A Reunião Interdimensional

DEPOIS FORAM os aplausos; mas ao invés das comemorações, vieram o silêncio, o vazio... Estava só novamente. E não mais no teatro, mas sim arremessado ao seu mundo pessoal, seu velho mundo pessoal. O qual era maior candidato à capa do livro de sua vida. Perguntava-se outra vez sobre o conteúdo desse livro. Uma curiosidade era que tudo parecia ser um fim, mas uma certeza clandestina lhe dizia que tudo fazia parte de um começo, e, que tudo o que fora vivido por ele até ali, fora mera introdução... Um prólogo talvez.
     Talvez fora essa mesma certeza clandestina que lhe refrescara a última “viagem”. E nessa viagem ele descobriu algo novo. Algo em si, que propunha certo poder em toda aquela loucura do seu mundo pessoal, de seu cenário. Até ali, percebera a mutação ágil e despreocupada dos cenários, das situações e dos personagens. Mas não havia percebido que essa mutação respeitava um poder mental ou emocional seu. Seria então subconsciente? Provável. Mas já não estava ele, ali, o tempo todo no subconsciente? No entanto, aquelas respostas não lhe interessavam muito... Não o quanto lhe interessava a descoberta de tal poder. Ora, veja só! Ele pode, mesmo, transferir-se de personagem num espetáculo que existiu realmente; ele pode transferir de personagem a atriz que escolhera! O que mais poderia fazer? Perguntou-se. Estava ansioso por saber, e certo que o saberia.
     Uma espécie de retrospectiva de memórias deu-se em sua mente. Não de memórias que desconhecemos, de sua “vida normal”. Memórias desse seu mundo pessoal descrito até aqui, das viagens, das transições... Claro que houve muitas outras não descritas aqui, mas que passaram rente às que foram. Que fazem parte do mesmo grupo, digamos assim. Desfilaram então, diante do seu pensamento, os personagens que mais estiveram com ele. O que ele arriscou chamar de personagens de base. Mas ele queria ver mais. Os queria diante de seus olhos também. Divertiu-se ao constatar a facilidade que teve de concretizar o que pensara e, quase simultaneamente. Lá estava Adria, também Carmella e Alan Jhonny. E, antes que lhe reclamasse, o público.
     Adria lhe representava o melhor que a vida tinha a lhe oferecer. Era o sorriso diante do conflito, eram os olhos da juventude que lhe brilhavam a vida... Era o Amor apresentado de uma forma pura, singela e inconsequente. O sentimento desmedido que clamava por compreensão, ao mesmo tempo em que a ignorava. Adria era para ele o espetáculo da vida em toda a sua grandiosidade e, em toda a sua majestade. Todo o mais que lhe rodeava parecia supérfluo, e lhe era apresentado como complemento.
     Allan Jhonny era o impasse. Sua figura representava o questionamento de tudo o que ele – Dário – tinha certeza. Talvez mesmo por esse motivo se materializasse diante dele, literalmente invadindo o seu mundo pessoal, lhe atirando as contradições que a vida lhe atirava diante de seus princípios. O simples fato de ele – Allan – ser tão próximo de Adria, e de parecer-lhe tão íntimo de sua amada, causava antipatia de sua parte ao “colega”. Também o fato de Allan não simpatizar com ele lhe sugeria alguma rivalidade, onde ele – Dário – se via em “desleal” desvantagem. Sendo assim, ele tinha a figura do colega como antítese.
     Carmella, a diretora, parecia-lhe a voz da razão. Embora nem sempre a ouvisse, sentia que suas palavras sempre tinham sentido. Era assim para ele a chamada ao mundo, aos derivados, aos mapas que o deixaram naquele caminho. Também lhe apontava outros caminhos, os quais ele ainda não conseguia seguir, mas sentia que os seguiria mais cedo ou mais tarde por reconhecer que não tinha sentido a dialética oposta, embora fosse a que ainda reinasse em seu mundo pessoal. A diretora lhe falava como uma mãe, tamanha a preocupação com a sua “recuperação” e, quando gritava com ele, o fazia por sentir necessidade, como uma mãe sente, por crer estar protegendo o filho. Claro que todo esse perfil era o que os olhos dele viam. Por isso, a via como a razão em pessoa, ou em que fosse. Reclamava com ela, gritava, rebatia queixas, mas sentia que na maioria das vezes em que a tratava assim, estava errado. Estava claro que o seu maior sentimento por ela era o respeito.
