O Pergio Mora Ao Meio
 
NA VISÃO, apenas o vácuo da infinita página em branco; ouve-se o som das teclas da velha máquina de escrever, que ali apresentava o impacto de marteladas que quebravam a incógnita daquele silêncio.

     - Aqui está, em nossas mãos, a nossa prisão!
     O Ator estava à frente, corpo ereto. Tinha as mãos erguidas e estendidas e, sobre elas, a velha máquina de escrever do Escritor. Sua expressão era de orgulho, de poder, e o seu prazer era imenso. Sem dar a menor importância ao fato, estava a Atriz, sentadinha em seu pódio, a balançar as pernas:
     - Ora, não exagere. É apenas uma máquina de escrever.
     - Apenas uma máquina de escrever! – sentiu o Ator, desfazendo sua postura – É realmente espantosa a sua ingenuidade. Tudo a que somos submetidos sai daqui.
     - Não concordo muito, sabe... O ponto principal é a mente dele, não a máquina.
     - Oh, não! Não! – dirigiu-se à escrivaninha e pousou a máquina sobre ela, onde também apoiou as mãos para completar: - Não queira me deixar mais maluco do que já estou! Consegui muito sim.
     Só então o Ator começou a notar certa tranquilidade no semblante da Atriz; estava definitivamente mudada. Podia ler em seus olhos cor de mel. E ele acreditava ser efeito do contato físico com o Escritor; tinha quase certeza.      Muito a reprimira após a invasão dela no sonho de Dário (o escritor), que não saíra exatamente como eles haviam combinado, mas já não adiantava reclamar, ele o sabia. Disse-lhe mais de uma vez que ela não o tocasse e nem deixasse ser tocada! Por que não seguiu suas instruções?
     - Quer saber de uma coisa?
     - O quê? – perguntou, assustada, a Atriz. Sentiu que ele observava algo, pois tudo ali era fluídico e, a percepção de um podia ser captada pelo outro.
     - Manuseamos sim a mente dele também.
     - Acredita nisso?
     - Mas é claro... – aproximou-se dela – Ou já se esqueceu de que foi você quem o convenceu?
     Ela levantou-se, sentindo a culpa, e foi a frente.
     - Claro que eu não me esqueci... Mas acredito que poderíamos ter bolado um final melhor pra ele. Não começamos bem como criadores não.
     - Ah, então ele criava o bem?
     - Ele escreve em função do bem.
     - Do bem?! Quantas vezes não fui rebaixado a bêbado, ladrão, e até homem das cavernas?!
     - Ora, não somos capazes de compreendê-lo ainda, é só isso. Mas com certeza, os planos dele são bem melhores que os nossos. É o nosso criador, entende? Luta por boas mensagens ao real.
     - E quantas vezes ele, e todos do “real”, se assim você preferir, não se viram também contra o seu criador, hã???
     - Tá, mas... Ser assassinado por uma caneta?
     - E o que você queria que eu fizesse, hã, princesa?
Ela pensou por um breve instante e, em seguida correu animada até ele, para lhe dar a ideia:
     - Talvez ele pudesse ter enganchado os dedos na máquina enquanto escrevia, ter sentido grandes dores, e então, ter morrido!
     - Não... – discordou ele, achando a ideia confusa – Poderia ter quebrado a máquina e, eu precisarei muito dela – corre até a escrivaninha, como a proteger a máquina -. E depois, eu o ajudei. Ele é contra os avanços da tecnologia... – ficou meio deitado na mesa, alisando a máquina – E a escrita a mão veio antes da máquina.
     - Ele não é contra a tecnologia – discordou ela -, é coerente, o que é diferente. Discorda do conceito em que é usada a palavra “progresso”, é só isso.
     - Espera aí! – irritou-se, enfim – O que há com você? Está ou não está comigo, afinal?
Ela hesita por instantes em responder, o que o faz perder a paciência:
     - Está ou não está? – insistiu.
     - Tá... Eu estou... – fez ela, indecisa – Mas eu só acho que deveríamos ter maneirado um pouco.
     - Mas ainda nem começamos.
     - Aliás, o que vamos começar? Fazia parte do plano, ajudá-lo em suas intenções, lembra-se?
     - Claro que eu me lembro, e vou ajudá-lo. Já começamos a fazer isso, inventando sua morte.
     - Sei...
     - Mas além de não gostar de tecnologia, ou ser “coerente”, se assim você preferir, ele também é antissistema, certo?
     - Não é que el... – tentou retrucar.
     - Certo? – insistiu ele.
     - Certo.
     - Pois é, mas sempre com limites, claro.
     - Ele vive no real, n’outra dimensão...
     - Sim, sim, claro, não me lembre disso. Pois é aí onde vou ajudá-lo: faremos com que ultrapasse todos os limites. Ele será totalmente antissistema, derrubará todas as barreiras, como sempre quis.
     - Cuidado com a coerência.
     - Não mais existirá coerência enquanto eu tiver esta máquina em mãos! Vou fazer de uma só vez o que ele não conseguiu fazer durante toda a sua vida, por não ser capaz.
     A atriz estava assustada. Percebeu que ao propor-lhe a invasão no mundo do Escritor, que ao mirabolar a ideia de escrever, ele, o Ator, já sabia realmente o que faria. E ela! Ah, justo ela! Entrara em seu jogo sujo! Mas ao mesmo tempo entendia que as coisas como eram era o que prevalecia, e não como estavam. Ainda assim, tinha medo. Arriscou:
     - É melhor não enfrentarmos tanto o desconhecido. Ele é escritor e nunca arriscou tal proeza. Por que o faríamos?
     - Porque somos melhores – abre os braços –. Somos mais que ele. Somos tudo. Podemos tudo. Somos da Dimensão da Criatividade, da Linha Teatral! E ele será, claro, o meu protagonista; e viverá na realidade da ficção.
O Placebo
Enviado por O Placebo em 19/06/2018
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