UM DIA
UM DIA aquela coisa estranha aconteceu pela primeira vez. Coisa que insistiria depois em acontecer. Tanto que, de exceção viraria regra. Aquilo era real, real demais. Foi assim que se deu.
Ainda cabisbaixo, olhando o teclado da máquina, Dário viu o enfileirado superior das teclas mudar de cor; esverdeou-se. Em seguida, o outro abaixo, depois o outro, então a escrivaninha. Assustado, percebeu que todo o espaço à sua volta ficara verde.
Boquiaberto e estático ficou, ao se pôr de pé e verificar que a luz verde vinha de um de seus canhões, o qual ele – único ali no quarto – não havia ligado. Seguiu com a cabeça o movimento que o equipamento fez, dirigindo a luz verde ao centro do tapete, no qual era confundida com a cor escura do mesmo.
Não teve tempo de fechar a boca: viu aproximar-se do foco de luz, uma mulher alta e magra, que lhe parecera muito familiar. Ela aproximou-se dele, firme e decidida. E, indiferente, completamente indiferente à sua surpresa. Olhando em seus olhos assustados, ela o indagou, certa do que fazia:
- E então, rapaz, onde está o texto?
Era Carmella, a sua primeira diretora de teatro! Sim, ele não podia estar enganado. Ele a reconheceria em qualquer lugar, mesmo depois de tantos anos. Ela não teve reação à sua surpresa; aliás, continuou indiferente. E sem lhe dar tempo para manifestar-se, dirigiu os olhos à escrivaninha e questionou:
- Onde está o texto, moço? O público precisa de espetáculo! Ah, até que enfim! – seguiu até a mesa e pegou algumas folhas em branco ao lado da máquina.
- Mas não tem nada escrito aí – apressou-se Dário.
- Claro que não, rapaz, o espetáculo é mímico, não exige texto algum – respondeu despreocupada.
- Mas... E o roteiro? Precisa de um roteiro!
Dário percebeu que Carmella já não o ouvia. Notara que ela parecia nem vê-lo mais. Agitada, ela voltou ao canto do tapete “examinando” as folhas em branco. Ao perceber que não era mais ouvido por ela, Dário recebeu um “peteleco” da razão: sua diretora..? Sua ex-diretora? Sim, não podia ter dúvidas, era ela: Carmella. Mas... Ali? O que fazia ela ali, naquela ilha tão pessoal? Apesar dos anos, ela lhe parecia a mesma de outros tempos. Tempos aqueles que lhe fizeram feliz, ou que ele próprio se fez feliz. Tanto acreditava, tanto sonhava e tanto criava! Sim... Era a sua professora que estava ali. E para não confirmar a própria insanidade, fechou o atrito mental assumindo então a imagem da amiga como um holograma.
Mas não descansaria a mente, não assim tão fácil, tão breve o quanto imaginava. Sua surpresa maior deu-se após ouvir o grito exigente dela, que ordenava a alguém que ele não via, do lado oposto ao que ele a observava:
- Onde estão os atores? – indagou queixosa – Preciso de um ator e de uma atriz, e depressa!
Seu depressa foi alto e claro e, imediatamente invadiram o tapete um jovem casal de artistas. Ele, Allan Jhonny, seu antigo rival. Trajava roupas de cores vibrantes, de grife, e trazia certo ar de superioridade. Trazia no rosto uma expressão de desdém para com tudo que lhe cercava. Ela era Adria. Tinha o ar sereno, um olhar meigo e curioso, e um brilho de juventude que a contornava como o efeito de uma luz de aurora.
Dário novamente ficou estático, ao ver se apagar a luz verde que imediatamente foi substituída por luzes coloridas, também vindas dos canhões espalhados em seu cenário. Todo o variado mais tornou-se lhe escuro e supérfluo. Também lhe desapareceram os “hologramas” de Allan Jhonny e da sua professora. Todo o foco estava voltado a ela, Adria.
