Sol Nascente
Sol Nascente
Sol Nascente.
Assim diziam chamar-se o mendigo que eu costumava alimentar diariamente com as sobras das refeições servidas no meu restaurante.
Não se sabia se este era, de fato, o seu nome de batismo, ou se assim o chamavam por sempre o encontrarem acordado logo que o Sol nascia. Sabia-se apenas que, todas as vezes em que assim era chamado, ele atendia prazenteiramente.
O que me chamava a atenção em Sol Nascente, no entanto, não era sua alcunha, no mínimo, singular, mas, as frases de alto valor filosófico que o ouvia proferir.
Um dia, como eu lhe ousasse indagar a causa do inestancável sorriso cuja chama sempiterna jamais deixava de lhe ornar a face, ouvi dele as seguintes palavras:
“O sorriso é meu combustível, Sr. Klein. Quando me falta alimento, sacio-me com ele. Divirto-me com ele, quando me falta companhia.”
Sol Nascente era, sem a menor sombra de dúvida, uma personalidade intrigante pela qual eu nutria uma simpatia que, até bem pouco tempo atrás, a mim se fazia inexplicável. Simpatia da qual jamais tive o interesse de indagar a origem, até que, certa feita, inesperadamente,ela me foi revelada.
Atacou-me, certo dia, o súbito desejo de saber quem era, em realidade, aquele misterioso homem com cujo olhar, o meu, todos os dias, se cruzava.
Para que tal desejo se pudesse realizar, abordei-o como de costume e lhe perguntei se ele se lembrava da data do seu aniversário.
“Não mais.” – disse-me ele – “É uma das muitas coisas de que não me lembro. Mas, há outras coisas de que me lembro na mais profunda demasia. São os fatos que me subtraíram a razão.”
Confuso com o que aquele mendigo ímpar acabava de me dizer, interrompi-lhe a conversa dirigindo-lhe a seguinte proposta:
“Já que o senhor não se lembra da data do seu aniversário, vamos fazer o seguinte!: Hoje, à noite, fecharei o restaurante para os clientes. Tanto os habituais, quanto os de ocasião. Darei ao senhor um jantar de aniversário. Não serão as sobras com que o senhor está acostumado. Mas, um jantar preparado especialmente para o senhor segundo os seus gostos. O senhor faz alguma objeção?”
“Só Uma: Tenho alergia a frutos do mar.” – respondeu-me Sol Nascente, com um sorriso de troça no rosto.
“Tudo bem, Sr. Sol Nascente! Não haverá frutos do mar no seu jantar! Pode ficar tranquilo!” – afirmei-lhe eu, com o mesmo sorriso estampado na face.
“Então? Nos vemos às oito? – indaguei.
“Sim. Pontualmente às vinte horas. – respondeu.
Na hora marcada, lá estava Sol Nascente à minha espera. Fi-lo entrar e servi-lhe completo o jantar, conforme havíamos combinado.
Durante a refeição, travou-se entre nós um diálogo. O mais revelador de toda a minha existência.
Ei-lo:
“Sr. Sol Nascente.”
“Diga! Sr. Klein!”
“Tem uma coisa que me intriga no senhor.”
“E o que é, Sr. Klein? Posso saber?”
“O seu nome.”
“O que tem o meu nome?”
“Sol Nascente é o seu nome de registro?”
“É óbvio que não, Sr. Klein. Afinal, que tipo de mãe, em sã consciência, daria a seu filho o nome de Sol Nascente? Chamo-me Solano Romero.”
“Parece-me um nome estrangeiro demais. O senhor é brasileiro?”
“Não. Sou Uruguaio.”
“E como foi que o senhor veio parar no Brasil?”
“Tinha eu vinte e cinco anos quando vim pela primeira vez ao Brasil. Era ator. Fui um artista bastante conhecido. Não só no Uruguai. Mas, em toda a América Latina. É bem provável que a geração dos seus pais se lembre de mim. Uma emissora brasileira de televisão convidou-me para encenar aqui uma telenovela. Aceitei o convite e nunca mais regressei à minha pátria.”
“E qual foi a causa que o prendeu ao Brasil?”
“Uma mulher.”
“Uma mulher? E qual era o nome dessa mulher?”
“Chamava-se Ana Lúcia.”
“Tinha sobrenome essa Ana Lúcia?”
“Tinha, obviamente, mas, não me lembro muito bem dele. Só sei que começava com K.”
“E o que foi que converteu o famoso ator Solano Romero no obscuro mendigo Sol Nascente?”
“É uma história muito longa. Creio que o senhor não terá tempo, nem paciência, para ouví-la.”
“Sou todo tempo, paciência e ouvidos. Conte-a, se puder!”
“Pois bem. Vou contá-la.
Ana Lúcia foi a primeira jornalista a entrevistar-me logo que cheguei ao Brasil. Apaixonei-me por ela à primeira vista. Tornamo-nos colegas de emissora. Vivemos uma tórrida, porém, rápida, relação de amor. Relação que gerou um filho. Filho que Ana Lúcia jamais me deixou ver.
A impossibilidade de ver o meu filho conduziu-me a um profundo desgaste emocional. Um dia, transtornado, abandonei inexplicavelmente o estúdio no meio da gravação de uma cena importante da telenovela em que atuava. Ganhei as ruas. Perdi a razão. Foi daí que nasceu o mendigo Sol Nascente.”
“E o senhor tem alguma ideia de como possa chamar-se o seu filho?”
“Quando namorávamos, Ana Lúcia e eu dizíamos que, se tivéssimos um filho, ele se chamaria Vinícius. Já, se fosse uma filha, daríamos a ela o nome de Sofia. Fiquei sabendo que Ana Lúcia deu à luz um menino. É provável, portanto, que ele se chame Vinícius.”
“O senhor, por acaso, saberia me dizer se o sobrenome da mãe do seu filho era Klein?”
“Acho que sim. Mas, por que é que o senhor está me perguntando isto, Sr. K...?”
“É que o nome completo de minha mãe é Ana Lúcia Klein. Meu nome completo é Vinícius Augusto Klein. Jamais conheci meu pai. Minha mãe me dizia que ele havia morrido três meses antes de eu nascer. No intanto, pela história que o senhor acaba de me contar, parece que não. Estou quase certo de que o senhor é...”
Minhas últimas palavras foram interrompidas por uma torrente de lágrimas convulcivamente vertidas. A meu pranto, somava-se o de Sol Nascente.
Foi então que um abraço nos enlaçou definitivamente as almas.
A partir daquele dia, ddespediu-se das ruas do Jardim Eulália o singular mendigo Sol Nascente e renasceu, para os palcos da vida, o renomado ator Solano Romero.
Hoje, tenho a honra de assinar Vinícius Augusto Romero Klein e de assistir, nas primeiras filas dos maiores teatros, às peças protagonizadas por meu pai. Um pai que, há bem pouco tempo, eu sequer sabia que existia.
Hebane Lucácius