O CAFÉ PODIA até o deixar ligado, mas não respondia nada. Às vezes, tinha a impressão de este, o café, lhe sugerir caminhos nos textos. Mas era só. Tomava um gole, olhava para as telas... Olhava para a folha enrolada na máquina. Um de seus personagens lhe pedira o poder, ele o daria. Apesar da arrogância, era um personagem culto, inteligente... De fato, um artista. Não lhe trazia boas recordações, mas era um problema dele, Dário. Daria um tempo com aquela turma: colocaria o poder das letras nas mãos de Allan Jhonny.
Seu pensamento foi interrompido pelo som de palmas. Aplauso de uma pessoa só. Era Glauco, que parecia estar ali há um bom tempo. Tinha um sorriso triste no olhar. Dário o olhou, e olhou para a pilha de folhas largadas ao lado da máquina – estando, entre elas, a última d’Os Quatro Cavalheiros, o texto de Glauco.
- Que bom que está resolvendo um problema técnico... – foi Glauco, com expressão que Dário não soube definir muito bem.
- Glauco, eu...
- Não, por favor. Não se justifique. Você não precisa explicar os seus atos para nós, meros personagens perdidos. Afinal, você é o deus da Linha Teatral...
- Sabe que não – foi Dário, procurando consertar as coisas –; é apenas um texto...
- Oh, sim. Apenas um texto. É isso que pensa da minha vida também? Da vida do Bráulio? Apenas um texto...
Dona Maria do Carmo entra no quarto, após duas batidinhas na porta. Glauco, que já estava de pé, cruzou os braços e assim permaneceu. Cumprimentou a senhora:
- Boa tarde, senhora.
- Olá – disse a mãe de Dário.
Dário assustou-se. Olhou para a mãe, que pegava algumas peças de roupas sujas dele, e perguntou afinal:
- Pra quem você disse oi?
Ela o olhou um instante. Sorriu.
- Ah, meu Deus... Pra você, filho, pra quem mais? Há mais alguém aqui?
- Não, claro que não.
- Claro que não! – repetiu Glauco.
- É que já nos vimos hoje, por isso estranhei... – foi Dário.
- Qual o problema em dizer “oi” de novo? Entrei na sua "oficina", e te cumprimentei enquanto pego sua roupa suja, só isso.
- Claro.
- Posso retirar esse lençol?
- Nem tá sujo, mãe...
- Mas já está na cama há duas semanas, né? Tá na hora.
- Ah, tá sim – foi Glauco, insinuando mau cheiro.
- Dário!
- O que foi, mãe?
- Meu filho, este café está frio!
- Ora, mãe...
- Não, está gelado!
Mesmo sob protestos dele, ela retira a xícara, dizendo que iria trazer outro café pra ele. Quando ela sai, Dário olha para Glauco, que observava tudo tranquilamente.
- Sabe de uma coisa? Ela é muito boa pra você, muito carinhosa. Bem que você poderia ser o mesmo para os seus personagens.
- Glauco, eu vou...
- Vai. Sei que vai. Quando? Sempre vai isso ou aquilo, mas nunca está fazendo! Quer se livrar de nós, não quer?
- Ora, o que está dizendo? Escrever é a minha vida! – protestou Dário.
- O que digo não denota o contrário. Também queremos a nossa vida, Dário. Mas precisamos nos livrar de você pra isso.
- Como assim? – assustou-se.
- Bom pra todos, amigo. Se estamos aqui, é porque ainda estamos indefinidos. Por acaso algum dos personagens d’A Arena das Sebastianasveio importuná-lo?
- Não... – fez ele, pensativo.
- Alguém do Nossos Laços?
- Não.
- Alguém de O Ponto de Ônibus?
- Não.
- Não. E nem virão. Nenhuns deles, que estão prontinhos em seus devidos textos, o importunarão. Se muitos têm vindo importuná-lo, é porque, de fato, há muito que fazer.
- É uma suspeita com fundamento – observou o escritor.
- Não, Dário. Não se trata de uma suspeita, mas sim de um axioma. Nunca tinha reparado isso, não é?
- Não, não tinha.
- É preciso observar bem mais, amigo... Há muito mais que você precisa entender ainda, para poder seguir melhor.
- O que, por exemplo?
- Opa, opa... Aí é com você, não conosco. Já devia se considerar acompanhado por estarmos o ajudando.
- Ah, devia, é?
- Estamos o ajudando a se encontrar, e nem é trabalho nosso. É seu.