Ele já não podia mais supor que fosse holograma... Definitivamente era ela, linda! Linda como sempre fora! Estava realmente ali, na sua frente. Não havia mudado. Seus cabelos longos e castanhos, sua boca bem desenhada, seus olhos cor de mel. Trajava uma roupa que ele muito viu naqueles tempos. Tempos aqueles em que a via sempre. Uma camiseta simples, de algodão, cor clara e uma bermuda azul, de colégio. Calçava um par de tênis também de cor clara e meias brancas baixas. Toda a sua pele levemente morena parecia-lhe dourada... Seu rosto de expressão jovial apresentava um sorriso encantador. A moça mais bonita que já vira!
Todo aquele encanto que Dário vivia e parecia não ter fim, foi finalmente quebrado após tão longos segundos. As imagens à sua volta tornaram-se visíveis e reais novamente; assim como o foco único, que se esverdeou outra vez e abriu mais a luz, iluminando novamente todo o tapete, onde ainda permaneciam Allan Jhonny e Carmella. Este, ao lado de Adria, e ambos frente à diretora. Esta, foi a responsável pela ação que quebrou todo o encanto de Dário, ou quase; porque ele ainda podia ver Adria, embora ela aparentasse não o ver mais. Assim como os outros, que pareciam não notá-lo.
- Por que demoraram tanto? – indagou a diretora ao casal, chamando assim, a atenção de Dário – Não sabem que não tolero atraso?
- Eu estava esperando o Allan – defendeu-se Adria, com ar de quem assume o erro.
Sua voz chegava aos ouvidos de Dário como uma sinfonia; motivo pelo qual ele não ousava articular palavra, a fim de não interrompê-la.
- Eu estava arrumando o meu cabelo e dando os últimos retoques em meu figurino – argumentou o ator, com sua dicção perfeita.
Só então Dário o reparou com mais atenção. Era o mesmo que naqueles tempos, tempos de palco, de textos e de alegria, fizera parte daquele grupo. Mais que isso, também mantinha certo sentimento afetuoso por Adria, assim como armas para um possível duelo no qual ele, Dário, não teria a menor chance.
- Não é preciso nada disso agora, vamos apenas ensaiar – foi Carmella que respondeu a argumentação de Allan Jhonny.
- E o que vamos ensaiar? Estou curiosa – perguntou Adria, realmente curiosa, e procurando desfazer o clima tenso que propiciava desenrolar-se naquele... Tapete.
- Um texto do escritor do grupo, Dário Lamasque – respondeu a diretora, mostrando as folhas que ainda tinha em mãos.
- Que legal! Vou adorar! – exclamou Adria, contente.
Encantado com ela, o escritor não percebeu que outro foco de luz invadiu sua escrivaninha, trazendo-o à cena. As duas olharam para ele.
- Não tinha um escritorzinho melhor não? – foi Allan Jhonny que provocou, enquanto deu alguns passos para frente, acompanhado por outro foco. O suficiente para Carmella intervir:
- Por que você diz isso?
- Porque sei o que estou dizendo. Sou apenas um ator, mas tenho certeza de que escreveria um texto bem melhor que qualquer um dos dele, que se diz escritor. Ele jamais seria um cidadão das letras; precisamos de algo melhor.
Foi quando Dário percebeu que estava em cena:
- Falam de mim?
- Não – ironizou Allan Jhonny – eu disse melhor.
- Por que você fala assim dele? – questionou Adria.
- O pior texto que eu escrever contra o melhor dele.
- Não fale assim! – reclamou Carmella – Ele sempre foi importante para o grupo como qualquer outro integrante.
- Ele está dizendo a verdade – foi Dário, atirando-se ao debate, como se de olhos fechados -. Você fala assim só pra me conformar.
- Ei! Não diga isso... – ofendeu-se ela – Sou uma diretora e digo o que penso!
Allan Jhonny animou-se:
- Mas é claro que ele tem razão.