     A figura que representava o público o confundia exatamente por representar as pessoas. Trazia-lhe as ideias do mundo, suas causas e efeitos, e sem explicação alguma, sem – aparentemente – lhe dar a razão dos fatos. Nada. Apenas lhe jogava o que acontecia, sem os porquês e, pior, lhe exigia os tais porquês. Ora vejam! Aprontavam fora de seu cenário e, repentinamente o invadiam para cobrar-lhe satisfação! Satisfação? Satisfação sim. Entregavam-lhe as questões, cobravam-lhe as respostas, e, ainda julgavam as respostas dadas. Onde está o texto? Mas o curioso era que ele, Dário, acabara sendo convencido por tudo aquilo. Sentia nos próprios ombros o peso de tudo o que acontecia, tivesse ou não ele a ver com aquilo. Mais: começava, mesmo, a se achar responsável. Por quê? Isso, não sabia.
     Ali estavam os quatro. E todos os olhares estavam em sua direção, e todos, sem exceção, pareciam pedir alguma explicação. Mas não era ele quem precisava ouvir alguma explicação? Não. Responderam, para seu espanto, os olhares questionados.
     Inevitável. Para ele sempre fora inevitável aquele encontro “consciente” dos cinco. Sempre acreditou que ele aconteceria. Suas expectativas tiveram conclusão. Seria conclusão? Talvez fosse o ápice de sua suposta loucura. Loucura que lhe trazia uma realidade: tinha de ser vivida. A loucura mostrava-se lúcida do que era e, não vivê-la poderia ser a falta de sensatez, ou até de lucidez mesmo, por não perceber e aceitar o óbvio.
     Estavam todos em grande expectativa. O quarteto de “hologramas” esperava alguma atitude de Dário, enquanto este esperava alguma reação da parte deles. Até ali, todos se assumiram como entidades concretas entre si, e, se não se conheciam profundamente, ao menos conheciam um a identidade do outro. Mas afinal, por que toda aquela lógica numa sandice? Era o que o nosso amigo, o escritor, se perguntava. Sandice é sandice, lógica é lógica. Porém, o mais impressionante de tudo aquilo era a controvérsia entre ele e o quarteto. Cada um deles tinha o seu motivo para estar ali; e o do escritor se desencadeava dos demais. Percebeu quando obteve resposta para a sua pergunta que, aliás, foi a primeira daquela reunião interdimensional sem aviso prévio, mas de poderosa precisão.

     - O que vocês estão fazendo aqui, afinal?
Perguntou cautelosamente. E teve de aguardar alguns segundos para obter a resposta. Allan limitou-se a um riso irônico, a atriz vacilava um olhar de preocupação entre este e Dário, enquanto o Público estava deitado no chão com as mãos na nuca, olhando tranquilamente o teto. Foi Carmella quem lhe respondeu:
     - Me parece que seria melhor você perguntar isso a cada um de nós. Acredito que está claro que não temos as mesmas razões nem objetivos para estarmos aqui.
     Estavam então, todos, novamente num palco. Mas a um canto, ainda a escrivaninha e parte do material de Dário. Carmella, Adria e Alan Jhonny estavam sobre caixotes pretos de madeira, enquanto o Público estava agora numa das poltronas da plateia, de frente a todos.
- O que estão fazendo aqui, afinal? – repetiu Allan a pergunta do escritor – Foi o que nos perguntou o nosso “escritor”. Ora, vejam só, colegas... Não seria, pergunto a vocês, nossa essa pergunta e, dele a resposta?
     - Como isso? Estou em meu lugar, não estou?
     - Tá difícil aí, enh... – foi o Público, que fingiu protesto, um tanto desinteressado – Já vi tudo...
     Allan continuou a sua resposta, no mesmo tom de arrogância:
     - Se é o seu lugar, por que nos trouxe aqui?
     - Eu os trouxe??? – não compreendeu.
     - Talvez esteja se precipitando – responde Carmella ao ator, intervindo novamente em defesa de Dário –, ele pode realmente não saber o que está acontecendo.
