Por Algum Motivo Que Fica
O piano de Barks finalizava já Romeo and Julia, de Nino Rota. Sendo a última canção daquele vinil, ouviu-se em seguida o barulho da alavanca automática que tirava a agulha do disco e, por não ter outro para cair em seguida, ouviu-se o silêncio. Invadiu a escrivaninha como um raio intensa luz vermelha, vinda do canhão do canto direito do teto. A luz logo se espalhou, e misturou-se com outras que ali aguardavam um sinal para luzirem. Boquiaberto, ao mesmo tempo em que esperançoso de ver entrar sua amada novamente, Dário fixou seu olhar em um dos cantos do quarto. Canto, aliás, errado. Uma voz grosseira invadiu seus ouvidos, vinda do outro lado como fosse um tapa na orelha. Uma voz masculina, porém aguda, saía das cordas vocais de um sujeito magro, branco e baixo, muito bem trajado: finíssima calça social, fraque e sapatos lustrosos. Quase todo o seu traje era preto; exceção para a camisa e o lenço, brancos.
- Onde está o texto? – cobrou o tal, de imediato.
- Hã? – fez Dário, confuso.
Quem era aquele? Pensava. Outro que viera lhe cobrar? Todos se achavam no direito! Quando lhe perguntaria quem era, impondo, assim, ordem em seu território, o outro lhe repetiu a pergunta em tom repreensivo:
- Eu lhe perguntei do texto.
- Quem é você, afinal? – conseguiu Dário, enfim.
- Como “quem sou eu?” Eu sou o público! – respondeu, abrindo os braços e mantendo o corpo firme.
- Mais essa! E o que você quer?
- Quero saber se o texto está pronto.
- Não é da sua conta – encorajou-se Dário.
- Como não? – indignou-se – Como espera que eu vá ver algo que nem sei o que é?!
- Do que você está falando, enh?
- Do texto de teatro que você parou de escrever (olha para a escrivaninha)... Parece que não foi o único texto que parou de escrever.
- Ah, então você não é leitor, é expectador de teatro! – concluiu Dário.
- E que diferença isso faz pra você? – retrucou.
- Pra mim não muita, mas pra você faz.
- Quê?
- Desculpe-me, mas o público de teatro não pode ver o texto que será encenado.
- Como não? Posso, quero e vou ver!
- Não vai ver nada – manteve-se firme Dário, e após uma pausa no diálogo, o “público” concluiu:
- Pois eu sei por que não quer me deixar ver o texto... É porque você não o escreveu!
- Como pode afirmar isso? – tremeu Dário.
- Você está tentando me enganar... – dizia a figura, enquanto caminhava para frente; ao abrir os braços, de costas para Dario, ele brada, acompanhado de novas luzes que iluminaram então uma grande plateia de pé e chocada – Enganar o público!
A figura do público desceu à plateia e colocou-se como orador, dizendo em tom de pesquisador:
- Então as críticas a seu respeito são verdadeiras... É, são sim. É que é texto mixuruca mesmo. Triste de quem não sabe fazer as coisas e tem que pagar pra ver os outros fazerem! E isso, quando fazem ao menos a droga do texto!
- Eu fiz o texto! – conseguiu Dário, apesar de muito assustado.
Com a mesma firmeza, a plateia sentou-se, aliviada. Mas a figura do público desafiou Dário:
- Fez nada! – tornou a plateia a pôr-se de pé, assustada e desconfiada. O escritor voltou a insistir: - Eu fiz sim! – tornou-se a sentar-se a plateia.
- Não fez! – outra vez de pé e assustada a plateia.
Dário tomou uma atitude definitiva. Num grito ao ar, acompanhado por um expressivo gesto de braços, como se rasgando o espaço em volta, ele dissolveu as luzes que iluminavam a plateia, fazendo com que esta também desaparecesse e, decidido, dirigiu-se ao público, quase a lhe cuspir na cara:
- Mas não sei do que reclama! Já lhe disse, não pode ver o texto! É teatro, se gostar bem, se não gostar, paciência!
Agora foi o público que se afastou, ofendido e perturbado.
- Ah, é assim, é?
Decidido, foi à escrivaninha e puxou a folha que estava na máquina:
- Ah, aqui temos algo, enfim... Ainda está fazendo.
