suados... Na idade em que a molecada brincava de carro de lato ou rola bosta Santiago ainda não pensava em rural. Não lembra mais que ele pegou a mania quando caiu da ponte que ligava as margens do laguinho chocho que quase virou mar naquela enchente?

Contei, sim, que ele estava em cima da ponte que arrombou, não? Não, mesmo. A ponte caiu, foi levada pelas águas, mas Santiago tava era pescando. É isso, a memória às vezes trai, me faz mentir... Mentir é muito, né? É feio, se enganar, é, se enganar tá bom... E que menino pobre não puxou carro de lata, jogou futebol de meia, soltou raia e jogou pião? Se enganei... Corrigido está.

Um dia ao ouvir falar em carta pra dirigir veículos Santiago" santiagou" ou em dito melhor endoidou de duas vezes.

-E chega pelo correio?

- Tá bestando, é? Não tem carteira, e como vai dirigir?

Daí em diante, qualquer frase que começasse com rural terminava invariavelmente em carteira. Passou um ano sonhando, outro planejando, o namoro quase gorando, mas no terceiro ano ele passou os panos, aproveitou uma oportunidade e tirou, ou, melhor arrumou a carta que não conseguiu no correio.

Contam que foi assim. Verdade verdadeira? E quem é que sabe? O prefeito trouxe um pessoal da capital com esta marmota de carteira de motorista, a carta de que falavam. Carta era apelido o nome próprio era CNH. Para ter a carta, carteira ou CNH Santiago embicou no hotel da Perpétua dando em cima do chefe da comissão que na verdade era uma chefa. Levou um queijo coalho feito com leite da propriedade e deu uns trocados pra ela comprar umas chitas... Dava para comprar um rolo inteiro de chita, mas no dia aprazado para o exame ninguém viu Santiago em fila alguma, mas ao final da tarde sacolejava a carteira.

Sem nunca ter engatado marcha nem na namorada e nem na chefa feia, feia é pouco, um esconjuro pior do que a palavra necessidade que caída na corrupção esperava de por fora, aquilo que ele não sabia como dar por não saber como é. Noite adentro passou se pabulando, mostrando a quem não quisesse ver a carteira de dirigir.

- Vai fazer o quê assim de pano passado, macho. Perguntou Zé da Venda alguns dias depois.

- Oxente e posso não? Vou arribar e trazer minha rural.

Passou no banco, encheu os bolsos de notas, Zé da Venda tudo acompanhando de perto. O cuidado pra não deixar o preá fugir foi tanto que até se ofereceu para ir junto.

- Glória, toma conta da venda... Zefinha, de olho nela que não quero nada estranho na cabeça quando voltar...

Depois de sacolejar muitas horas no pau de arara, como chamavam o ônibus caindo os pedaços da viação, chegaram à cidade. Depois de se alojarem numa pensão suspeita se danaram a bater pé procurando, procurando... E nada. Nenhuma revenda tinha ou sabia quem tinha a danada da rural.

Depois da volta, Zé da Venda se avexou,

- Assim, o casório não sai.

- Valei-me, meu Padim Pade Ciço... Que que faço? Uma centena de vela... Um rosário de missa, em Juazeiro, o perdão de alguns fiados... Faço de um tudo por uma ideia...

Padim Ciço, político matreiro como havia de ser, na hora, na horinha do aperreio mandou passar na frente de Zé da Venda, sabe quem? O Galego, o sarará dono da oficina Faz Tudo, muito respeitado na cidade.

- O Galego se avexe cá... O drama que um contou foi ouvido com atenção pelo outro.

- Dá pra arranjar uma rural?

- Diabesso, macho?

- Te dou o desenho... .

- Uh, assim, xá comigo, entonce, dê dinheiro,não marque tempo, o resto a gente ajeita.

Pegou a bulé de um caminhão caindo às traças de ferrugem, acrescentou, diminui, botou rodas e estacionou o monstrengo no quintal de Zé da Venda.

Imagina a cara de besta feliz que Santiago fez ao ver aquilo. Ficou no céu. Se parecia com a rural da imagem? Nem a pintura, mas quem liga pra isso se o que se tem parece um sonho que acabou de se realizar?

- Assim, mete a aliança.

Marcou-se data, o padre disse as coisas e a lua de mel, foi onde? Adivinhe? Na rural, de onde se encomendou o primeiro bruguelo. O cabeçudo foi feito ali, no improviso, malfeito como a rural. Ele talqualzinho o funileiro que não sabia nem por onde começar a rural era ignorante no engate da marcha rumo ao pedaço de infinito de Pituca. Não fosse o arranco da espevitada, Santiago ainda estaria esperando o bucho inchar, assim como se diz, por milagre... E não foi desse jeito que Jesus, meu Cristin, nasceu?

E veio outro e mais outro e mais outro. Mas nessa altura a rural já estava ao lado do curral das vacas rente a casa do rancho. Na casa de alpendre ele e Pituca paravam pouco. Saía da roça para a rural onde Pituca doidinha para fazer aquilo que aprendeu a gostar, já avisava à cambada:

- Pra dentro, menino, pra fora cachorro, cuidem da tramela nas portas que eu vou ajudar teu pai polir rural.

E o polimento acabava madrugadinha com o aviso do galo. Não sem o mau humor de Pituca.

- Xô bicho nojento do meu abuso. Com esse cocoricó atrapaia muito, nem deixa a gente brincar um cadinho mais... Tu devia Santin – Santiago virava Santin nas horas da senvergonheira - de armar um galinheiro na forma de rural. Daí esse se arrumava com as comadres lá dele... Se não, não escapa da panela, não me tente, crista murcha. Embuchada precisa mesmo de uma cabidela, né, não?

Zé da Venda temendo que a fila de barrigudinhos aumentasse muito e a filha se arrobasse de tanta gordura, dois quilos e meio por barrigada, fez por que fez, andou mundos e fundos até encomendar uma rural de verdade.

Foi o começo do fim... A roça deu pra trás, a muié e a filharada ficaram no ora veja e Zé da Venda... Ah! Seu Zé da Venda, maldita hora em que teve a grande ideia. Essa não saiu da cabeça de capuchim branco de Padim Pade Ciço. Talvez, vendo o santo de enxaqueca, o demônio engabelou...

Santiago saiu guiando, pisando fundo, e não se sabe se a pressa era para cair no mundo, fazendo fon, fon, fon na buzina da rural azul novinha ou se se estrambelhar numa ribanceira de fundo sem fundo que ficavam umas léguas adiante... Até hoje não se sabe dele, mas também não esquecem a história.

No final, Zé da Venda, coitado, mudou o apelido pra Zé da Ruralfillys. E como a negrada aperreava...

- Quando vende a ruralfilys, Zé, parece que tem muita gente de olho. A freguesia é grande... A arenga era grande quando ouvia a pilhéria. Se aperreava e prometia,

- Qualquer dia desses, me desgraço, mas desço o bucho de um... Qualquer dia desses... Queria tocar fogo na geringonça, mas não podia, Pituca arreliava...

Coitado por que além do apelido que detestava, ao invés de alimentar a boca de uma, passou a sustentar a boca de nem sei quantos, tantos eram e com prognóstico de muitos mais. Pituca com saudade de Santiago não saia de cima da rural de faz de conta, onde até dormia. E toda noite levava um cabra pra mostrar como é que se viaja numa rural sem sair do canto...

- E ela segura o cabo da manivela com muito gosto... E gosta de quem sabe passar marcha. É o que dizem...

O vruummm vrummm era tanto que até o galo emudeceu e nunca mais cantou nas madrugadas.