Os Portais de Dário
DIZIAM DELE que era alucinado, doente, louco... Coisas do tipo. Inclusive muitos familiares. Isso porque só pensava em textos, em livros, em peças de teatro, em escrever. Era uma das paixões da sua vida. Uma? Era só isso! Só pensava nisso, só fazia isso! Porque só viam isso. Só o viam por fora. Ninguém sabia dele por dentro, ninguém sabia o que se passava. No início, achou que a força que imprimia em tudo o que fazia com a máquina de escrever era pra esquecer o outro assunto. Não era. Parecia que fazia aquilo há anos. Começou a devorar livros, revistas e gibis. E escrevia, escrevia, escrevia. Aquilo foi bom pra ele. Estava há quase quatro anos naquilo. Mas não resolvera "o outro aquilo", que chamava de problema. Era algo muito forte, ele sabia. E por muitas vezes, o que aprendera a fazer com as letras só enaltecia aquilo que a vida lhe apresentara, e que ele ainda tratava como um problema.
O curso foi nos anos noventa, Adria Ferraz tinha apenas treze anos de idade; quase dois a menos que Dário. E foram quase quatro anos consecutivos a vendo semanalmente. A brincadeira de escrever começou quando escreveu as primeiras letras para ela – e ela nem sabia. A brincadeira foi crescendo, e se tornando maior que a de fazer teatro, que era a proposta do curso. Esquecia o teatro dia após dia; não esquecia as letras. Não esqueceria Adria. Nunca.
Duas razões impediam o jovem Dário, aqui com dezenove anos, a encarar Adria como o seu primeiro Amor. A primeira delas, é que não havia lhe dado um beijo sequer. E isso se juntava ao desejo de beijar uma garota. Beijar ardentemente, e sentir o prazer dela em ser beijada. A segunda, é que jamais houvera outro Amor antes dela, o que a desclassificaria do titulo de primeira, a colocando como única. Queria sentir uma garota entre seus braços. Estava preso, e não podia fazê-lo. No entanto, se perguntava ao mesmo tempo: e o que sentia? Não era Amor? Não era também algo que jamais sentira? Nesse caso, não poderia dizer que era a primeira vez que sentia Amor? Talvez o fosse. Mas não foi só por todos esses motivos que resolveu deixar a história de lado. É verdade que a decisão veio depois que terminou a última oficina teatral, o último ano daquela turma. Mas também porque ela, Adria, havia lhe mostrado algo que ele gostava, e que fazia bem: escrever. Era, então, quase tudo o que fazia, foi um presente que ela lhe deu. E depois brigou com ela, sem que ela o soubesse também; e terminou tudo entre eles! Não pensaria mais nela, não alimentaria mais nenhuma esperança de ter o seu Amor, e não lhe escreveria mais nada também. Achava justo o seu próprio comportamento. Claro, quando soube que, mesmo depois de tanta dedicação a ela, ela estava namorando, e com outro. Outro, que nunca lhe escrevera nada! Que não a amava do mesmo jeito. Ele havia entregue à amiga – se é que podia chamá-la assim ao menos – a sua adolescência, “os melhores anos da sua vida”. Desde quando soube, e da maneira mais covarde possível (ela lhe sorrindo ao telefone e dizendo), decidiu encerrar-se para ela. Não lhe mandaria mais uma linha sequer. Maldito hábito aquele que houvera adquirido após o curso, o de lhe enviar contos, poesias, e de lhe ligar praticamente todas as semanas! Depois de um ano e meio daquele costume, parou. Ela que ficasse com o namorado. Se ela o achava um bom escritor, ótimo, ela não era uma boa leitora; não entendeu nada do que ele lhe escreveu.
Mas o tempo passara, e mostrara a Dário que não conspirava a favor de seus planos. A sua imaginação iniciava trabalhos, mas não os concluía. Ela parava sempre no mesmo empecilho: Adria.
Na ocasião em que lhe veio a ideia de “Os 4 Cavalheiros do Outubro de 86”, definiu bem uma série de coisas; e estava certo do que fazia. Glauco e seus três amigos testemunhariam uma experiência alienígena que transformaria as suas vidas para sempre.