- Nesse caso – ponderou Dário –, por que estão “me ajudando”?
- Porque se trata da nossa vida também.
- Ou seja, há interesse então...
- Menos aí, camarada, menos aí...
- Desculpe. Mas veja o que estou fazendo: escrevendo. Resolvendo um dos problemas.
- Sem foco algum.
- Como assim?
- Que há?! Você largou o nosso texto de novo!
- Não está sendo egoísta? – arriscou Dário.
- Egoísta?! – riu-se – Não está pensando em nós! E o que tínhamos combinado referente ao Bráulio?
- Você conseguiu convencê-lo?
- Não vou responder, não tenho que respondê-lo, porque você não está conosco agora.
- Faço isso por todos vocês – defendeu-se Dário – ! Quanto mais escrevo, menos fica por escrever. Resolvo um depois resolvo outro.
- Foco, Dário Lamasque! Foco! Você precisa saber o que você quer de verdade, e partir pra cima! Está sempre desistindo e retomando os textos! Como espera que fiquemos? Não está fazendo nada por mim nem pelos meus amigos. Não pertencemos a tal Linha Teatral, somos personagens de um romance.
- O que estou escrevendo também não é teatro, apenas fala sobre isso.
- É um romance, como o nosso livro?
- Não sei exatamente o que é ainda...
- Claro que não. Mas que pergunta a minha!
- Escute, Glauco, você é sensato. Sei que se...
- Você está confundindo as coisas, confundindo minhas ações...
Dário tentava negar.
- E o pior, não sabe bem o que está fazendo. Está entregando o poder da criação nas mãos de um personagem... Tem ideia das consequências que isso pode trazer?
Dário fica calado. Outra coisa que não havia pensado. O outro conclui, com um tom de lamentação na voz:
- Nem eu.
Dona Maria do Carmo entra com o café.
- Agora sim, filho.
- Obrigado, mãe – respondeu, enquanto via a fumaça do café subindo.
- Café já não faz muito bem, e ainda gelado!
Vai saindo, mas volta-se para ele:
- Filho...
- Sim.
- Procura ler mais baixo, tá? Você é um artista, e é muito expressivo.
Devia estar falando alto de novo, foi o que concluiu quando ela saiu. Será que Glauco sabia quando os outros o ouviam ou não? Ia perguntar a ele, mas não pôde. Não estava mais lá. Dário, então, olhou para a máquina:
- Tem razão, Glauco: foco. Não vou abandonar este, vou até o fim!
Seu pensamento foi interrompido pelo som de palmas. Aplauso de uma pessoa só. Era Glauco, que parecia estar ali há um bom tempo. Tinha um sorriso triste no olhar. Dário o olhou, e olhou para a pilha de folhas largadas ao lado da máquina – estando, entre elas, a última d’Os Quatro Cavalheiros, o texto de Glauco.
- Que bom que está resolvendo um problema técnico... – foi Glauco, com expressão que Dário não soube definir muito bem.
- Glauco, eu...
- Não, por favor. Não se justifique. Você não precisa explicar os seus atos para nós, meros personagens perdidos. Afinal, você é o deus da Linha Teatral...
- Sabe que não – foi Dário, procurando consertar as coisas –; é apenas um texto...
- Oh, sim. Apenas um texto. É isso que pensa da minha vida também? Da vida do Bráulio? Apenas um texto...
Dona Maria do Carmo entra no quarto, após duas batidinhas na porta. Glauco, que já estava de pé, cruzou os braços e assim permaneceu. Cumprimentou a senhora:
- Boa tarde, senhora.
- Olá – disse a mãe de Dário.
Dário assustou-se. Olhou para a mãe, que pegava algumas peças de roupas sujas dele, e perguntou afinal:
- Pra quem você disse oi?
Ela o olhou um instante. Sorriu.
- Ah, meu Deus... Pra você, filho, pra quem mais? Há mais alguém aqui?
- Não, claro que não.
- Claro que não! – repetiu Glauco.
- É que já nos vimos hoje, por isso estranhei... – foi Dário.
- Qual o problema em dizer “oi” de novo? Entrei na sua "oficina", e te cumprimentei enquanto pego sua roupa suja, só isso.
- Claro.
- Posso retirar esse lençol?
- Nem tá sujo, mãe...
- Mas já está na cama há duas semanas, né? Tá na hora.
- Ah, tá sim – foi Glauco, insinuando mau cheiro.
