OUVIU-SE primeiro o som da xícara posta no balcão. Em seguida, o som abafado do café quente caindo da garrga térmica para a xícara de Dário. Este pega a xícara e segue para seu quarto, onde sua máquina - com várias folhas escritas, amassadas ou limpas rodeavam sua máquina. Assoprou o café, deu o primeiro gole e acomodou-se na cadeira. Daí pra frente foi só batidas na sua velha Olivetti, que metralhava a folha em branco enrolada na máquina. Nos aproximemos.
Em neurose ficaria quem quer que fosse que a visão pudesse alcançar as imagens que agora serão descritas. Um desafio, pois de que forma descrevê-las, se não como um processo inadvertido de várias variáveis? Uma inconstância de imagens, de cores. Um presságio em mutação contínua. Os movimentos eram ágeis, mas não precisos; os sons constantes e confusos. A atmosfera não era sentida, e a gravidade não se fazia presente. Parecia impossível focalizar uma dessas imagens, aprisionando-a para a visão, embora a própria palavra “impossível” não fizesse sentido naqueles “neurotransmissores”.
Fazendo jus à impossibilidade da palavra impossível, algo como uma calda de cometa, luz intensa que era, fez-se uma imagem insistente, viajando na variedade inconstante e movimentada. Uma sequencia de explosões com efeitos de som e luz era lançada da calda que, impiedosamente, destruía as imagens por onde passava, ao passo em que construía outras no lugar. A mais insistente delas era a visão de três pódios de altura e tamanhos desiguais. E à medida que essa imagem era refletida nos flashes, aumentava de tamanho, invadindo o espaço das variáveis. A calmaria retomada deixava percebida a atmosfera e a gravidade.
Três pódios, em considerável distância uns dos outros estavam em linha quase reta; o do meio era duplo e, um pouco mais baixo que os outros. O pódio da direita era o mais alto, enquanto o da esquerda, o de plano médio.
Sobre o pódio da esquerda estava, tão firme em sua posição quanto uma estátua do Oscar, uma figura humana masculina que segurava uma máquina de escrever; ou melhor, que a tinha nas mãos como um garçom com sua bandeja. Era aquele que a Linha Teatral respeitava como o Escritor, por ser ele o próprio, representando o selo daqueles que escrevem. Tinha o olhar firme e distante. Vestia roupas pretas e uma enorme capa também preta, na qual podia-se notar o desenho de duas máscaras (tragédia e comédia) feito em branco. O vento lhe soprava a capa; todo ele estava estático, mas sua respiração se fazia audível.
No outro pódio, o da esquerda, a figura humana era feminina. Também suas vestes eram pretas e suas costas cobertas com uma enorme capa preta idêntica a do Escritor. Tinha a respiração ofegante e, o olhar de expectativa. A posição do corpo estático advertia que um movimento seria breve. A mão abaixada – a direita – segurava algumas folhas de papel; a outra estava à altura do peito e tinha os dedos sem flexionados. Eis a Diretora. Era ela a representante daqueles que dirigiam na Linha. Seus cabelos, assim como a capa e as folhas, eram movimentados pelo vento.
As mãos para trás, cabeças baixas, olhos oprimidos mirados no chão. Assim estava o casal do pódio central: o Ator e a Atriz. Ainda que no mais baixo dos pódios, o casal estava no plano central da cena. Com muita atenção podia-se ouvir a respiração baixa e receosa de ambos. Contudo, suas capas, tanto quanto as outras, eram violentamente movimentadas pelo vento, assim como os cabelos belos e castanhos da Atriz. Também eram os representantes de sua categoria na Linha. Também vestiam preto. E se girássemos a imagem, veríamos que uma das mãos da Atriz segurava a outra, numa demonstração de tranquilidade. Enquanto as mãos do ator cerravam os dedos e apertavam-se.
Assim como as figuras simplesmente surgiram nos pódios, o mesmo se deu com uma frase que estampou-se ao peito de cada um deles. “Todas As Coisas”, dizia a frase, estranhamente escrita de cabeça pra baixo. Campos de força dividiam-se no espaço de cada pódio, alterando sons e imagens como algo que transformava, porém, apresentando-se apenas como efeito e em quase nada alterando seus intervalos próprios. Fez-se audível o silêncio. Os pódios lembravam torres de mármore com suas respectivas estátuas. Passados alguns minutos, os olhos das “estátuas” iniciaram alguns movimentos. Principalmente os do Escritor e os da Diretora, como que tomando consciência de suas próprias vidas. Iam então ganhando ritmo e originalidade, enquanto o vento apresentava-se mais insistente.