Em 1996, quando teve a ideia, Dário contava dezesseis anos. Viu a entrevista de um músico que relatava a história da formação de sua banda. Dizia o músico, que foi no segundo ano da banda, em 1986, que gravaram o primeiro disco. Disse ainda, que naquele ano de 1985 não havia nada pra se fazer na cidade deles, e todo o país estava concentrado num festival internacional de música que aconteceria noutra capital. Os estudantes então bolaram um festival de cultura na cidade. Quem cantava cantaria, quem atuasse atuaria, quem pintasse exibiria seus quadros etc. Foi onde estrearam a banda, amadora, juntos com todos os outros amadores. Bastou ouvir aquilo, e Dário começou a imaginar que outro tipo de evento poderia acontecer numa cidade como aquela. Certamente, um cenário perfeito para uma ação secreta! Muito mato. As pessoas quase não sairiam de suas casas, nada pra ver. Uma imensidão de deserto verde! Sua imaginação pairava no ar, circundando-o. Uma propaganda de chocolate seguiu-se da entrevista, no qual um garotinho, com a boca toda lambuzada, dizia sorrindo: “Um sabor do outro mundo”. O nome do produto era “Galácticos”. Dário entendeu o recado. Não foi para os milhões de telespectadores aquela frase do garotinho, foi pra ele. Uma ação alienígena num local isolado, para o qual o país parecia de costas naquele momento. E o que levaria aqueles quatro rapazes para aquele local? Isso ele descobriria. Precisava antes saber de onde viriam.
Claro! Aquele músico havia dado a ideia a Dário: fariam parte daquele momento.
Assim, surgiu o Glauco, o cabeça da organização, o Admilson, que era humorista, o Augusto, que escrevia contos e poesia. O quarto... Bom, era justo que Dário não se lembrasse mesmo do nome, não tinha. Pois quando ele se aproximava do campo minado que era a mente de Dário, houve uma interrupção. Uma interrupção surreal. E se Dário quisesse publicar tal cena, talvez desse um belo conto. Ele jamais esquecera aquilo, e jamais entendeu também, por mais que tenha se esforçado para tal... Surreal.
Com certa ansiedade, o rapaz vinha um tanto trôpego pelo caminho, segurando a mão da moça que o acompanhava. Parecia bastante empolgado, e ela demonstrava satisfação, no que parecia uma fuga. Introduziram-se capim adentro, assustando três ou quatro vacas que pastavam ali perto. Pararam. Ele a beijou com sofreguidão, ao que ela lhe advertiu sobre as vacas. Pro diabo com as vacas! O que elas poderiam fazer? Mugir? Que mujam, assim encobre o barulho que podemos fazer. Parou e olhou malicioso para o corpo da moça:
- Ou melhor, que vamos fazer.
E após outro beijo afobado, ela deitou a cabeça para trás e fechou os olhos, mordendo os lábios com fissura, enquanto ele apertava seus seios por cima da blusa, e desamarrava o lacinho que unia o decote. Foi quando ela soltou um grito alto:
- Aaaaiii!
- Apertei forte? – perguntou, tirando a cara dos seios da moça, e tirando a cabeça.
- Sua vadia!
E o susto dele foi tanto quanto o dela. A voz era de uma mulher que, atrás da jovem (já com os seios nus), puxou-lhe a cabeleira quando ela deitava a cabeça de prazer.
- Quem é essa?! – virou-se, desvencilhando-se dela e olhando a cara da agressora.
- Eu não sei, eu não sei – respondia o rapaz, atônito, enquanto escondia com a mão a tensão no zíper da bermuda.
A agressora não se deu por satisfeita:
- Só não te chamo de vaca em respeito a elas – e apontou para os animais, que pastavam tranquilos -. Agora some daqui, antes que eu te arrebente a fuça!
- Joanildo, me diz quem é essa mulher!
- Eu não sei, Marinalva, juro que não sei! – respondeu o rapaz, completamente confuso com a cena.
- E você não vai fazer nada?! – estava furiosa – Antonio Manoel, você não vai fazer nada!? – insistia a moça.
Mas a agressora o ameaçou, com todo aquele tamanho de mulher:
- Se você der um pio, eu arranco sua bermuda, e te obrigo a voltar assim pro festival. Quer ver? Quer encarar?
Não quis. Ao ouvir aquilo, a mulher pareceu maior ainda aos olhos dele. E calculou que uma coxa dela daria as suas duas. Tomado pelo medo, saiu correndo, deixando Natália desnorteada. A moça sentiu-se insultada com aquela atitude, principalmente pelo olhar que a outra lhe dirigia. Perdeu toda a compostura (se é que teve alguma naquela cena):
- Romualdo! Não me deixa aqui com essa louca! Romualdo, seu covarde! – e foi atrás dele, furiosa, gritando – Romualdo, volta aqui, seu covarde filho duma puta!!!
E já lá na frente, voltou-se ainda para a mulher estranha:
- Isso não vai ficar assim! Seja você quem for, me aguarde! - E foi atrás do rapaz.