Dário foi então tomado por emoções que o descontrolaram. Todo o passado estava ali, presente. Não podia nem tinha como, mas estava. Fosse um sonho e ele tentaria acordar. Mas seria o tal espetáculo fruto de uma suposta insanidade? Mas... Então estaria insano? E por que tal insanidade não se apresentou de uma forma que o deixasse feliz ao menos? Nem louco ele poderia ser feliz?! Uma onda de tristeza lhe dominou a voz ao dizer à diretora:
- Você nunca montou um de meus textos! Agora vem dizer que sou importante? Preste atenção... – pega algumas folhas sobre a escrivaninha – Olhe bem para estas folhas! Se eu realmente fosse um bom escritor, ao menos um bom escritor, elas estariam repletas de letrinhas! No entanto, onde estão? Onde está o texto? Onde?!
- Ei, está sendo injusto consigo mesmo; as coisas não são assim – contestou Carmella.
- Não, eu não estou – continuou, com a voz cada vez mais alterada – E tem mais: você é uma diretora, pode muito bem estar representando, pode muito bem estar me enganando de novo! Carmella ficou perplexa, muda, desorientada. A atriz tentou socorrê-la:
- Não fale assim, estamos querendo ajudá-lo. Também quero ajudá-lo, sou sua amiga – finaliza, com sincera compaixão na voz.
Dário não sabia de onde vinha sua tristeza ao ouvir a argumentação de sua amada. Talvez do substantivo “amiga”, com tanta definição, como a lhe negar qualquer outra possibilidade... Ou de outra versão que sua mente formara instantaneamente: a doçura, a preocupação, o olhar, tudo seria para corrompê-lo, para lhe fazer crer, enfim, para defender a diretora. A dúvida entre uma das duas hipóteses e a certeza de que só poderia ser uma delas, fez a tristeza de sua voz ser substituída pela revolta ao dizer, ainda que de costas para Adria:
- Amiga... Você, minha amiga. Quer saber de uma coisa? – teria gritado, caso ao virar-se para ela, não fosse barrado pelo seu olhar, que reverteu sua ação, fazendo-o baixar o tom de voz ao concluir: - Você também é uma atriz, pode muito bem estar me enganando também.
Foi preciso fechar os olhos para suportar aquela voz doce e triste lhe insistindo:
- Não, sou sua amiga. Já disse.
Num ímpeto, voltou-se de costas para ela, e, como tentasse impedir as lágrimas que já rolavam, gritou com voz firme, olhando para cima:
- Eu estou farto disso! Todos! Todos são meus amigos! Eu estou cheio de amigos, amigas... – volta-se para ela novamente, como dispensando sua amizade – Amigas!
Allan Jhonny, que calçava seus tênis, e se mostrava indiferente àquela discussão, acrescentou:
- Ele é louco, sempre foi. Passa horas diante de uma máquina de escrever e não consegue fazer nada que se aproveite pra nada.
- Ora, e com você, o que há? – quis saber a diretora que, ao lado da atriz, também se assustara com a atitude do escritor.
- Ora, nada. Eu estou calçando os meus tênis novamente; não estamos mais ensaiando. – ironizou o ator.
- Fora daqui!
O grito de Dário foi tão alto e repentino, que assustou os três “hologramas”. Allan Jhonny, pasmo, observava à distância, ainda com um dos tênis nas mãos. Dário continuava:
- Saiam daqui, agora!
- Mas eu... Eu não entendo... – balbuciou Carmella.
- Ah, não? Eu repito: eu disse fora!
Foi o suficiente. As duas, assustadas abandonaram a cena, simplesmente desaparecendo quando davam o primeiro passo. Alan Jhonny, um tanto impressionado, terminou de calçar os tênis, sem tirar os olhos de Dário. E este, exausto, trêmulo, nervoso, indeciso e, sobretudo entre lágrimas, volta à escrivaninha e baixa sua cabeça sobre a máquina.
Com pose de diplomata, Allan caminhou até Dário. Sua tranquilidade fazia-se aparente. Tirou as mãos dos bolsos e, resoluto aplaudiu com cinismo a ação do opositor.
- Muito bem... – tomou a palavra o “diplomata” – Gostei de ver...