- Sou um criador de situações – iniciou o Escritor, dentre o silêncio respeitoso dos demais e da imediata calmaria dos ventos. Desceu do pódio, pousou a máquina sobre este e continuou -. Sou o destino de cada fato acontecido. Estou no papel de deus. Os acontecimentos seguem as consequências que eu quero. Até mesmo a palavra eu coloco em suas bocas.
As palavras eram então proclamadas por ele, enquanto rodeava o Ator e a Atriz. A Atriz estava em algo entre submissão e tranquilidade, enquanto o Ator, internamente inquieto, apresentava algo confundível com ódio no olhar. Estavam então, os dois, de cabeça pouco erguida. O Escritor, indiferente aos olhares, continuava:
- Posso não manusear completamente os seus pensamentos, mas dou-lhes a conclusão final – pegou a máquina no pódio, e, com ela nas mãos, subiu, mantendo a posição inicial para proclamar a última frase, bem imposta e em tom grave -. Sou o Escritor.
Os raios do campo de força em volta do seu pódio intensificaram-se e fizeram-se ouvir, provocando clarões, os quais certamente assustadores aos olhos de qualquer outro que daquilo não compartilhasse. Após figurar-se novamente a calmaria, o pódio que ganhou movimentos de luz foi o da esquerda, que comportava a Diretora.
- Sou uma tradutora física de ideias – fazia ela, de braços abertos, como se para penetrar-lhe toda a verdade.
Desceu do pódio, mas não deixou as folhas; continuou com elas na mão, enquanto rodeava o casal do pódio central, dando continuidade às suas palavras:
- Defino o traçado visual de seus acontecimentos e os coloco nas mais variadas partes da imaginação. Crio os movimentos e aterrisso lhes a ideia central daquele que rege suas vidas – dirigiu suas mãos ao Escritor, indicando o referido regente -. Sou-lhes ainda uma tradutora de seus mares de dúvidas sobre suas reações físicas diante das consequências, e também as dito – subiu novamente ao pódio e reassumiu sua posição -. Sou a Diretora.
As causas e efeitos foram transpassados para o pódio central, do casal. Os dois, então, ao mesmo tempo ergueram a cabeça; e com as vozes juntas, porém, em tons diferentes, cumpriram suas palavras sem movimentarem-se – com exceção para as mãos dele, que continuavam para trás..
- Somos os ouvintes. Somos os instrumentos usados para transmitir as mensagens. Somos súditos de nossos destinos e de nossas reações. Não temos poderes sobre nós mesmos, mas somos os únicos dessa Linha que possuem alma. Somos o contato direto com o jure que nos avança e nos aclama. Somos o essencial no momento mais triunfal e significante da Linha. Somos os intérpretes.
De imediato, alguém invadiu a cena. Calaram-se os sons, cessaram-se os efeitos. A figura do Público, dessa vez numa versão feminina, cheia de razão e liberdade – liberdade, aliás, que ela não acreditava que algum deles possuía – invadiu a cena, vinda de fora, trazendo tudo simplesmente a um palco. Vinha da plateia, completamente vazia como num dia de ensaio. Seu pequeno dedo apontado, os movimentos rápidos de seu pequeno corpo cheinho, sua voz alta e seu olhar de cobrança fizeram jus à sua personalidade:
- Sou o júri – dirigiu-se ao palco -. Que os aclama, que os avança! Sou a razão de suas vidas, de sua arte e existência. O juiz de suas conclusões, o consciente que interpreta seu subconsciente. De fato, a eterna mira jurídica de sua arte. E se insistirem sem mim, perdem a razão de existência na Dimensão da Linha Teatral. Eu sou o Público!
Foi o suficiente. Os outros estavam agora calados, ainda que mantendo suas posições. Como ficava o Público, de braços abertos a tremer de tanta convicção empregada em suas palavras, ficaram os demais em suas posições iniciais, porém, com os olhares mais vivos que antes. Até mesmo o Ator e a Atriz, ainda que cabisbaixos. O olhar dela mantinha um brilho incontestável e desenhava uma expressão de respeito, tranquilidade em relação às últimas palavras ouvidas; o mesmo não mostravam os olhos dele, que expressavam ansiedade. Também a sua boca expressava essa ansiedade, ainda que de leve, contornando um sorriso entre ansiedade e prazer.