- Dário!
- O que foi, mãe?
- Meu filho, este café está frio!
- Ora, mãe...
- Não, está gelado!
Mesmo sob protestos dele, ela retira a xícara, dizendo que iria trazer outro café pra ele. Quando ela sai, Dário olha para Glauco, que observava tudo tranquilamente.
- Sabe de uma coisa? Ela é muito boa pra você, muito carinhosa. Bem que você poderia ser o mesmo para os seus personagens.
- Glauco, eu vou...
- Vai. Sei que vai. Quando? Sempre vai isso ou aquilo, mas nunca está fazendo! Quer se livrar de nós, não quer?
- Ora, o que está dizendo? Escrever é a minha vida! – protestou Dário.
- O que digo não denota o contrário. Também queremos a nossa vida, Dário. Mas precisamos nos livrar de você pra isso.
- Como assim? – assustou-se.
- Bom pra todos, amigo. Se estamos aqui, é porque ainda estamos indefinidos. Por acaso algum dos personagens d’A Arena das Sebastianasveio importuná-lo?
- Não... – fez ele, pensativo.
- Alguém do Nossos Laços?
- Não.
- Alguém de O Ponto de Ônibus?
- Não.
- Não. E nem virão. Nenhuns deles, que estão prontinhos em seus devidos textos, o importunarão. Se muitos têm vindo importuná-lo, é porque, de fato, há muito que fazer.
- É uma suspeita com fundamento – observou o escritor.
- Não, Dário. Não se trata de uma suspeita, mas sim de um axioma. Nunca tinha reparado isso, não é?
- Não, não tinha.
- É preciso observar bem mais, amigo... Há muito mais que você precisa entender ainda, para poder seguir melhor.
- O que, por exemplo?
- Opa, opa... Aí é com você, não conosco. Já devia se considerar acompanhado por estarmos o ajudando.
- Ah, devia, é?
- Estamos o ajudando a se encontrar, e nem é trabalho nosso. É seu.
- Nesse caso – ponderou Dário –, por que estão “me ajudando”?
- Porque se trata da nossa vida também.
- Ou seja, há interesse então...
- Menos aí, camarada, menos aí...
- Desculpe. Mas veja o que estou fazendo: escrevendo. Resolvendo um dos problemas.
- Sem foco algum.
- Como assim?
- Que há?! Você largou o nosso texto de novo!
- Não está sendo egoísta? – arriscou Dário.
- Egoísta?! – riu-se – Não está pensando em nós! E o que tínhamos combinado referente ao Bráulio?
- Você conseguiu convencê-lo?
- Não vou responder, não tenho que respondê-lo, porque você não está conosco agora.
- Faço isso por todos vocês – defendeu-se Dário – ! Quanto mais escrevo, menos fica por escrever. Resolvo um depois resolvo outro.
- Foco, Dário Lamasque! Foco! Você precisa saber o que você quer de verdade, e partir pra cima! Está sempre desistindo e retomando os textos! Como espera que fiquemos? Não está fazendo nada por mim nem pelos meus amigos. Não pertencemos a tal Linha Teatral, somos personagens de um romance.
- O que estou escrevendo também não é teatro, apenas fala sobre isso.
- É um romance, como o nosso livro?
- Não sei exatamente o que é ainda...
- Claro que não. Mas que pergunta a minha!
- Escute, Glauco, você é sensato. Sei que se...
- Você está confundindo as coisas, confundindo minhas ações...
Dário tentava negar.
- E o pior, não sabe bem o que está fazendo. Está entregando o poder da criação nas mãos de um personagem... Tem ideia das consequências que isso pode trazer?
Dário fica calado. Outra coisa que não havia pensado. O outro conclui, com um tom de lamentação na voz:
- Nem eu.
Dona Maria do Carmo entra com o café.
- Agora sim, filho.
- Obrigado, mãe – respondeu, enquanto via a fumaça do café subindo.
- Café já não faz muito bem, e ainda gelado!
Vai saindo, mas volta-se para ele:
- Filho...
- Sim.
- Procura ler mais baixo, tá? Você é um artista, e é muito expressivo.
Devia estar falando alto de novo, foi o que concluiu quando ela saiu. Será que Glauco sabia quando os outros o ouviam ou não? Ia perguntar a ele, mas não pôde. Não estava mais lá. Dário, então, olhou para a máquina:
- Tem razão, Glauco: foco. Não vou abandonar este, vou até o fim!