Último Segundo de Liberdade [revisado]
ÚLTIMO SEGUNDO DE LIBERDADE
Sou um prisioneiro, embora não me recorde de ter cometido crime algum. Num belo dia eu procurava algo para comer – os recursos estão mais escassos a cada dia, principalmente no verão que é onde tudo murcha e tudo seca e tudo morre, por aqui onde nasci – então vi aquela coisa cheia de grades montada com uma convidativa tigela de grãos e água fresca, não tive como resistir. Ouvi cantos de outros companheiros por perto, mas não entendia o que eles estavam querendo me dizer, a fome falou mais alto que as suas vozes desesperadas. Era um dia quente e eu estava confuso e com fome, não hesitei, embora lembrasse o que minha mãe sempre dizia sobre me aproximar demais das casas do bicho-homem. Enquanto eu fazia a minha farta refeição, as portinhas ao meu redor começaram a se fechar para sempre. Foi meu último segundo de liberdade. Desesperei-me. Já tinha ouvido falar daquilo, só então me dei conta o quanto tinha sido imprudente, em desobedecer aos conselhos de minha mãe e ignorar completamente o chamado de meus amigos. Não demorou muito para o bicho-homem aparecer para me buscar e me colocar no que seria a minha nova casa pelo resto de meus dias. Nunca o tinha visto tão de perto. Nunca senti tanto medo. Imaginei que era o meu fim, que seria devorado ali mesmo, infelizmente não fui.
Minha casinha engradeada, que logo descobri se chamar gaiola, foi levada a uma sala onde encontrei outras dezenas de iguais a mim, de diferentes cores, cantos e tamanhos, prisioneiros como eu. Três ou quatro deles nasceram em cativeiro e por isso não sabiam o verdadeiro significado de voar livre. Não imaginavam uma vida fora dali, nem almejavam por isso.
Nunca me senti tão triste como nos primeiros dias engaiolado. Chorava meus cantos de angústia e desespero por horas a fio, mas aquilo parecia encher o bicho-homem de prazer. A única coisa boa ali era a comida, mas não demorou muito até eu começar a me aborrecer com o alpiste. Comer passou a ser um hábito mecânico, sem sentido. Eu começava a definhar. Jamais trocaria minha liberdade por toda comida do mundo. Em momentos de maior desespero, batia contra as grades que me aprisionavam e embora elas parecessem frágeis, eu não tinha forças para lhes causar o menor dano que fosse e sempre acabava com uma asa machucada ou o bico dolorido. Mas eu continuaria tentando no dia seguinte. Todos os dias o bicho-homem nos visitava, eram os momentos de maior horror quando ele estava por perto. Já ouvia histórias de que eles comiam alguns de nossa espécie e sempre que a porta se abria, eu achava que a minha vez havia chegado, jamais me acostumaria com aquela presença. Na maioria das vezes ele apenas sentava naquela coisa que balança e ficava ouvindo enquanto quase todos, em suas jaulas, gritavam palavras de socorro, ódio, ofensa, misericórdia, mas como sempre, ele parecia se deleitar com o triste som de nosso sofrimento. Não conseguia, por mais que me esforçasse para tentar entender, o porquê daquilo. Que prazer havia para uma criatura tirar gratuitamente a liberdade de outras? Chorava com saudades dos meus diante da impiedade do homem. Os outros que ali estavam pareciam já loucos – consequência do cárcere, acredito eu – e eu sabia que meu destino era ficar louco também. Isso me fazia estremecer, mas às vezes eu desejava que acontecesse logo, seria mais suportável se eu não tivesse consciência da desgraça que havia se acometido sobre mim.
Algum tempo se passou, eu acreditava começar a perder a minha sanidade, passava o dia pulando de um lado para o outro e às vezes esquecia quão pequeno era o espaço ao meu redor. Eu estava um pouco mais feliz por isso. Algo aconteceu, outro bicho-homem entrou acompanhado de meu raptor e, ao apontar para mim, deu algumas folhas secas para o primeiro e, depois de me cobrir com um pano escuro, senti que estava me locomovendo. Uma escuridão abafada me fez adormecer, acordei em um lugar novo. Com paredes de cores diferentes. Eu sabia que era noite, mas não consegui mais dormir, temia o que me aconteceria pela manhã. Felizmente, não foi pior do que tudo que já me havia acontecido, ali não tinha mais nenhum igual a mim, eu estava ainda mais solitário. Mas fui colocado numa janela e pela primeira vez em muito tempo, pude ver de longe um pouco da natureza que eu costumava conhecer e amar. Chorei de emoção e cantei, desta vez, de felicidade, pois acreditava que jamais veria a beleza do verde novamente.