TENTAVA ESCREVER novamente. Algumas folhas quase em branco espalhadas pela mesa rodeavam a máquina. Ele tentava uma capa, mas não tinha certeza sequer do título. - Será que devo realmente me preocupar com o título agora? A medida que se repetia a mesma pergunta, arrancava a folha da máquina. Enfim, desistiu do título. Parou por alguns instantes. E o público? Insistia. Deveria realmente se preocupar com o público? Pensava que sim, mas as dúvidas eram-lhe insistentes. A ideia surgiu: o que interessaria as pessoas, se não algo com que elas se identificassem? Claro! O cotidiano de uma cidade grande! Bom... O dia, todos já conheciam, sabiam, viviam... Mas a noite, a noite era para poucos, de poucos. A maioria apenas ouvia falar sobre as noites, as madrugadas. A noite da burguesia? Qual? Claro, a da classe baixa, pois necessitava sempre de representantes. Percebia que a ideia ia surgindo, enquanto sua imaginação comandava a mente, que orientava a ação dos dedos nas teclas da velha máquina. Claro! Transformaria o escuro da noite! Por que não pensara nisso antes?!
     - Vejamos... Uma garota sozinha na madrugada, num lugar desconhecido, e com muito medo, quando repentinamente... Um grito! E... – parou de datilografar por um instante – Ou seria exatamente o contrário?

     Mas sabia o formato: seria uma peça teatral.  Assim, tornou a arrancar a folha. Ao pegar outra, observou a folha amassada... Seria mesmo aquele o início? Pensou. Procurou em sua imaginação; mas esta lhe negou qualquer resposta imediata. Assim, ele levantou-se e procurou um disco na estante. Ligou o aparelho e aumentou o volume. Recebeu, contente, a volta da esperança. Esta lhe veio enfim, novamente, em forma de inspiração. E que forma teria sua inspiração? Tudo era questão de momento. E naquele exato, a alegre melodia orquestrada bem que lhe permitiu continuar na mesma ideia... Um ponto de ônibus, madrugada; uma moça sozinha. Mas algo lhe dizia que não seria exatamente como ele imaginava.

Madrugada. Num ponto de ônibus, uma moça está sozinha. Impaciente, está de braços cruzados, enquanto bate insistente um dos pés no chão. Não aparenta ter medo. Após determinado tempo, um homem se aproxima e, depois de ouvir por alguns instantes as batidinhas do pé da moça, perde a paciência e lhe pergunta:

HOMEM: A senhorita não enjoa?
MOÇA: Não o conheço. HOMEM Eu também não a conheço e, no entanto, estou falando com você            
MOÇA: Por ser muito  atrevido.
HOMEM : Êêêi! Calminha aí! Eu só estou tentando lhe dizer que as  batidinhas do seu pé estão me incomodando!
MOÇA: (Irônica) Oh! Olha a minha cara de preocupada!
HOMEM: Puxa,educadinha, você, enh...
MOÇA: Ah, vê se não enche, tá legal?
HOMEM : Escuta aqui, os seus pais nunca lhe deram umas palmadinhas no bumbum não, é? Você é uma menininha muito mal educada!               
MOÇA: “Menininha”? Quantos anos acha que eu tenho?
HOMEM: Uns doze, talvez... Mas longe dos treze.
MOÇA: Pois fique você sabendo que eu completo dezesseis hoje mesmo, ouviu?           
HOMEM: É mesmo? Se fosse um pouquinho mais educada, eu lhe  daria os parabéns.      
MOÇA: Não preciso de seus parabéns, e nem estou lhe pedindo.
HOMEM: Ei! Eu não tenho culpa se o ônibus demora, tá legal?
MOÇA: Qual é, cara? Você é à pilha, é?!
HOMEM :E os seus pais  nunca lhe disseram que os mais velhos devem ser tratados por "senhor" ou por "senhora", e não por "você"?
MOÇA: Pois fique sabendo que é exatamente pelo fato de eu ser  muito educada que não vou respondê-lo!         