- Não! Me devolve esta folha! Não tem nada com o texto isso aí...!
- Me deixa ver aqui... – lia o outro.
- Me dá isso aqui! – pedia Dário, enquanto tentava pegá-lo.
- An-an – fez o público, fugindo dele e o obrigando a brincar de Tom & Jerry.
- Você não tem o direito...
Mais feliz na corrida foi o público que, ao dar um drible de Peléem Dário, o deixou caído entre a escrivaninha e a cadeira. Apressado, correu a um canto para ler a folha.
- Como é isso aqui...?! – impressionou-se enquanto lia.
Dário levantou-se, enfim, mas deixou-se ficar onde estava. Não tinha mesmo jeito, o outro já lia a folha.
- “Por Algum Motivo Que Fica”... Minha nossa, cara! Eu já sei qual é a sua, meu! Você está amando! Você está iluminado pela Divindade! Absolvido pela Providência Divina de todas as loucuras que fizer, de todas as culpas! Você... Você é um gênio, cara!
- Eu sou o quê?
- Um gênio, cara! O Céu o guarda! A força do Amor está com você... Eu também amo – fez-se maior o brilho dos olhos dele, aumentado sua emoção ao continuar - ... E por ela... Por ela eu sou capaz de tudo o que você é capaz de escrever, e do que não é também.
- O quê? – pergunta Dário, perdido, sem esperar resposta.
Estava abismado com a mudança daquela figura, sabe-se lá real ou não, que lhe falava de sentimentos minutos depois de ter sido demasiadamente inoportuno. Entusiasmado, a figura continuava a sua viagem:
- Sim... Por ela eu me arrasto, me mordo, me jogo, me esbofeteio, me... Ei! Por que você não escreve logo um texto romântico?
- Romântico? – perguntou o escritor, como se não tivesse entendido.
- Mas é claro, homem! – fez este, indo passar-lhe o braço pelo ombro, enquanto concluía: - Sua inspiração o ajudará. O Amor, cara! Pensa nela e escreve. Escreve!
- Não sei se posso, sabe... - Se pode? Pergunta se pode? Cara, você tá amando! Pode fazer qualquer coisa! Escreve uma comedia romântica, e pronto!
- Bom, eu... Eu posso tentar – decidiu, afinal. Voltou-se a ele -. Mas você não me poderá ver escrever o texto.
Mas a figura do público já não o ouvia mais. Estava a um canto, cabisbaixo, vendo algo que ninguém mais via. Dário, que sabia muito bem o que era aquilo, aproximou-se e perguntou cuidadoso:
- O que houve?
- Estou sonhando em como será o texto. Sabe... Pode parecer ilusão, mas tenho certeza de que se parecerá muito comigo e com ela. Acontece que eu a amo muito... Mais que a mim mesmo. Mas...
- Mas...?
- Vê esta máquina? Ela fala com você?
- Bom... Falando literalmente, não; é uma máquina.
- Pois bem – suspirou -... Assim é a minha amada comigo. A máquina não fala com você porque é uma máquina. A minha amada também não me fala, e é humana.
Dário procurou mesmo algo positivo para dizer ao outro, mas reconhecia não estar em condições para isso. Decidiu algo que, acreditava, talvez fizesse bem aquele apaixonado. Pegou a folha do poema e lhe estendeu:
- Pegue.
- Pra mim? – voltou a brilhar os olhos.
- Tem muito a ver com você também. Pertence tanto a você quanto a mim.
- Puxa! – sorriu – o Amor é lindo! Cara, valeu mesmo! É o sentimento que amolece o coração humano... O sentimento!
Dário ficou ali, parado, vendo aquela figura sair contente. Saiu como as outras: parecia que seguiria uma longa jornada, quando simplesmente sumiu, como se atravessasse algum portal que o levasse de volta ao lugar de onde vinha. E de onde vinha? Não sabia. Mas naquele momento, aquilo não era o que lhe importava. O que lhe tumultuava o pensamento era um sentimento restaurador. O sentimento que lhe dizia que se mostrara covarde aquele tempo todo... Um sentimento que lhe dizia que não era o único no mundo a sentir aquilo tudo. Envergonhou-se dele próprio. Sofria por alguém que lhe dedicou tanta amizade... Mas se ela nem sequer falasse com ele... Não, ele não suportaria.