Em neurose ficaria quem quer que fosse que a visão pudesse alcançar as imagens que agora serão descritas. Um desafio, pois de que forma descrevê-las, se não como um processo inadvertido de várias variáveis? Uma inconstância de imagens, de cores. Um presságio em mutação contínua. Os movimentos eram ágeis, mas não precisos; os sons constantes e confusos. A atmosfera não era sentida, e a gravidade não se fazia presente. Parecia impossível focalizar uma dessas imagens, aprisionando-a para a visão, embora a própria palavra “impossível” não fizesse sentido naqueles “neurotransmissores”.
Fazendo jus à impossibilidade da palavra impossível, algo como uma calda de cometa, luz intensa que era, fez-se uma imagem insistente, viajando na variedade inconstante e movimentada. Uma sequencia de explosões com efeitos de som e luz era lançada da calda que, impiedosamente, destruía as imagens por onde passava, ao passo em que construía outras no lugar. A mais insistente delas era a visão de três pódios de altura e tamanhos desiguais. E à medida que essa imagem era refletida nos flashes, aumentava de tamanho, invadindo o espaço das variáveis. A calmaria retomada deixava percebida a atmosfera e a gravidade.
Três pódios, em considerável distância uns dos outros estavam em linha quase reta; o do meio era duplo e, um pouco mais baixo que os outros. O pódio da direita era o mais alto, enquanto o da esquerda, o de plano médio.
Sobre o pódio da esquerda estava, tão firme em sua posição quanto uma estátua do Oscar, uma figura humana masculina que segurava uma máquina de escrever; ou melhor, que a tinha nas mãos como um garçom com sua bandeja. Era aquele que a Linha Teatral respeitava como o Escritor, por ser ele o próprio, representando o selo daqueles que escrevem. Tinha o olhar firme e distante. Vestia roupas pretas e uma enorme capa também preta, na qual podia-se notar o desenho de duas máscaras (tragédia e comédia) feito em branco. O vento lhe soprava a capa; todo ele estava estático, mas sua respiração se fazia audível.
No outro pódio, o da esquerda, a figura humana era feminina. Também suas vestes eram pretas e suas costas cobertas com uma enorme capa preta idêntica a do Escritor. Tinha a respiração ofegante e, o olhar de expectativa. A posição do corpo estático advertia que um movimento seria breve. A mão abaixada – a direita – segurava algumas folhas de papel; a outra estava à altura do peito e tinha os dedos sem flexionados. Eis a Diretora. Era ela a representante daqueles que dirigiam na Linha. Seus cabelos, assim como a capa e as folhas, eram movimentados pelo vento.
As mãos para trás, cabeças baixas, olhos oprimidos mirados no chão. Assim estava o casal do pódio central: o Ator e a Atriz. Ainda que no mais baixo dos pódios, o casal estava no plano central da cena. Com muita atenção podia-se ouvir a respiração baixa e receosa de ambos. Contudo, suas capas, tanto quanto as outras, eram violentamente movimentadas pelo vento, assim como os cabelos belos e castanhos da Atriz. Também eram os representantes de sua categoria na Linha. Também vestiam preto. E se girássemos a imagem, veríamos que uma das mãos da Atriz segurava a outra, numa demonstração de tranquilidade. Enquanto as mãos do ator cerravam os dedos e apertavam-se.
Assim como as figuras simplesmente surgiram nos pódios, o mesmo se deu com uma frase que estampou-se ao peito de cada um deles. “Todas As Coisas”, dizia a frase, estranhamente escrita de cabeça pra baixo. Campos de força dividiam-se no espaço de cada pódio, alterando sons e imagens como algo que transformava, porém, apresentando-se apenas como efeito e em quase nada alterando seus intervalos próprios. Fez-se audível o silêncio. Os pódios lembravam torres de mármore com suas respectivas estátuas. Passados alguns minutos, os olhos das “estátuas” iniciaram alguns movimentos. Principalmente os do Escritor e os da Diretora, como que tomando consciência de suas próprias vidas. Iam então ganhando ritmo e originalidade, enquanto o vento apresentava-se mais insistente.