     O som da máquina parou. Dário tinha os dedos no alto, as mãos prontas para avançarem sobre o teclado da máquina, mas algo o deteve. Algo que já lhe era familiar: o branco. Repentino, feroz e implacável! Ele não havia saído dali, apenas dera um tempo. Tempo esse que nem ele próprio – nosso protagonista – podia precisar com exatidão. Mas pintara. Toda a cena ficou congelada em sua mente. Uma onda de raiva o invadiu. Raiva, talvez, de si mesmo. - E agora? O que eu escrevo? O que esse cara aí vai falar? Vamos! - ordenou ao personagem que, ali, ao seu lado, onde se desenrolava a cena, continuava estático – Fale alguma coisa! O que vai dizer?!?!?!
     - Ora, você é quem deve saber, não eu – lhe respondeu, de sua mente, o personagem -. Você que é o escritor.
     - Mas eu não sei... – lamentou o nosso amigo – Mas preciso mantê-los em minha mente...!
     No entanto, cansados de esperar, as duas figuras da cena se entreolharam e tomaram a decisão: deram de ombros e saíram de cena. Ou melhor, da mente de Dário. - Não, não façam isso, por favor! Não vão embora! Vendo mais uma ideia sua aniquilada, grita, revoltado: - Não dá mais, não dá mais, não dá! Por quê? Por quê? Droga! Os dedos assanharam os cabelos numa atitude comum aos seus momentos de desespero. Dário levantou; quis andar e parou, quis parar e andou... Enfim, perdido, procurava respostas. Sua mente parecera naquele instante um imenso campo vazio. Um estádio de futebol onde os jogadores esperavam o público e a bola. Estava num safari onde os únicos animais que existiam eram as formigas que passavam pelo chão, indiferentes a sua busca. Algo como uma plateia lotada sem espetáculo no palco; ou (e por que não?) um espetáculo pronto sem ninguém na plateia.      Repentinamente foi interrompido por uma incômoda luz verde, vinda de um de seus canhões que iluminou o seu rosto. Não sabia mais onde estava, afinal, avistava algo como sua própria escrivaninha, sem ele sentado à cadeira. Mas aquela imagem também foi, aos poucos, se desintegrando. Tudo era um grande campo branco, um vazio, um nada... Uma página? Mas não demorou muito para entrar alguém.
     Um homem totalmente vestido de preto entrou trazendo uma prancheta e uma caneta. E observando aquele vazio todo, tomava algumas notas, distraído naquilo que parecia ser seu trabalho. Não notou uma moça, também trajando preto, que surgira do outro lado, procurando algo com as mãos, como se estivesse cega. Dário podia ouvir suas palavras.
     - Antigamente havia uma escrivaninha aqui... Com uma máquina, folhas e cadernos espalhados em cima. Lembro-me bem das vistosas letras escritas na folha da máquina. Mas não me lembro bem do que elas diziam. Nota, enfim, o homem que anotava na prancheta. - Por favor...
     - Hã? – fez ele, sem ao menos olhar para trás. - Não havia uma escrivaninha aqui?
     - Aqui? Aqui onde?
     - Aqui onde estamos; se eu disse aqui só pode ser onde estamos.
     - Como? Existem enésimos aqui’s! – respondeu-lhe, sem lhe dar muita atenção. A situação era nova para ela. Quem era aquele homem, e que conversa era aquela, tão surreal? “Aquis”? - Aonde?
     - Aqui. Ela não teve dúvidas: - Você está louco!
     - Já estive, mas não estou mais. Você, se não esteve, ainda vai estar.
     - Quê?
     O homem segue suas anotações com sua prancheta, sem ao menos considerar o estranhamento da moça. Ela resolve “se entregar” aquela loucura toda, na tentativa de compreender algo:
     - Pra quê usa essa prancheta?
     - Para dar sentido – foi sua resposta pronta.
     - Dar sentido a quê?
     - À falta de sentido.
     - Mas isso não tem sentido!  – observou ela, enquanto abria os braços mostrando todo aquele vão.
     - Por isso estou aqui. E pelas suas palavras, noto que estou fazendo um ótimo trabalho.
     Ela teve uma ideia que poderia salvá-la, enfim: ler suas anotações.
     - O que tem escrito aí?
     Ele para. Olha para ela, olha para a prancheta. Olha para a prancheta, olha para ela... E surpreende-se, enfim:
     - Não há nada escrito aqui.
     - Não há? Então pra que serve? Que sentido pode dar, e a quê?
     Ele deu alguns passos indecisos, olhando pra cima. Olha para ela novamente, com um olhar vago, no qual ela notou que ele era quem precisava de ajuda naquele momento.
     - Espere. Então tem alguma coisa errada... Ele deve estar dormindo, ou então indeciso, pensando.
     - Ele quem???
     - O Escritor, ora.
     - O escritor? - Claro, se estamos aqui, é porque ele está escrevendo; ou pelo menos pensando.
     - Como é?!?!?! - ... Mas se eu me lembro de que sou um personagem escrito pelo escritor, significa que ele não está escrevendo...
     - Mas...
     - Como também pode significar o contrário!