Apesar de todos esses pensamentos lhe rodearem, ele sentiu-se capaz de terminar o texto dos opostos, “Condução Oculta”. Sentiu-se bem por saber que o que ele escrevia poderia ajudar alguém, fosse da forma que fosse. Sentiu como nunca a necessidade de escrever, e pôs-se à frente da máquina. Enrolou lhe uma folha e percebeu que os canhões de luz estavam em suas devidas direções, e apagados. Ascendeu então aquele que apontava para a mesa e colocou um disco em seu “três e um”.
VOLTOU-SE A LUZ da realidade à pequena mesa com a velha máquina exposta no canto esquerdo do palco. Do mesmo palco onde a conhecera, e onde por muito tempo pode estar com ela. E toda a extensão deste simplesmente desaparecera. Avistava apenas aquele canto esquerdo. Plateia vazia. Sem a diretora, sem os colegas, sem ela. Tudo o que ele via daquela poltrona de plateia era a sua escrivaninha e sua velha máquina... E ele, lá, sentado, olhando o nada. Parecia tão sem vida como uma velha fotografia em preto e branco. Estático, como em transe. Percebia-se vivo pela arrastada respiração... Mais uma vez um sentimento que lhe trazia incômodo lhe invadiu o ser... Ele sentia pena. Pena daquela figura triste. Pena de si. De si? Assustou-se. Sim, era ele próprio. Era o que via e o que estava sendo visto!
Ele?!
Abriu os olhos, assustado, e deparou-se consigo. Exatamente o que vira naquele palco. Ali, só, sentado; inquieto por dentro e estático por fora. Como se vira no palco. O palco! Sumira, assim como a plateia... Ele estava em seu quarto, escritório, refúgio, enfim... Em seu mundo pessoal. Inquietou-se de todo, levantou-se e, sem saber que direção tomar, tornou a sentar. Na folha, jaziam as linhas sobre Nucho. Arrancou-a da máquina e ficou a observar o rolo negro da velha Olivetti. Pôs-se a pensar nos tempos de teatro, quando tudo era mágico, quando ele estava com ela ao menos nos ensaios, nas oficinas de teatro. Ela não veio mais o visitar. Claro, ele havia gritado com ela e a expulsou de seu mundo. Como fora imbecil! culpava-se. Ela realmente não voltou, mas não deixou completamente o mundo dele, pois este girava em torno dela. Dela.
Não lhe interessava mais uma comedia naquele momento. Ele precisava mesmo era de aproveitar o seu estado emocional e externá-lo de alguma forma para passar uma mensagem a ela. Quem sabe, então, ela o desculpasse e voltasse, devolvendo-lhe o presente de sua imagem, de sua voz. Sim! Precisava escrever algo por tudo o que sentia naquele momento! Por que preocupar-se com uma comedia? Estava assim perdendo qualidade, bloqueando sua inspiração. Sentia-se preso por tudo aquilo, sufocado, e amava ardentemente aquela moça. E também sabia que ela jamais o deixaria em paz. Para ela, para ele; por tudo o que estava passando, enrolou uma folha na máquina, colocou outro disco na agulha e foi sentar-se à escrivaninha. Era muita vontade! Alguma coisa sairia, pensava.
A canção era Pour Elise, de Beethoven. Enquanto o piano de Walt Barks fazia-se ouvir, as mãos do escritor, ágeis, violentavam o teclado da máquina, num ato que qualquer um que visse juraria que ele não tinha a menor ideia do que escrevia.
Ele?!
Abriu os olhos, assustado, e deparou-se consigo. Exatamente o que vira naquele palco. Ali, só, sentado; inquieto por dentro e estático por fora. Como se vira no palco. O palco! Sumira, assim como a plateia... Ele estava em seu quarto, escritório, refúgio, enfim... Em seu mundo pessoal. Inquietou-se de todo, levantou-se e, sem saber que direção tomar, tornou a sentar. Na folha, jaziam as linhas sobre Nucho. Arrancou-a da máquina e ficou a observar o rolo negro da velha Olivetti. Pôs-se a pensar nos tempos de teatro, quando tudo era mágico, quando ele estava com ela ao menos nos ensaios, nas oficinas de teatro. Ela não veio mais o visitar. Claro, ele havia gritado com ela e a expulsou de seu mundo. Como fora imbecil! culpava-se. Ela realmente não voltou, mas não deixou completamente o mundo dele, pois este girava em torno dela. Dela.
