O AMOR OU A VIDA

Estava preso havia dois anos. O juiz que lhe decretara a preventiva o considerara um “perigo para a sociedade”. Não sabia quando, ou se, sairia dali. O coração já não desfrutava da mesma saúde da juventude. Gozava, no entanto, do benefício da cela especial, por ser portador de um diploma de nível superior.

Não carregava em si qualquer arrependimento do que fizera. Amargava apenas, com um nó na garganta e teimosas lágrimas nos olhos, a saudade da filha, agora em companhia de uma tia, que ficara com a casa. Estaria a menina agora com onze anos. Seria aquele o tempo em que precisaria mais da companhia da mãe, e da dele.

Lembrava-se com ternura de quando conhecera a mãe. Apaixonara-se assim que a vira. Ela era linda! Um misto de índia e negra, tinha os cabelos lisos e muito escuros, os lábios carnudos na boca grande e sempre sorridente, os olhinhos pretos e puxados do nativo brasileiro. O corpo pequeno e magro ostentava uma cintura fina, que lhe separava o busto delicado e bem torneado das nádegas pujantes e avantajadas. Inteligente, esforçada, trabalhadeira. Conheceu-a pouco a pouco, e cada coisa nova era um novo motivo para amá-la mais e mais, dia após dia.

Ela não. Ela não o amava. Não o quis, desde o começo. Fora sempre ele só.

Lutara esganadamente por conquistá-la. Ao fim e ao cabo, ela acedeu. Pela dedicação, quase exclusiva, a ela consagrada, finalmente ele a convenceu de que era o homem certo para ela. Entregaram-se, em momentos de avassaladora paixão. Mas era só paixão.

Ele não. Ele a amava. Inteiramente. Febrilmente.

Agora ali preso, ia rememorando os tantos anos (vinte, talvez) vividos ao lado dela, as tantas metas conquistadas em conjunto, sempre os dois. E até sentia que a amava ainda, ternamente.

Então lhe sobrevém bruscamente a dolorosa lembrança da filha. Não a esperavam. Mas numa dessas idas e vindas que as muitas traições lhes causaram, a gravidez surgiu. Amava aquela menina, incondicionalmente. Era a sua vida, a sua motivação, a sua razão de viver. Agora, a vida encarniçadamente os separara.

E torna-lhe o ódio a inundar a face, a avermelhar-lhe os olhos. Matá-la-ia outras mil vezes. Sem arrependimentos. Tantos motivos tinha para isto.

Daquela vez, ela viajara para encontrar um novo namorado, um estrangeiro que conhecera na internet. Fora tudo planejado, tudo de caso pensado. Ele não tentara impedir. Ficara calado, sofrendo, sozinho, a sua dor. Ela voltou alguns dias depois, no rosto trazia aquele olhar perdido, distante, de adolescente apaixonada, e na carne o relaxamento de mulher plenamente satisfeita. O ciúme o dominara completamente. Quase perdera a razão. Um sentimento ruim, num quase acesso de loucura, o invadira. Conviver com aquilo tornara-se cada dia mais difícil. Não suportava o ir e vir da correspondência, internáutica e telefônica, cotidiana.

Avisara. Mas ela, aparentemente, não acreditara em uma só palavra do que ele dissera.

Ele voltara para a academia; o caratê voltara a ser a sua religião. Passara a frequentar a escola de tiro. Participava dos torneios e campeonatos de tiro da cidade e do Estado, mas não se afastava muito. Mantinha a vigilância. A correspondência continuava.

Naquele mês de julho, o estrangeiro voltou. Ele a seguiu. Planos diabólicos o acompanhavam. Na caixa quadriculada do jogo de xadrez, a pistola acondicionada. Faria parecer um assalto.

Quando comprara a arma, deixara que ela a visse. Estranhara que ela nada tivesse dito. Nem era do feitio dela calar-se ante aquelas suas atitudes. Isso causara nele estupefação. Mas ele, como das outras vezes, calara-se.

Naquela noite fatal, aqueles dois passeavam, as mãos entrelaçadas, pelo calçadão da beira-mar. De touca na cabeça, aproximou-se, a arma em punho. Ordenou:

– O dinheiro, o dinheiro...

O pavor encheu os olhos dela. O companheiro, o namorado estrangeiro, nada entendia do que era dito. De novo, a ordem:

– O dinheiro. Passa o dinheiro. Vambora, ligeiro!

O assaltado nada entendia. Dois tiros. O estrangeiro tombou sem vida.

Entreolharam-se. Nos olhos dele a frase: “Eu avisei!”. Nos olhinhos miúdos dela, lágrimas de medo e desesperação misturavam-se a uma expressão de inteira descrença. Dois tiros.

Ainda recolhera o dinheiro. Mas esquecera-o no banco do táxi em que empreendera fuga.

Lucas Carneiro

Lucas Carneiro Poeta
Enviado por Lucas Carneiro Poeta em 24/04/2019
Código do texto: T6631451
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