Matéria Amorosa

Matéria Amorosa

O premiado escultor João Linhares parecia ter nascido unicamente para tal ofício, em cujo exercício, se vinha esmerando desde a infância.

Parecia não haver no mundo material que fosse capaz de lhe hostilizar a arte.

Sua especialidade eram as formas humanas. Mais particularmente, figuras femininas. As quais talhava com total perfeição.

O traço mais marcante de sua biografia era a absoluta solidão que o rondava.

Seu pai falecera quando ele tinha quinze anos de idade. Sua mãe, sete anos depois. Desde então, vivia ele completamente sozinho em um loft que lhe servia de estúdio.

Dedicava-se integralmente à escultura havia pouco mais de trinta e cinco anos. No entanto, estava prestes a deixar a profissão.

A idade começava a imprimir seu peso sobre os ombros do artista.

Suas mãos começavam a refugar.

Seus olhos já não funcionavam muito bem.

Foi quando, certa manhã, uma “luz em forma de mulher” adentrou sorrateiramente o recinto que o guardava.

Dizia chamar-se Roberta. Era alta. Aparentava ter, no máximo, vinte e sete anos de idade. Tinha pele morena, longos cabelos castanho-escuros ligeiramente ondulados, olhos cor de mel, voz marcante e sorriso pronunciado.

“O que a senhora deseja?” – perguntou Linhares, num reflexo.

“Quero que você me eternize.” – respondeu Roberta, firmemente.

“Como assim, eternizá-la?” – indagou o escultor, interessado.

“Quero que faça uma escultura minha. Você pode?” – falou a moça, em tom desafiador.

“Eu bem que poderia atender o pedido da senhora. Mas, acontece que...”

“Não precisa me chamar de “senhora”! Meu nome é Roberta!”

“Tudo bem! Roberta! Mas, como ia lhe dizendo, eu até poderia atender o seu pedido! O problema é que estou deixando a profissão hoje! Acho que não tenho mais condições de esculpir!”

“Já eu, acho que você pode adiar um pouco a sua aposentadoria! Além disso, garanto a você que, se me esculpir, fará de mim a sua obra prima!”

As palavras proferidas pela moça deixaram Linhares enrubescido e sem saída.

Ele, então, dirigiu-se a ela nos seguintes termos:

“Aproxime-se de mim, por favor! Devo perceber bem os seus traços, a fim de que eu possa memorizá-los e fazer uma boa escultura! Não sei se você sabe, mas, minha visão já não tem sido a mesma há algum tempo! É por isso Que...!”

“Se deseja perceber bem os meus traços, pode me tocar, se quiser!”

“Tocá-la? Estou certo de que não posso!”

“Por que não?”

“É que, tendo-a assim, tão próxima de mim, posso sentir a sua vibração! É uma vibração tão acolhedora que, se a tocasse, não restaria às minhas mãos outro recurso, a não ser, pedirem para descansar eternamente no seu corpo!”

A última frase pronunciada pelo escultor fez com que Roberta mergulhasse em um amoroso estado de silêncio.

Linhares observou Roberta demoradamente.

De tempos em tempos, ele lhe tocava respeitosamente certos traços que a visão enfraquecida encobria.

Transcorridas cerca de três horas, o escultor dispensou a moça, solicitando-lhe que regressasse dali a um mês para buscar a escultura pronta.

Roberta não pôde conter sua felicidade. Abraçou o artista e, após encostar timidamente seus lábios nos dele, despediu-se com um simples “Até Mais!”.

No dia seguinte, também pela manhã, suaves passos se fizeram ouvir na entrada do estúdio de João Linhares.

Não eram os dele, uma vez que o artista já se havia posto ao trabalho.

Eram os de Roberta, que o fitava profundamente.

Um intervalo de meia hora foi necessário para que o escultor pudesse despertar do êxtase artístico que o tomava, se desse conta da presença da moça em seu estúdio e afirmasse:

“Sua escultura não está pronta ainda! O prazo de um mês ainda não se cumpriu!”

“Eu sei que o prazo ainda não se cumpriu! Mas, decidi vir aqui para acompanhar seu trabalho! – disse Roberta, com um tom de voz quase adolescente.

“Por acaso, você veio aqui para me vigiar? Se veio, saiba que...!”

“Fique tranquilo! Não vim aqui para vigiar! Estou aqui, apenas, para admirá-lo! Sempre tive a curiosidade de saber como trabalha um artista! Como se inspira! Como dá forma física à sua inspiração! Além disso, assim como você pôde sentir a minha vibração no momento em que me aproximei, eu também pude e posso sentir a sua nos instantes em que me é dado chegar perto de você! É uma vibração tão sublime, que me enche de êxtase! É tão forte, que não me sinto em condições de me afastar de você um dia sequer! Sei que as coisas que digo parecem loucura! Porém,...!”

“O que você diz só é loucura se eu estiver louco também! Afinal, sinto exatamente a mesma coisa que você sente! Você pode ficar aqui no estúdio o tempo que quiser! Talvez, seja até melhor se eu puder contar com a sua permanência aqui enquanto realizo o meu trabalho! Quem sabe assim, captando constantemente a sua vibração, eu possa esculpir algo capaz de encontrar-se à sua altura!”

Desse dia em diante, Roberta passou a comparecer diariamente ao estúdio de João Linhares.

O escultor só dava início ao seu trabalho depois que sua modelo chegava.

A moça, a seu turno, só se ia embora no instante em que o artista dava fim ao serviço do dia.

Em suas despedidas, os lábios dos dois, que outrora se haviam roçado timidamente, experimentavam o sabor excelso dos mais celestes ósculos de AMOR.

Um mês, contudo, se esvai rapidamente. E João Linhares sempre cumpre os prazos que estabelece.

Deste modo, passado exatamente um mês, lá estava, diante de Roberta, a escultura que ela encomendara.

A moça examinou cuidadosamente a estátua. Era praticamente idêntica a ela. Todavia, apresentava um detalhe diferente. Na mão esquerda, a marca de uma aliança.

“Então, é isso?” – questionou Roberta, em meio a um luminoso sorriso.

“Sim, Roberta. Você aceita se casar comigo?” – disse Linhares, em meio a ofegantes tremores.

“...!”

O pedido do escultor foi imediatamente aceito pela moça que, tempos depois, quando se celebrava o primeiro aniversário do matrimônio dos dois, indagaria ao esposo:

“Eu não falei que, se você me esculpisse, faria de mim a sua obra prima?”

“Você já é uma obra prima da natureza, MEU AMOR!” – responderia ele.

Com a ajuda de Roberta, João linhares continuou a esculpir.

Novos prêmios vieram enriquecer-lhe a existência. Entretanto, de todos os prêmios que receberia, o mais valioso seria, sem sombra de dúvida, o nascimento de Ana Flávia e João Miguel. Seus dois filhos amados.

Hebane Lucácius