     Enfim, algo passou pela cabeça dela: estaria morta?
     - Isso é o “além”? – perguntou, enfim.
      - O além? De certa forma sim, o além das páginas, das ideias, da consciência e da realidade. Ele está escrevendo você também.
     - Escrevendo a mim? Quem?
     - O escritor.
     Agora a observa bem. Um sorriso lhe ilumina o rosto, tinha a resposta:
      - Hum... Você ainda é uma personagem! E uma personagem perdida. Não deve ser dessa cena, nem mesmo desse texto. Mas ainda assim, ambos somos criados pelo escritor.
     - Ei, de que você está falando, afinal? Estou aqui a um tempão, numa conversa completamente surreal com você, e...
     - Espere...! Aqui! Essa palavra me fez lembrar o início da cena.
     - E daí? - E daí que, voltando ao início, poderemos tentar voltar onde você estava antes de aparecer nessa cena.    
     - É...?
     - Lembra-se de sua primeira fala?
     - Eu acho que não.
     - Então, vamos voltar às posições iniciais, isso deve ajudar.
     
      Voltou-se toda a luz da cena à pequena mesa com a velha máquina exposta no canto esquerdo do vazio. Mas toda a extensão deste vazio simplesmente era preenchida diante de seus olhos: sua cidade se desenhava a volta de tudo, seu bairro, sua rua, seu quarteirão. E sua calçada, seu quintal, sua casa, seu quarto. Avistava a ele próprio sentado à escrivaninha. Sentiu algo mover-se atrás de si, como se pedisse passagem, e afastou-se: era uma das quatro paredes de seu quarto, que se reerguia sabe-se lá de onde, diante de seus olhos. Voltou-se toda a luz à pequena mesa com a velha máquina exposta no canto esquerdo do palco. Gradualmente, a mobília de seu quarto, e seus objetos iam sendo reintegrados, assim como o esquadro das paredes. Abriu os olhos, assustado, e deparou-se consigo. Exatamente o que vira, naquele quarto. Ali, só, sentado; inquieto por dentro e estático por fora. Como vira de outro lugar. Agora ele estava em seu quarto realmente; escritório, refúgio, enfim... Em seu mundo pessoal. Inquietou-se de todo, levantou-se e, sem saber que direção tomar, tornou a sentar.
     Na folha, “Condução Oculta”. Arrancou-a da máquina e ficou a observar o rolo negro da velha Olivetti. Pôs-se a pensar no tempo em que tudo era mágico, quando ele estava com ela ao menos nos ensaios, nas oficinas de teatro. Não lhe interessava mais uma comédia naquele momento. Ele precisava mesmo era de aproveitar o seu estado emocional e transformá-lo em forma de expressão para passar uma mensagem à ela. Sim! Precisava escrever algo por tudo o que sentia naquele momento! Por que preocupar-se com uma comédia? Estava assim perdendo qualidade, bloqueando sua inspiração. Sentia-se preso por tudo aquilo, sufocado, e amava ardentemente aquela moça. E também sabia que ela jamais o deixaria em paz.
     Para ela, para ele; por tudo o que estava passando, enrolou uma folha na máquina, colocou outro disco na agulha e foi sentar-se à escrivaninha. A canção era Pour Elise, de Beethoven. Enquanto o piano de Walt Barks fazia-se ouvir, as mãos do escritor, ágeis, violentavam o teclado da máquina, num ato que qualquer um que visse juraria que ele não tinha a menor ideia do que escrevia. No entanto, mais uma vez ele estava enganado sobre o que escreveria.
O Placebo
Enviado por O Placebo em 30/05/2018
Reeditado em 30/05/2018
Código do texto: T6350436
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