Não lhe interessava mais uma comedia naquele momento. Ele precisava mesmo era de aproveitar o seu estado emocional e externá-lo de alguma forma para passar uma mensagem a ela. Quem sabe, então, ela o desculpasse e voltasse, devolvendo-lhe o presente de sua imagem, de sua voz. Sim! Precisava escrever algo por tudo o que sentia naquele momento! Por que preocupar-se com uma comedia? Estava assim perdendo qualidade, bloqueando sua inspiração. Sentia-se preso por tudo aquilo, sufocado, e amava ardentemente aquela moça. E também sabia que ela jamais o deixaria em paz. Para ela, para ele; por tudo o que estava passando, enrolou uma folha na máquina, colocou outro disco na agulha e foi sentar-se à escrivaninha. Era muita vontade! Alguma coisa sairia, pensava.
A canção era Pour Elise, de Beethoven. Enquanto o piano de Walt Barks fazia-se ouvir, as mãos do escritor, ágeis, violentavam o teclado da máquina, num ato que qualquer um que visse juraria que ele não tinha a menor ideia do que escrevia.
POR ALGUM MOTIVO QUE FICA
A que mais posso me entregar?
Existe algo tão forte e envolvedor
Quanto aquilo que me prende, sufoca,
Me reprime e me mostra o que é real?
Existe uma força interior
Que determina as forças exteriores
Que acrescentam na mente,
Que nos mudam de repente,
Que mistura mutuamente
Ao nosso mundo interior?
Existem forças que fraquejam
Diante de algo inigualável
E são capazes de se igualarem?
É de força que seguimos,
Sejam interiores ou exteriores,
Interiores e exteriores...
Divindades e horrores
Num mundo de dores
Que trazem desdouros,
Que desafiam a todos
E que transformam a todos.
Então, a que mais posso me entregar?
À trajetória da mente humana?
Da realidade humana?
Do coração de quem sonha?
Eles podem espalhar-se
Diante da ferida que dói,
Do sangue que derrama,
Com alguma virtude soberana
Vantagem veterana,
Que carregamos em mente,
Mas não mostramos realmente
Aos olhos de quem já não sonha...
Por algum motivo que fica?
A que mais posso me entregar?
Existe algo tão forte e envolvedor
Quanto aquilo que me prende, sufoca,
Me reprime e me mostra o que é real?
Existe uma força interior
Que determina as forças exteriores
Que acrescentam na mente,
Que nos mudam de repente,
Que mistura mutuamente
Ao nosso mundo interior?
Existem forças que fraquejam
Diante de algo inigualável
E são capazes de se igualarem?
É de força que seguimos,
Sejam interiores ou exteriores,
Interiores e exteriores...
Divindades e horrores
Num mundo de dores
Que trazem desdouros,
Que desafiam a todos
E que transformam a todos.
Então, a que mais posso me entregar?
À trajetória da mente humana?
Da realidade humana?
Do coração de quem sonha?
Eles podem espalhar-se
Diante da ferida que dói,
Do sangue que derrama,
Com alguma virtude soberana
Vantagem veterana,
Que carregamos em mente,
Mas não mostramos realmente
Aos olhos de quem já não sonha...
Por algum motivo que fica?
O piano de Barks finalizava já Romeo and Julia, de Nino Rota. Sendo a última canção daquele vinil, ouviu-se em seguida o barulho da alavanca automática que tirava a agulha do disco e, por não ter outro para cair em seguida, ouviu-se o silêncio. Invadiu a escrivaninha como um raio intensa luz vermelha, vinda do canhão do canto direito do teto. A luz logo se espalhou, e misturou-se com outras que ali aguardavam um sinal para luzirem. Boquiaberto, ao mesmo tempo em que esperançoso de ver entrar sua amada novamente, Dário fixou seu olhar em um dos cantos do quarto. Canto, aliás, errado. Uma voz grosseira invadiu seus ouvidos, vinda do outro lado como fosse um tapa na orelha. Uma voz masculina, porém aguda, saía das cordas vocais de um sujeito magro, branco e baixo, muito bem trajado: finíssima calça social, fraque e sapatos lustrosos. Quase todo o seu traje era preto; exceção para a camisa e o lenço, brancos.
