" Cachorro sem dono. Ninguém sente falta" ALERTEIRO
...à memória agora não me fazia bem. Companheiro de trabalho, aventureiro, amigão debaixo desse céu que muda de cor tanto quanto São Pedro muda de humor...Mas isso era nada. Éramos "machos" dizia entre risadas e ataques de tosse o querido e velho Genevaldo. Vô Gê.
Não tinha eu mais de quatorze anos quando Balisa o pariu. Ficara prenha, velha; assim, de sobreaviso noite e dia lá em casa, um de nós. Alegria. Sombria. A cria da grande companheira ( dizem que já estava lá quando eu nasci) ia deixar herdeiro(s)?
Destino de morte, meu amigo nasceu marcado. Ao primeiro gemido da mãe, correram meu pai e meu avô. Eu, minha mãe e minha irmã à espreita. Tempo estaqueado. Coração feito boiada, num tropel ensurdecedor. Olhava minha mãe e sentia, o som chegava até ela. Mãe é assim. Adentro o local preparado, meio de lado, sestroso, cismado pela espera e pelos gemidos cada vez mais fracos até não ouvir coisa alguma. Olho meu pai, depois a mesa improvisada coberta de...Desmaio.
BALISA, até à peixeira misericordiosa que deu vida ao filho.
- Deus é que sabe, tentava consolar-me o velho...
A faca jazia ensanguentada ao lado. O talho deixava à mostra um rolo de tripas e um rastro de sangue amornava o chão. Uma coisa se mexia naquele lodo de sangue. Lambuzado, um bichinho alertava-se. Dava de acreditar que trazia no corpo ( na alma?) toda a energia que fugira da mãe? Não havia dúvidas...Alerteiro...
Crescera guaxo. Lambia-me as mãos após o último gole da mamadeira. Ratinho. Depois rato. Depois...Caçula mimado. De mim dependia e me prendia pulando entre as pernas. Mais tarde guia e guarda de algum bezerro que teimava em desgarrar-se.
Dado a carreiras. Anoitecia na corrida. De volta à casa desandava a medir forças com Ruça, sempre deixando-a na poeira já que a égua tinha peso extra pra carregar. Chegava à porteira, língua de fora, esbaforido, esperava.
Numa dessas andanças, Ruça empaca e feito pipoca, ao chão sou atirado...tomada de uma doideira, de um desassossego, as patas deixa no ar. Alê pressente, interpõe-se entre eu e Ruça a tempo de colocar-me fora de alcance.
Desentranhado um grito espanta dois animais. Ruça, em busca de socorro, bate recorde e o outro, serpenteando por entre as macegas, foge feliz. A maldita colorida desaparece e o destino se cumpre.
Minha fiel marchadora pressentira e agira instintivamente; Alerteiro aparou o bote , findo em tragédia.
Encontraram-me abraçado ao corpo ainda quente e molhado, não sei se de sangue ou de lágrimas. Chorar...nem o barulho de terra escondendo os últimos pedaços do caixão de meu pai tiraram tanta água dos meus olhos.
ALERTEIRO...Foi.
Enterrei-o à entrada. Nosso ponto de ir e vir. Seu lugar.
Uma semana olhando pro vazio. Em casa " não passava de um cachorro" "pior se fosse você". No fundo choravam seco. Minha mãe preocupação só. Nem meu pai para consolá-la. Minha irmã, moça linda, olhava de lado, olho vermelho, comprido, baixava a cabeça e ia. E vô Genevaldo, de mansinho, pé pisando fino, mão áspera acarinhava meu cabelo, sorria e esperava.
Sete, oito dias. Carecia de atender o gado. Levar para o pasto. Encilhei Ruça. Desde o acontecido não saíra da cocheira. Sem olhar para a porteira fui...AQUI ESTOU! ESTAMOS. Peito rasgado, dor profunda, presente, suspiro, penso: " Cachorro sem dono. Ninguém sente falta".
Meia volta, pego as rédeas para montar e dou com os olhos de Ruça. Quero afogar a dor, esquecer...
Dizem que animal não sente, mas o que vejo nos olhos da minha fiel marchadora é água. Eu sei! RUÇA Chora!
CIDA PIUSSI - 12/2003