Continuava a aplaudir. E Dário, lentamente ergueu a cabeça e ficou a observá-lo à sua volta. Ouvia as palavras daquela figura que lhe rondava o espaço.
- Falando a verdade, sabemos muito bem, nós dois, que... Os seus textos são realmente uma droga. Mas, como sou um artista, mais precisamente um ator, eu sinto, claro... Tenho meus sentimentos nobres e, pretendo ajudá-lo. Posso representar, ou até mesmo viver os seus personagens, só pra te dar uma ajudinha. Se você preferir, pode chamar isso de...
- Hipócrita! – concluiu Dário.
- Ah, não, disso não.
- Você é hipócrita! Saia já daqui também – ordenou-lhe, ao se pôr de pé.
- Ei! Além de não ter talento, é ingrato, é? – protestou Allan, que esquecendo-se das boas maneiras, partiria para cima de Dário. Mas este lhe apontou o dedo na cara:
- Eu já lhe disse, fora daqui!
- Pois saiba que só me retiro no final do ato – retrucou, parando no caminho e disfarçando o seu medo enquanto se recompunha.
- Ah, é? – observou Dário, enquanto pegou sua máquina de escrever para ameaçar o outro: - Pois veremos até onde vai a sua coragem...!
Foi o suficiente para provocar o riso do ator, o que logo se transformou numa sonora gargalhada, que escondia muito bem o seu medo. Arriscou:
- Quer me atingir com isso aí? Não poderia! Ou já se esqueceu de que sou apenas fruto de sua imaginação, de sua... Loucura?
- Foi você quem pediu – respondeu o escritor, simulando decisão – ameaçou-o novamente, já com a máquina “armada” para ele. A atitude de Alan Jhonny foi sinistra: cruzou os braços e pôs-se a rir sarcasticamente.
- Pensando bem, eu vou me preparar para o próximo ato – finalizou ele, parado, de braços cruzados, enquanto sua imagem se desintegrava.
Sentindo-se aniquilado, Dário sentou-se novamente, percebendo que todos os focos tinham se apagado. Foi quando se deu conta de que estava no completo escuro. Era noite.
UM DIA aquela coisa estranha aconteceu pela primeira vez. Coisa que insistiria depois em acontecer. Tanto que, de exceção viraria regra. Aquilo era real, real demais. Foi assim que se deu.
Ainda cabisbaixo, olhando o teclado da máquina, Dário viu o enfileirado superior das teclas mudar de cor; esverdeou-se. Em seguida, o outro abaixo, depois o outro, então a escrivaninha. Assustado, percebeu que todo o espaço à sua volta ficara verde.
Boquiaberto e estático ficou, ao se pôr de pé e verificar que a luz verde vinha de um de seus canhões, o qual ele – único ali no quarto – não havia ligado. Seguiu com a cabeça o movimento que o equipamento fez, dirigindo a luz verde ao centro do tapete, no qual era confundida com a cor escura do mesmo.
Não teve tempo de fechar a boca: viu aproximar-se do foco de luz, uma mulher alta e magra, que lhe parecera muito familiar. Ela aproximou-se dele, firme e decidida. E, indiferente, completamente indiferente à sua surpresa. Olhando em seus olhos assustados, ela o indagou, certa do que fazia:
- E então, rapaz, onde está o texto?
Era Carmella, a sua primeira diretora de teatro! Sim, ele não podia estar enganado. Ele a reconheceria em qualquer lugar, mesmo depois de tantos anos. Ela não teve reação à sua surpresa; aliás, continuou indiferente. E sem lhe dar tempo para manifestar-se, dirigiu os olhos à escrivaninha e questionou:
- Onde está o texto, moço? O público precisa de espetáculo! Ah, até que enfim! – seguiu até a mesa e pegou algumas folhas em branco ao lado da máquina.
- Mas não tem nada escrito aí – apressou-se Dário.
- Claro que não, rapaz, o espetáculo é mímico, não exige texto algum – respondeu despreocupada.
- Mas... E o roteiro? Precisa de um roteiro!