Sozinha, a mulher olhou para cima:
- Está aí, com essa cara de palerma por quê? Acha mesmo que escreve o que quiser?
Dário assustou-se. Não podia ser. Olhou novamente fixo na folha. À sua volta, o cenário da cena que escrevia, já dissolvia. Afinal, ele via mesmo quando estava muito concentrado; sentiu o cheiro do capim, ouviu o barulho das vacas, e o do casal também... Mas perdera o foco. Agora, a fala daquela mulher estranha era a última linha escrita na folha. Mas ao olhar novamente para o centro do papel, não a via mais. Foi quando ouviu ela dizer:
- Então, você acha que faz tudo sozinho?
Agora a voz era próxima, bem mais próxima; não parecia gritada.
- Estou aqui atrás, Dário.
Mesmo com receio, ele virou-se de uma vez. A bela senhora exalava sensualidade. Trajava um vestido roxo, longo e levemente decotado, que desenhava com promessas o seu corpo de, pelo menos um metro e oitenta e cinco. Tinha os cabelos arranjados num belo coque, deixando alguns fios caídos na parte de trás. Seus lábios eram carnudos, e apresentavam um sorriso largo; nariz fino, olhos vívidos e instigantes. Sua pele morena era enfeitada com adornos: anel, pulseiras e um discreto colar. A sandália era de salto médio; seu corpo exalava um perfume levemente sedutor. Apresentava segurança no olhar; sabia a que viera. Ele não pôde concentrar-se mais no que escrevia. Sumiram o capim, as vacas, o casal... O rapaz correria mesmo; mas correra para o lado errado. Naquela direção, não encontraria Glauco e os outros, e não presenciaria nenhuma ação alienígena secreta. E o motivo de correr não seria aquele, não seria ela. Aliás, quem era ela?
- Me chame de Mme. Matilde. E esqueça, o talzinho lá não correu para o lado errado.
- Não era talzinho, era alguém – respondeu Dário.
- Alguém? Nem nome definido o infeliz tinha. Aliás, você não está num dia legal pra escolher nomes... Mas deixe-o ir. Você é quem corria para o lado errado.
- Eu? Que quer dizer?
- O que pensa que está fazendo?
- Escrevendo.
- Ah, escrevendo? O quê? O que você gostaria de viver com aquela moça?
- O que está dizendo? É uma personagem!
- Não falo dela, falo da outra moça.
- Que outra moça?
- Essa que está aí, dentro de você. Adria.
Foi a partir dali que ele começou a tratar aquela mulher de igual pra igual:
- Não se atreva a falar tamanha imundice!
- Imundice? O que é imundice? O coito? Tabu a essa altura dos tempos? Então acha feio demais o que escrevia? Será que o talzinhode nome indefinido lá achava o mesmo? Ou será que ele acharia a sua Adria... Sem graça?
- Eu não sei quem é você. Mas não tem o direito de misturar tudo aqui dentro de mim!
- EU estou fazendo isso? VOCÊ está! – e caminhou até ele, com a sua média de oitenta quilos bem distribuídos. Sentou-se a beira de sua escrivaninha, e após um belo cruzar de pernas, concluiu: - Você já tem tudo misturado aí dentro.
E tocou a cabeça dele com o dedo, para dar ênfase na sua frase; e usou o mesmo dedo para apontar a própria coxa a amostra, fazendo com que ele baixasse os olhos ao detalhe instantaneamente. Juntou as pernas e desceu rapidamente da escrivaninha, fazendo-o perceber “a entrega” dele ao que ela dizia.
- Você é um escritor, meu bem. Não importa se ganha ou não para escrever, se escreve bem ou mal; mas escreve, é um escritor! E todos os que escrevem, giram o mundo em torno do próprio umbigo.
Indignado, Dário não conseguiu retrucar. Era como se não acreditasse ouvir tamanha asneira. Limitou-se a perguntar:
- Você consegue ouvir o que está dizendo?
- Mas é claro, e por isso mesmo o digo. O que você escreve se resume a: o que você gostaria e o que não gostaria que acontecesse. O que quer e o que não quer, o que precisa, o que sente e o que não sente. Mas parte daí, do seu EU.
- O que diabos você faz aqui?
- Vim te esclarecer melhor o seu caso: tudo o que você faz é pra ela.
- Não é verdade!
- É sim. E não deixa de ser egoísmo, afinal você a ama.
- Que droga é você?
- Não adianta fugir, meu Amor. Quando escreve alguém, como essa última cretina, imagina se é ou não, se parece ou não, se ela faria ou não...