- Sou um criador de situações – iniciou o Escritor, dentre o silêncio respeitoso dos demais e da imediata calmaria dos ventos. Desceu do pódio, pousou a máquina sobre este e continuou -. Sou o destino de cada fato acontecido. Estou no papel de deus. Os acontecimentos seguem as consequências que eu quero. Até mesmo a palavra eu coloco em suas bocas.
As palavras eram então proclamadas por ele, enquanto rodeava o Ator e a Atriz. A Atriz estava em algo entre submissão e tranquilidade, enquanto o Ator, internamente inquieto, apresentava algo confundível com ódio no olhar. Estavam então, os dois, de cabeça pouco erguida. O Escritor, indiferente aos olhares, continuava:
- Posso não manusear completamente os seus pensamentos, mas dou-lhes a conclusão final – pegou a máquina no pódio, e, com ela nas mãos, subiu, mantendo a posição inicial para proclamar a última frase, bem imposta e em tom grave -. Sou o Escritor.
Os raios do campo de força em volta do seu pódio intensificaram-se e fizeram-se ouvir, provocando clarões, os quais certamente assustadores aos olhos de qualquer outro que daquilo não compartilhasse. Após figurar-se novamente a calmaria, o pódio que ganhou movimentos de luz foi o da esquerda, que comportava a Diretora.
- Sou uma tradutora física de ideias – fazia ela, de braços abertos, como se para penetrar-lhe toda a verdade.
Desceu do pódio, mas não deixou as folhas; continuou com elas na mão, enquanto rodeava o casal do pódio central, dando continuidade às suas palavras:
- Defino o traçado visual de seus acontecimentos e os coloco nas mais variadas partes da imaginação. Crio os movimentos e aterrisso lhes a ideia central daquele que rege suas vidas – dirigiu suas mãos ao Escritor, indicando o referido regente -. Sou-lhes ainda uma tradutora de seus mares de dúvidas sobre suas reações físicas diante das consequências, e também as dito – subiu novamente ao pódio e reassumiu sua posição -. Sou a Diretora.
As causas e efeitos foram transpassados para o pódio central, do casal. Os dois, então, ao mesmo tempo ergueram a cabeça; e com as vozes juntas, porém, em tons diferentes, cumpriram suas palavras sem movimentarem-se – com exceção para as mãos dele, que continuavam para trás..
- Somos os ouvintes. Somos os instrumentos usados para transmitir as mensagens. Somos súditos de nossos destinos e de nossas reações. Não temos poderes sobre nós mesmos, mas somos os únicos dessa Linha que possuem alma. Somos o contato direto com o jure que nos avança e nos aclama. Somos o essencial no momento mais triunfal e significante da Linha. Somos os intérpretes.
De imediato, alguém invadiu a cena. Calaram-se os sons, cessaram-se os efeitos. A figura do Público, dessa vez numa versão feminina, cheia de razão e liberdade – liberdade, aliás, que ela não acreditava que algum deles possuía – invadiu a cena, vinda de fora, trazendo tudo simplesmente a um palco. Vinha da plateia, completamente vazia como num dia de ensaio. Seu pequeno dedo apontado, os movimentos rápidos de seu pequeno corpo cheinho, sua voz alta e seu olhar de cobrança fizeram jus à sua personalidade:
- Sou o júri – dirigiu-se ao palco -. Que os aclama, que os avança! Sou a razão de suas vidas, de sua arte e existência. O juiz de suas conclusões, o consciente que interpreta seu subconsciente. De fato, a eterna mira jurídica de sua arte. E se insistirem sem mim, perdem a razão de existência na Dimensão da Linha Teatral. Eu sou o Público!
Foi o suficiente. Os outros estavam agora calados, ainda que mantendo suas posições. Como ficava o Público, de braços abertos a tremer de tanta convicção empregada em suas palavras, ficaram os demais em suas posições iniciais, porém, com os olhares mais vivos que antes. Até mesmo o Ator e a Atriz, ainda que cabisbaixos. O olhar dela mantinha um brilho incontestável e desenhava uma expressão de respeito, tranquilidade em relação às últimas palavras ouvidas; o mesmo não mostravam os olhos dele, que expressavam ansiedade. Também a sua boca expressava essa ansiedade, ainda que de leve, contornando um sorriso entre ansiedade e prazer.