Dário percebeu que Carmella já não o ouvia. Notara que ela parecia nem vê-lo mais. Agitada, ela voltou ao canto do tapete “examinando” as folhas em branco. Ao perceber que não era mais ouvido por ela, Dário recebeu um “peteleco” da razão: sua diretora..? Sua ex-diretora? Sim, não podia ter dúvidas, era ela: Carmella. Mas... Ali? O que fazia ela ali, naquela ilha tão pessoal? Apesar dos anos, ela lhe parecia a mesma de outros tempos. Tempos aqueles que lhe fizeram feliz, ou que ele próprio se fez feliz. Tanto acreditava, tanto sonhava e tanto criava! Sim... Era a sua professora que estava ali. E para não confirmar a própria insanidade, fechou o atrito mental assumindo então a imagem da amiga como um holograma.
Mas não descansaria a mente, não assim tão fácil, tão breve o quanto imaginava. Sua surpresa maior deu-se após ouvir o grito exigente dela, que ordenava a alguém que ele não via, do lado oposto ao que ele a observava:
- Onde estão os atores? – indagou queixosa – Preciso de um ator e de uma atriz, e depressa!
Seu depressa foi alto e claro e, imediatamente invadiram o tapete um jovem casal de artistas. Ele, Allan Jhonny, seu antigo rival. Trajava roupas de cores vibrantes, de grife, e trazia certo ar de superioridade. Trazia no rosto uma expressão de desdém para com tudo que lhe cercava. Ela era Adria. Tinha o ar sereno, um olhar meigo e curioso, e um brilho de juventude que a contornava como o efeito de uma luz de aurora.
Dário novamente ficou estático, ao ver se apagar a luz verde que imediatamente foi substituída por luzes coloridas, também vindas dos canhões espalhados em seu cenário. Todo o variado mais tornou-se lhe escuro e supérfluo. Também lhe desapareceram os “hologramas” de Allan Jhonny e da sua professora. Todo o foco estava voltado a ela, Adria.
Ele já não podia mais supor que fosse holograma... Definitivamente era ela, linda! Linda como sempre fora! Estava realmente ali, na sua frente. Não havia mudado. Seus cabelos longos e castanhos, sua boca bem desenhada, seus olhos cor de mel. Trajava uma roupa que ele muito viu naqueles tempos. Tempos aqueles em que a via sempre. Uma camiseta simples, de algodão, cor clara e uma bermuda azul, de colégio. Calçava um par de tênis também de cor clara e meias brancas baixas. Toda a sua pele levemente morena parecia-lhe dourada... Seu rosto de expressão jovial apresentava um sorriso encantador. A moça mais bonita que já vira!
Todo aquele encanto que Dário vivia e parecia não ter fim, foi finalmente quebrado após tão longos segundos. As imagens à sua volta tornaram-se visíveis e reais novamente; assim como o foco único, que se esverdeou outra vez e abriu mais a luz, iluminando novamente todo o tapete, onde ainda permaneciam Allan Jhonny e Carmella. Este, ao lado de Adria, e ambos frente à diretora. Esta, foi a responsável pela ação que quebrou todo o encanto de Dário, ou quase; porque ele ainda podia ver Adria, embora ela aparentasse não o ver mais. Assim como os outros, que pareciam não notá-lo.
- Por que demoraram tanto? – indagou a diretora ao casal, chamando assim, a atenção de Dário – Não sabem que não tolero atraso?
- Eu estava esperando o Allan – defendeu-se Adria, com ar de quem assume o erro.
Sua voz chegava aos ouvidos de Dário como uma sinfonia; motivo pelo qual ele não ousava articular palavra, a fim de não interrompê-la.
- Eu estava arrumando o meu cabelo e dando os últimos retoques em meu figurino – argumentou o ator, com sua dicção perfeita.
Só então Dário o reparou com mais atenção. Era o mesmo que naqueles tempos, tempos de palco, de textos e de alegria, fizera parte daquele grupo. Mais que isso, também mantinha certo sentimento afetuoso por Adria, assim como armas para um possível duelo no qual ele, Dário, não teria a menor chance.
