Tempos Difíceis I

A saudade falou mais alto. Por isso, retorno ao convívio dos meus fieis leitores, depois de longo período de ostracismo literário. Por esses dias, escrevi nova narrativa de viagem à Europa, da qual lhes darei oportuno conhecimento, e, ainda, produzi este modesto conto versando sobre as agruras do nordestino em tempos de seca. O texto, por ser um pouco longo, será dividido em partes, com o título numerado sequencialmente. Espero agradar-lhes. Vejamos, pois:

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A água é o elemento essencial à vida da maioria dos organismos vivos. A seca, um fenômeno natural decorrente da falta, atraso ou precipitação irregular das chuvas. Prolongada, a estiagem reduz e até exaure o volume de água dos rios, açudes e barragens. Em decorrência, estabelece-se o caos provocado pela falência do sistema econômico e pela devastação dos setores agrícola e pecuário. A morte de humanos e de animais por inanição e sede constitui o corolário da tragédia.

As graves secas do Nordeste brasileiro ocorreram na sequência dos anos contados a partir do descobrimento do Brasil, em 1500. A primeira grande estiagem a assolar o sofrido povo nordestino data de 1583 a 1585. Nesses fatídicos dois anos, 5.000 índios abandonaram suas tocas e invadiram fazendas em busca de alimentos.

Os anos de 1720 e 1721 registraram estiagens prolongadas, com graves resultados para as províncias do Ceará e do Rio Grande do Norte. O fenômeno intensificou-se de 1723 a 1727, quando expressivo número de escravos pereceu de fome. A mortandade desfalcou as senzalas e levou os senhores escravocratas a solicitarem de Sua Majestade o envio de novos escravos para recompor o plantel.

As secas de 1776 a 1778 responderam por severíssimo surto de varíola, ocasionando o óbito de milhares de seres humanos. A estiagem dos anos 1877 a 1879 também se revelou devastadora. O Estado do Ceará, à época com população estimada em 800 mil habitantes, foi severamente atingido.

A economia estatal cearense ficou arrasada, enquanto metade de sua população pereceu vitimada pela varíola, cólera e tifo. O evento causou a morte de 400 mil pessoas e devastou a vida vegetal e animal.

Proprietários de grandes extensões de terra sentiram-se abalados pelas intempéries das secas repetitivas. Foi-lhes doloroso ver o solo ressequido e inóspito, os reservatórios de água vazios, o gado a perecer de sede e inanição... Doía-lhes mais: ver milhares de homens, mulheres e crianças, desnutridos e sedentos, serem mortos pela fome e pela peste, esta, uma doença infectocontagiosa provocada pelo Bacilos Pestes, transmitido pela pulga do rato.

A escassez de alimentos acarretou a redução diária da ração dos escravos e da própria família de grandes proprietários rurais. Para dar continuidade ao sustento alimentar de todos, por mais tempo, eles se desfizeram de valiosos bens pessoais. A cada venda de uma joia da família, o coração padecia dos horrores da perda de memoráveis recordações.

Aos poucos, a riqueza fugiu das mãos de boa parcela dos senhores da região. Nada mais lhes restou, a não ser a decisão de migrarem para províncias do Sul e para a Amazônia. Nesta, trabalhariam na produção do látex extraído das seringueiras.

As cidades esvaziaram-se. Pouquíssimas pessoas, a despeito da fome, da sede e das doenças endêmicas permaneceram em suas propriedades, à espera da morte implacável. Optaram por não abandonar o que lhes restaram à custa de desmedidos esforços. Entre estes, um afortunado fazendeiro, conhecido por coronel Feliciano, que se manteve irredutível quanto a abandonar o lugar, apoiado no que lhe restava vender – os escravos. O plantel valeria 10 contos de réis no mercado do Sul, dinheiro suficiente para enfrentar um “leão a cada dia” de dificuldades.

Por ser inflexível jogador de baralho, com o passar do tempo o coronel Feliciano resultou na miséria. Desfez-se de seus haveres, arruinou a família, vendeu os escravos e bandeou-se para a província do Pará. Ali, trabalhou como barqueiro até o fim de seus dias.