     - Como poderia? – tornou Allan Jhonny – Se ele próprio, sabemos, é quem...
     - E por que haveria ele de mentir? – foi Adria que finalmente falou.
Mas o que era aquilo? Perguntava-se Dário. O que poderia estar acontecendo? Seria um médium e não sabia? Teria atraído aqueles “espíritos desencarnados”? Agora um o acusava de ser responsável pelo que acontecia, outra lhe defendia, dizendo que “talvez” nem soubesse que ele era o responsável...!
     - Ora, vejam só... – continuava a queixar-se Allan -. Se ele é quem escreve, quem mais poderia ser o responsável por estarmos aqui? Agora, além de fazer a besteira, essa de nos trazer, ainda não assume o próprio erro?
     - Eu não escrevi nada disso! – defendeu-se o escritor.
     - E por que acha que estamos aqui? – Allan Jhonny.
     - Deixe isso comigo – interveio Carmella, praticamente empurrando Allan do caminho e dirigindo-se a Dário -. É por isso mesmo que estão aqui, Dário Estão sem texto. Estão na erraticidade. Num estado neutro. São... São eles mesmos e não podem ser, entendeu?
     - Não – foi a resposta dele –. E você, o que está fazendo aqui com eles?
     - Eu espero alguma cena pra fazê-la acontecer.
     - Obrigado por aumentar a minha confusão. E ele? – apontou o Público.
     - Ora, o que lhe interessa em saber quem eu sou? – disse a figura, largada, lá na poltrona – Deve se preocupar com o quê me mostrar, e não em quem sou.
     - Você precisa voltar a escrever – foi Adria, doce como sempre.
     - Eu disse a vocês, ele não sabe escrever, nunca soube – novamente Allan, irredutível.
     - E por que tenho que escrever?
     - Porque você é o escritor – respondeuCarmella.
     - Toda a Linha depende de você – complementou a atriz.
     - Mas que Linha? Nem louco eu posso descansar?
     - Não está louco! – rebateu Carmella – Ao contrário, pode estar atravessando uma grande fase!
     - O que está dizendo...? – respondeu pensativo, ao mesmo tempo em que procurava algo de real nos olhos da juventude – Eu realmente precisaria de muito mais para estar na minha melhor fase.
     - Você já tem tudo o que precisa por hora. Parta daí, e o mundo poderá ser seu – foi ela, Adria.
     Os olhos de um e de outro se vasculhavam. Uma sensação de profundo valor foi o que as últimas palavras dela lhe causaram. Ele estava completamente confuso; mas aquela troca de olhares, naqueles milhares de palavras ditas pelo silêncio que os envolviam, ele sentia algo que não sabia descrever... Próximo a uma expectativa muito grande, que não deixava pistas. Mas a sensação de uma profunda mudança era muito forte. Não sabia qual seria a mudança, não sabia do que se tratava, mas via uma esperança muito grande delineada nos olhos da atriz.
     O encanto fora quebrado, mais uma vez, pela arrogância do ator:
     - Sejamos mais objetivos. É de fácil percepção que o suposto “deus” da Linha Teatral não está dentro das condições necessárias para continuar a exercer a função...
     - Ora, mas o que está dizendo? – revoltou-se Carmella, sendo interrompida pelo próprio escritor:
     - Deixe-o continuar. Algo me diz que preciso ouvi-lo agora.
     - Mas... – tentou Carmella intervir novamente, mas Dário lhe sinalizou um pedido de silêncio.
     Entendendo o domínio do momento, Allan Jhonny recebeu a palavra e limpou a garganta para iniciar, com ar de diplomata:
     - Perguntas. O nosso colega nos cerca de perguntas. Mas o que podemos lhe responder sem as respostas que necessitamos... E que nunca tivemos? Respostas que somente ele poderia nos dar. Pois bem, colega: se não podemos responder um ao outro, devemos esquecer as questões e partir para a objetividade.
     - Aonde você quer chegar? – preocupou-se Adria.
     - Eu irei, se não me interromperem novamente. Posso continuar?
     - Por favor – autorizou Dário.
     - Eu me proponho a continuar os roteiros da nossa Linha.
     - O quê?! – foi em dupla, Adria e Carmella.
     - Ora – zangou-se Allan -, ele não pode escrever mais! Não consegue!