- Não é preciso nada disso agora, vamos apenas ensaiar – foi Carmella que respondeu a argumentação de Allan Jhonny.
- E o que vamos ensaiar? Estou curiosa – perguntou Adria, realmente curiosa, e procurando desfazer o clima tenso que propiciava desenrolar-se naquele... Tapete.
- Um texto do escritor do grupo, Dário Lamasque – respondeu a diretora, mostrando as folhas que ainda tinha em mãos.
- Que legal! Vou adorar! – exclamou Adria, contente.
Encantado com ela, o escritor não percebeu que outro foco de luz invadiu sua escrivaninha, trazendo-o à cena. As duas olharam para ele.
- Não tinha um escritorzinho melhor não? – foi Allan Jhonny que provocou, enquanto deu alguns passos para frente, acompanhado por outro foco. O suficiente para Carmella intervir:
- Por que você diz isso?
- Porque sei o que estou dizendo. Sou apenas um ator, mas tenho certeza de que escreveria um texto bem melhor que qualquer um dos dele, que se diz escritor. Ele jamais seria um cidadão das letras; precisamos de algo melhor.
Foi quando Dário percebeu que estava em cena:
- Falam de mim?
- Não – ironizou Allan Jhonny – eu disse melhor.
- Por que você fala assim dele? – questionou Adria.
- O pior texto que eu escrever contra o melhor dele.
- Não fale assim! – reclamou Carmella – Ele sempre foi importante para o grupo como qualquer outro integrante.
- Ele está dizendo a verdade – foi Dário, atirando-se ao debate, como se de olhos fechados -. Você fala assim só pra me conformar.
- Ei! Não diga isso... – ofendeu-se ela – Sou uma diretora e digo o que penso!
Allan Jhonny animou-se:
- Mas é claro que ele tem razão.
Dário foi então tomado por emoções que o descontrolaram. Todo o passado estava ali, presente. Não podia nem tinha como, mas estava. Fosse um sonho e ele tentaria acordar. Mas seria o tal espetáculo fruto de uma suposta insanidade? Mas... Então estaria insano? E por que tal insanidade não se apresentou de uma forma que o deixasse feliz ao menos? Nem louco ele poderia ser feliz?! Uma onda de tristeza lhe dominou a voz ao dizer à diretora:
- Você nunca montou um de meus textos! Agora vem dizer que sou importante? Preste atenção... – pega algumas folhas sobre a escrivaninha – Olhe bem para estas folhas! Se eu realmente fosse um bom escritor, ao menos um bom escritor, elas estariam repletas de letrinhas! No entanto, onde estão? Onde está o texto? Onde?!
- Ei, está sendo injusto consigo mesmo; as coisas não são assim – contestou Carmella.
- Não, eu não estou – continuou, com a voz cada vez mais alterada – E tem mais: você é uma diretora, pode muito bem estar representando, pode muito bem estar me enganando de novo! Carmella ficou perplexa, muda, desorientada. A atriz tentou socorrê-la:
- Não fale assim, estamos querendo ajudá-lo. Também quero ajudá-lo, sou sua amiga – finaliza, com sincera compaixão na voz.
Dário não sabia de onde vinha sua tristeza ao ouvir a argumentação de sua amada. Talvez do substantivo “amiga”, com tanta definição, como a lhe negar qualquer outra possibilidade... Ou de outra versão que sua mente formara instantaneamente: a doçura, a preocupação, o olhar, tudo seria para corrompê-lo, para lhe fazer crer, enfim, para defender a diretora. A dúvida entre uma das duas hipóteses e a certeza de que só poderia ser uma delas, fez a tristeza de sua voz ser substituída pela revolta ao dizer, ainda que de costas para Adria:
- Amiga... Você, minha amiga. Quer saber de uma coisa? – teria gritado, caso ao virar-se para ela, não fosse barrado pelo seu olhar, que reverteu sua ação, fazendo-o baixar o tom de voz ao concluir: - Você também é uma atriz, pode muito bem estar me enganando também.
Foi preciso fechar os olhos para suportar aquela voz doce e triste lhe insistindo:
- Não, sou sua amiga. Já disse.