Os cidadãos das comunidades rurais devastadas pela prolongada estiagem, embora famintos e doentes, empreenderam penosa marcha rumo à capital da província, em busca de socorro governamental. Mário de dona Quitéria foi constituído líder do grupo. Na companhia da mulher, dona Joventina do Amor Divino, e do filho Vicente, um rebento de apenas três anos, dispôs-se a encarar o desafio.

O préstito de esfomeados rumou pelas estradas empoeiradas do sertão nordestino. O sol a pino tostava-lhes a pele ressequida, enquanto os estômagos vazios reclamavam sem lhes dar trégua. Os pés, protegidos por singelas sandálias-de-dedo, sangravam e doíam.

Para matar a sede, levavam consigo cantis com água obtida nas raras cacimbas existentes na região, enquanto saciavam a fome com paçoca elaborada com carne de charque misturada à farinha de mandioca, transportada no bornal a tiracolo.

Mário advertia os caminhantes a não se dispersarem ao longo da estrada. Orientava-os a consumirem os parcos alimentos em pequenas porções, pois a jornada era longa e inglória. Lembrou-lhes de que a capital da província distava a dezenas de léguas. Percorridas a pé, seria uma jornada exaustiva, difícil de ser vencida, mesmo que o caminhante estivesse bem alimentado, o que não era o caso.

A farinha depositada nos bisacos transportados pelos chefes de família reduzia-se a cada instante, pois em períodos regulares eles tiravam um punhado, consumindo-o para abrandar a fome.

A sede incomodava a todos. Agravada pela exposição ao sol forte, a falta d’água ressecava a garganta dos pobres infelizes. Saciá-la, não seria possível. Amenizá-la, sim, desde que bebessem um gole por vez da água um tanto morna e rançosa, transportada em cantis feitos de couro de bode.

Durante exaustivas caminhadas pelo árido sertão cearense, os flagelados recolhiam-se aos finais das tardes para o sono reparador das energias despendidas. As circunstâncias, porém, não lhes favoreciam. Alguns dormiam em redes encardidas pelo uso, armadas em galhos de árvores ressequidas, vitimadas pelas intempéries da seca, enquanto outros se acomodavam no chão poeirento ou se arranchavam em casebres abandonados por infelizes iguais a eles. Todos tentavam esquecer por alguns instantes o aflitivo sofrimento.

O sono tardio provocava-lhes as mais terríveis lembranças. A saudade dos parentes mortos de fome, vitimados pela varíola ou pelo tifo, vinha-lhes à mente em desolada profusão. O coração transpassado pela dor da perda prematura de entes queridos doía-lhes além do suportável.

Durante a insônia quase crônica, recordavam o passado alvissareiro destruído pela natureza ao longo dos repetidos anos de seca, fenômeno que tornou as terras improdutivas, os reservatórios de água vazios, as plantações ressequidas e os animais em pasto para os urubus que infestavam as planícies, refestelando-se dos corpos putrefatos dos rebanhos espalhados pela caatinga.

Outro motivo prolongava o encontro do retirante com hipnos, o deus do sono. Era o receio de algum peregrino de outros ou do próprio grupo vir a furtá-los durante a noite. Eles nada tinham de valioso que despertasse a cobiça dos amigos do alheio, mas, considerando o estado famélico dos flagelados da região, a pouca comida que transportavam em seus bornais era um atrativo a considerar.

Quanto às mulheres, o medo lhes afligia de várias maneiras. Prorrogavam as horas de conciliar o sono imaginando a aparição de fantasmas, pois, ouviam dizer que algumas pessoas preferiram o suicídio a deixarem o ranchinho onde viveram felizes por algum tempo.

Ao clarear do dia, reuniam-se no terreiro da casa em que pernoitaram na noite anterior. Os que dormiam sob as copas das árvores ressequidas ou no chão de terra batida também o faziam. Todos reclamavam do corpo dolorido. Gemiam, espreguiçavam e bocejavam por terem dormido pouco e mal. Nem mesmo um cafezinho tinha para animar a caminhada prestes a ser reiniciada.

Leiam a próxima sequência. Obrigado pela atenção!