- Onde está o texto? – cobrou o tal, de imediato.
- Hã? – fez Dário, confuso.
Quem era aquele? Pensava. Outro que viera lhe cobrar? Todos se achavam no direito! Quando lhe perguntaria quem era, impondo, assim, ordem em seu território, o outro lhe repetiu a pergunta em tom repreensivo:
- Eu lhe perguntei do texto.
- Quem é você, afinal? – conseguiu Dário, enfim.
- Como “quem sou eu?” Eu sou o público! – respondeu, abrindo os braços e mantendo o corpo firme.
- Mais essa! E o que você quer?
- Quero saber se o texto está pronto.
- Não é da sua conta – encorajou-se Dário.
- Como não? – indignou-se – Como espera que eu vá ver algo que nem sei o que é?!
- Do que você está falando, enh?
- Do texto de teatro que você parou de escrever (olha para a escrivaninha)... Parece que não foi o único texto que parou de escrever.
- Ah, então você não é leitor, é expectador de teatro! – concluiu Dário.
- E que diferença isso faz pra você? – retrucou.
- Pra mim não muita, mas pra você faz.
- Quê?
- Desculpe-me, mas o público de teatro não pode ver o texto que será encenado.
- Como não? Posso, quero e vou ver!
- Não vai ver nada – manteve-se firme Dário, e após uma pausa no diálogo, o “público” concluiu:
- Pois eu sei por que não quer me deixar ver o texto... É porque você não o escreveu!
- Como pode afirmar isso? – tremeu Dário.
- Você está tentando me enganar... – dizia a figura, enquanto caminhava para frente; ao abrir os braços, de costas para Dario, ele brada, acompanhado de novas luzes que iluminaram então uma grande plateia de pé e chocada – Enganar o público!
A figura do público desceu à plateia e colocou-se como orador, dizendo em tom de pesquisador:
- Então as críticas a seu respeito são verdadeiras... É, são sim. É que é texto mixuruca mesmo. Triste de quem não sabe fazer as coisas e tem que pagar pra ver os outros fazerem! E isso, quando fazem ao menos a droga do texto!
- Eu fiz o texto! – conseguiu Dário, apesar de muito assustado.
Com a mesma firmeza, a plateia sentou-se, aliviada. Mas a figura do público desafiou Dário:
- Fez nada! – tornou a plateia a pôr-se de pé, assustada e desconfiada. O escritor voltou a insistir: - Eu fiz sim! – tornou-se a sentar-se a plateia.
- Não fez! – outra vez de pé e assustada a plateia.
Dário tomou uma atitude definitiva. Num grito ao ar, acompanhado por um expressivo gesto de braços, como se rasgando o espaço em volta, ele dissolveu as luzes que iluminavam a plateia, fazendo com que esta também desaparecesse e, decidido, dirigiu-se ao público, quase a lhe cuspir na cara:
- Mas não sei do que reclama! Já lhe disse, não pode ver o texto! É teatro, se gostar bem, se não gostar, paciência!
Agora foi o público que se afastou, ofendido e perturbado.
- Ah, é assim, é?
Decidido, foi à escrivaninha e puxou a folha que estava na máquina:
- Ah, aqui temos algo, enfim... Ainda está fazendo.
- Não! Me devolve esta folha! Não tem nada com o texto isso aí...!
- Me deixa ver aqui... – lia o outro.
- Me dá isso aqui! – pedia Dário, enquanto tentava pegá-lo.
- An-an – fez o público, fugindo dele e o obrigando a brincar de Tom & Jerry.
- Você não tem o direito...
Mais feliz na corrida foi o público que, ao dar um drible de Peléem Dário, o deixou caído entre a escrivaninha e a cadeira. Apressado, correu a um canto para ler a folha.
- Como é isso aqui...?! – impressionou-se enquanto lia.
