A inconciliabilidade entre Justiça e Compaixão origina Kali Yuga
No Reino Celestial de Tusita, a Deusa da Compaixão e a Deusa da Justiça discutiam serenamente sobre uma intervenção divina, porém sutil, nos assuntos mundanos.
Justiça, a Deusa, disse:
— Um assassino morre,
uma criança vive,
uma troca justa.
— Eu intercederei,
portanto, neste caso.
— Eu sentenciarei assim:
que o dragão seja executado,
E que a criança seja libertada
das garras impiedosas
de Mara e sua horda.
Avalokiteshvara, Bodhisattva da Compaixão, advogou:
— O impiedoso dragão
também é uma criança,
uma criança crescida,
numa sociedade corrompida,
dominada pelo temor
de um espírito destruidor;
este ambiente tumultuoso,
num demônio o transformou.
— Tal como todo e qualquer ser senciente,
que mata pelo menos um organismo inocente,
por dia, em busca da própria autopreservação,
este dragão também merece nossa compaixão.
— Assim sendo, Ven. Justiça, não interfira no curso natural e espontâneo dos assuntos mundanos.
— Deixe as coisas serem como são, pois em caso contrário
terá que enfrentar o ímpeto glorioso de minha compaixão.
A Deusa Justiça, claramente irritadiça, retrucou ensandecidamente:
— Estou farta da ausência de meios hábeis em assuntos mundanos!
Compaixão torna os homens fracos, despudorados e ingênuos, Ven. Avalokiteshvara! Acaso existe alguma diferença entre Céu e Inferno no obtuso Plano Mundano? Que o sofrimento, portanto, ensine-vos uma lição sobre a penúria de vossas próprias máculas morais!
Quando isto foi dito, Avokisteshvara, estilhaçando os portões dos infernos, com um sinal mágico auspicioso, liberou Kali, Yama e todos os seres infernais das amarras celestiais, dizendo essas palavras tais:
— Se é esta a vontade divina, lutaremos até o fim do presente aeon escurecido pelas trevas da ignorância da própria Justiça. E nenhuma intervenção — nem minha nem vossa — será realizada na ordem transcendental dos valores éticos e estéticos, a qual repousará cristalizada sob o domínio libertador e primordial do Caos.
Então houve uma ensurdecedora sinfonia de lâminas afiadas e adagas divinas, e o som de trovões e tremores abalou toda a Ordem Sagrada do Reino de Tusita.
Yama e Kali, os deuses da destruição, rejubilaram-se e libertaram-se das amarras celestiais. E todos os sábios heroicos, imortais, e seres libertos através do conhecimento supremo, juntaram-se ao coro e sorriram ao lado de Yama e Kali.
Foi quando um deva com voz de trovão apareceu repentinamente no Reino Celestial de Tusita, anunciando o prelúdio da Era da Decadência Espiritual, com os subsequentes versos:
«Eis o advento da Idade das Trevas do Amor,
Mundanalidade predominante de Namuci, o não-libertador;
Onde o conhecimento supremo dos Dignos
jaz obscurecido em pergaminhos antigos.
E as labaredas de Justiça e Bondade,
outrora flâmulas intercambiáveis,
encontram-se momentaneamente inconciliáveis
— em Kali Yuga —,
tal como os demais opostos complementares.»