     - Tudo bem, ele não pode escrever e atuar? – tentou livrar-se Dário.
     - A partir do momento que ele escreve, é escritor e não ator – insistiu Adria.
     - O que ele quer é uma inversão de polos – retrucou Carmella.
     - Errado, querida. O que quero são os dois polos. O ato de escrever deve ser atribuído a quem atua, não ao escritor. Não me interessa esse nome cheio de ideias dividas.
     - Ouça – Adria, aproximando-se de Dário –, há pouco tempo descobriu poderes que julga novos, mas são antigos. Use-os! Descubra o que é tudo isso! Há muito mais. Você, só você pode fazer o que lhe cabe.
     - Ok, sabidinha! Não se esqueça de que tudo isso pode ser apagado, perdido, esquecido... – chiou Alan.
     - Mas o que é real aqui fica! – voltou-se ela para Dário – Tudo o que é      verdadeiro em cada um aqui permanece.
     - E o que é verdadeiro? – perguntou Dário, em expectativa.
     - Tudo – segurou-lhe as mãos Adria - Tudo o que você sente é verdadeiro.

     Talvez faltasse alguma segurança maior para essa última viagem. Ou talvez lhe sobrassem travas que precisava soltar, a fim de tirar o máximo proveito possível de tal viagem. Iria, estava certo, aonde jamais chegou ou soube de alguém que chegasse. Ninguém. Nem mesmo o machadiano Brás Cubas, no ápice de seu delírio, alcançara tanto o quanto ele estava certo alcançar naquela viagem, para qual ele se achava devidamente preparado, exatamente por não ter a menor ideia de como seria, para onde iria, ou quem encontraria. Momento que lhe atravessava todos os sentidos, toda a expansão de seu subconsciente. Pela primeira vez, percebeu o seu sentimento por Adria como algo secundário. Outras coisas pareciam definitivamente esperarem e dependerem dele. O que seria? E em quê mudaria sua situação? Progresso? Regresso? Perguntas! Ivan tinha razão, ele o sabia; precisava livrar-se das perguntas e encontrar as respostas antes que elas chegassem e lhe surpreendessem. Assim seria. Assim escolheu e decidiu. Ele e suas incógnitas, como lhe dizia o poema de Zalis.
     Interna veterana. Ouvia dizer a canção, entre os roncos do público.
    Era de dentro, sabia; era antigo, percebia. Ele, que fez de todo aquele tempo uma estação presa em algum espaço, em alguma emoção, onde se limitara na vida, esperando outras portas se abrirem novamente. Quando se vai, aos poucos, sentindo que a vida não abre portas por si e, assim, se faz menor para os que esperam... Para os que querem, mas não saem do lugar. Ficam a esperar, ou dormem.
     Na espera que ele fizera de sua vida, ficou tarde depressa demais pra ele, e nenhuma porta se abriu. Agora, nessa viagem que faria, tinha esperança de resgatar muito do que poderia ter feito ou vivido; ou quem sabe, ainda, adiantar-se ao que estaria por vir, para, assim, se restabelecer em seu espaço, atravessando as portas que não se abriram. Viajaria numa espécie de máquina do tempo? Seria ilusão? Não, não acreditava mais em tal palavra.
     A definição era estranha, e se fazia forte a antítese. Percebia que não podia fugir daquela... Ficção (?), pois o que ele aprendera a chamar de realidade não prevalecia. A vida pensada, a razão, (!) onde estava? Onde sua lógica? Seu efeito? O que ele entendia por ficção ditava-lhe o ritmo de tudo num universo que parecia dispensar toda a física, a química, a filosofia... Toda a sensatez! Ora, vejam, a sensatez! Entre toda essa “piração”, estava certo de não querer mais voltar, e duvidoso de que poderia. Havia se decidido: embarcaria. Veria tudo aquilo, usaria seu poder e se transportaria para onde encontrasse sentido na falta de sentido. Onde lhe ficasse devidamente clara a falta de sentido no sentido. Encontraria algo. Não sabia, não temia mesmo o que pudesse ser.
Partiu. Para a realidade da ficção.
O Placebo
Enviado por O Placebo em 02/06/2018
Reeditado em 03/06/2018
Código do texto: T6353475
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