Dário levantou-se, enfim, mas deixou-se ficar onde estava. Não tinha mesmo jeito, o outro já lia a folha.
- “Por Algum Motivo Que Fica”... Minha nossa, cara! Eu já sei qual é a sua, meu! Você está amando! Você está iluminado pela Divindade! Absolvido pela Providência Divina de todas as loucuras que fizer, de todas as culpas! Você... Você é um gênio, cara!
- Eu sou o quê?
- Um gênio, cara! O Céu o guarda! A força do Amor está com você... Eu também amo – fez-se maior o brilho dos olhos dele, aumentado sua emoção ao continuar - ... E por ela... Por ela eu sou capaz de tudo o que você é capaz de escrever, e do que não é também.
- O quê? – pergunta Dário, perdido, sem esperar resposta.
Estava abismado com a mudança daquela figura, sabe-se lá real ou não, que lhe falava de sentimentos minutos depois de ter sido demasiadamente inoportuno. Entusiasmado, a figura continuava a sua viagem:
- Sim... Por ela eu me arrasto, me mordo, me jogo, me esbofeteio, me... Ei! Por que você não escreve logo um texto romântico?
- Romântico? – perguntou o escritor, como se não tivesse entendido.
- Mas é claro, homem! – fez este, indo passar-lhe o braço pelo ombro, enquanto concluía: - Sua inspiração o ajudará. O Amor, cara! Pensa nela e escreve. Escreve!
- Não sei se posso, sabe... - Se pode? Pergunta se pode? Cara, você tá amando! Pode fazer qualquer coisa! Escreve uma comedia romântica, e pronto!
- Bom, eu... Eu posso tentar – decidiu, afinal. Voltou-se a ele -. Mas você não me poderá ver escrever o texto.
Mas a figura do público já não o ouvia mais. Estava a um canto, cabisbaixo, vendo algo que ninguém mais via. Dário, que sabia muito bem o que era aquilo, aproximou-se e perguntou cuidadoso:
- O que houve?
- Estou sonhando em como será o texto. Sabe... Pode parecer ilusão, mas tenho certeza de que se parecerá muito comigo e com ela. Acontece que eu a amo muito... Mais que a mim mesmo. Mas...
- Mas...?
- Vê esta máquina? Ela fala com você?
- Bom... Falando literalmente, não; é uma máquina.
- Pois bem – suspirou -... Assim é a minha amada comigo. A máquina não fala com você porque é uma máquina. A minha amada também não me fala, e é humana.
Dário procurou mesmo algo positivo para dizer ao outro, mas reconhecia não estar em condições para isso. Decidiu algo que, acreditava, talvez fizesse bem aquele apaixonado. Pegou a folha do poema e lhe estendeu:
- Pegue.
- Pra mim? – voltou a brilhar os olhos.
- Tem muito a ver com você também. Pertence tanto a você quanto a mim.
- Puxa! – sorriu – o Amor é lindo! Cara, valeu mesmo! É o sentimento que amolece o coração humano... O sentimento!
Dário ficou ali, parado, vendo aquela figura sair contente. Saiu como as outras: parecia que seguiria uma longa jornada, quando simplesmente sumiu, como se atravessasse algum portal que o levasse de volta ao lugar de onde vinha. E de onde vinha? Não sabia. Mas naquele momento, aquilo não era o que lhe importava. O que lhe tumultuava o pensamento era um sentimento restaurador. O sentimento que lhe dizia que se mostrara covarde aquele tempo todo... Um sentimento que lhe dizia que não era o único no mundo a sentir aquilo tudo. Envergonhou-se dele próprio. Sofria por alguém que lhe dedicou tanta amizade... Mas se ela nem sequer falasse com ele... Não, ele não suportaria.
Apesar de todos esses pensamentos lhe rodearem, ele sentiu-se capaz de terminar o texto dos opostos, “Condução Oculta”. Sentiu-se bem por saber que o que ele escrevia poderia ajudar alguém, fosse da forma que fosse. Sentiu como nunca a necessidade de escrever, e pôs-se à frente da máquina. Enrolou lhe uma folha e percebeu que os canhões de luz estavam em suas devidas direções, e apagados. Ascendeu então aquele que apontava para a mesa e colocou um disco em seu “três e um”.