Num ímpeto, voltou-se de costas para ela, e, como tentasse impedir as lágrimas que já rolavam, gritou com voz firme, olhando para cima:
- Eu estou farto disso! Todos! Todos são meus amigos! Eu estou cheio de amigos, amigas... – volta-se para ela novamente, como dispensando sua amizade – Amigas!
Allan Jhonny, que calçava seus tênis, e se mostrava indiferente àquela discussão, acrescentou:
- Ele é louco, sempre foi. Passa horas diante de uma máquina de escrever e não consegue fazer nada que se aproveite pra nada.
- Ora, e com você, o que há? – quis saber a diretora que, ao lado da atriz, também se assustara com a atitude do escritor.
- Ora, nada. Eu estou calçando os meus tênis novamente; não estamos mais ensaiando. – ironizou o ator.
- Fora daqui!
O grito de Dário foi tão alto e repentino, que assustou os três “hologramas”. Allan Jhonny, pasmo, observava à distância, ainda com um dos tênis nas mãos. Dário continuava:
- Saiam daqui, agora!
- Mas eu... Eu não entendo... – balbuciou Carmella.
- Ah, não? Eu repito: eu disse fora!
Foi o suficiente. As duas, assustadas abandonaram a cena, simplesmente desaparecendo quando davam o primeiro passo. Alan Jhonny, um tanto impressionado, terminou de calçar os tênis, sem tirar os olhos de Dário. E este, exausto, trêmulo, nervoso, indeciso e, sobretudo entre lágrimas, volta à escrivaninha e baixa sua cabeça sobre a máquina.
Com pose de diplomata, Allan caminhou até Dário. Sua tranquilidade fazia-se aparente. Tirou as mãos dos bolsos e, resoluto aplaudiu com cinismo a ação do opositor.
- Muito bem... – tomou a palavra o “diplomata” – Gostei de ver...
Continuava a aplaudir. E Dário, lentamente ergueu a cabeça e ficou a observá-lo à sua volta. Ouvia as palavras daquela figura que lhe rondava o espaço.
- Falando a verdade, sabemos muito bem, nós dois, que... Os seus textos são realmente uma droga. Mas, como sou um artista, mais precisamente um ator, eu sinto, claro... Tenho meus sentimentos nobres e, pretendo ajudá-lo. Posso representar, ou até mesmo viver os seus personagens, só pra te dar uma ajudinha. Se você preferir, pode chamar isso de...
- Hipócrita! – concluiu Dário.
- Ah, não, disso não.
- Você é hipócrita! Saia já daqui também – ordenou-lhe, ao se pôr de pé.
- Ei! Além de não ter talento, é ingrato, é? – protestou Allan, que esquecendo-se das boas maneiras, partiria para cima de Dário. Mas este lhe apontou o dedo na cara:
- Eu já lhe disse, fora daqui!
- Pois saiba que só me retiro no final do ato – retrucou, parando no caminho e disfarçando o seu medo enquanto se recompunha.
- Ah, é? – observou Dário, enquanto pegou sua máquina de escrever para ameaçar o outro: - Pois veremos até onde vai a sua coragem...!
Foi o suficiente para provocar o riso do ator, o que logo se transformou numa sonora gargalhada, que escondia muito bem o seu medo. Arriscou:
- Quer me atingir com isso aí? Não poderia! Ou já se esqueceu de que sou apenas fruto de sua imaginação, de sua... Loucura?
- Foi você quem pediu – respondeu o escritor, simulando decisão – ameaçou-o novamente, já com a máquina “armada” para ele. A atitude de Alan Jhonny foi sinistra: cruzou os braços e pôs-se a rir sarcasticamente.
- Pensando bem, eu vou me preparar para o próximo ato – finalizou ele, parado, de braços cruzados, enquanto sua imagem se desintegrava.
Sentindo-se aniquilado, Dário sentou-se novamente, percebendo que todos os focos tinham se apagado. Foi quando se deu conta de que estava no completo escuro. Era noite.