- Você é louca!
Ela riu sarcasticamente.
- E nem existe! – completou ele.
- Ah, eu não existo? Então não sou eu a louca. Seu louco!
- Você é louca!
- Você é que é! E não adianta fingir que a esqueceu, seu louco!
- Você é louca! Louca!
- Vamos ver quem é?
Ela encheu os pulmões de ar, seus peitos foram lá em cima, quase estourando o decote, e usou todo o som da sua voz para bradar:
- LOUCO!
O som parecia numa amplificada em estéreo. E sumiu num eco instantâneo. Vazio, e apenas a sensação da presença dela, que esvaia-se dele.
- Dário?
Sua mãe, na porta. Tudo normal.
- Tudo bem? – ela perguntou-lhe.
E por que não estaria? Perguntou-se? Teria ele gritado, de fato? Preferiu não perguntar, nem ouvir; olhou para a folha.
“E após outro beijo afobado, ela deitou a cabeça para trás e fechou os olhos, mordendo os lábios com fissura, enquanto ele apertava seus seios por cima da blusa, e desamarrava o lacinho que unia o decote.”
- Tudo – respondeu, enfim –. E envergonhado do que havia escrito, puxou a folha para ela não ver, e saiu.
DIZIAM DELE que era alucinado, doente, louco... Coisas do tipo. Inclusive muitos familiares. Isso porque só pensava em textos, em livros, em peças de teatro, em escrever. Era uma das paixões da sua vida. Uma? Era só isso! Só pensava nisso, só fazia isso! Porque só viam isso. Só o viam por fora. Ninguém sabia dele por dentro, ninguém sabia o que se passava. No início, achou que a força que imprimia em tudo o que fazia com a máquina de escrever era pra esquecer o outro assunto. Não era. Parecia que fazia aquilo há anos. Começou a devorar livros, revistas e gibis. E escrevia, escrevia, escrevia. Aquilo foi bom pra ele. Estava há quase quatro anos naquilo. Mas não resolvera "o outro aquilo", que chamava de problema. Era algo muito forte, ele sabia. E por muitas vezes, o que aprendera a fazer com as letras só enaltecia aquilo que a vida lhe apresentara, e que ele ainda tratava como um problema.
O curso foi nos anos noventa, Adria Ferraz tinha apenas treze anos de idade; quase dois a menos que Dário. E foram quase quatro anos consecutivos a vendo semanalmente. A brincadeira de escrever começou quando escreveu as primeiras letras para ela – e ela nem sabia. A brincadeira foi crescendo, e se tornando maior que a de fazer teatro, que era a proposta do curso. Esquecia o teatro dia após dia; não esquecia as letras. Não esqueceria Adria. Nunca.
Duas razões impediam o jovem Dário, aqui com dezenove anos, a encarar Adria como o seu primeiro Amor. A primeira delas, é que não havia lhe dado um beijo sequer. E isso se juntava ao desejo de beijar uma garota. Beijar ardentemente, e sentir o prazer dela em ser beijada. A segunda, é que jamais houvera outro Amor antes dela, o que a desclassificaria do titulo de primeira, a colocando como única. Queria sentir uma garota entre seus braços. Estava preso, e não podia fazê-lo. No entanto, se perguntava ao mesmo tempo: e o que sentia? Não era Amor? Não era também algo que jamais sentira? Nesse caso, não poderia dizer que era a primeira vez que sentia Amor? Talvez o fosse. Mas não foi só por todos esses motivos que resolveu deixar a história de lado. É verdade que a decisão veio depois que terminou a última oficina teatral, o último ano daquela turma. Mas também porque ela, Adria, havia lhe mostrado algo que ele gostava, e que fazia bem: escrever. Era, então, quase tudo o que fazia, foi um presente que ela lhe deu. E depois brigou com ela, sem que ela o soubesse também; e terminou tudo entre eles! Não pensaria mais nela, não alimentaria mais nenhuma esperança de ter o seu Amor, e não lhe escreveria mais nada também. Achava justo o seu próprio comportamento. Claro, quando soube que, mesmo depois de tanta dedicação a ela, ela estava namorando, e com outro. Outro, que nunca lhe escrevera nada! Que não a amava do mesmo jeito. Ele havia entregue à amiga – se é que podia chamá-la assim ao menos – a sua adolescência, “os melhores anos da sua vida”. Desde quando soube, e da maneira mais covarde possível (ela lhe sorrindo ao telefone e dizendo), decidiu encerrar-se para ela. Não lhe mandaria mais uma linha sequer. Maldito hábito aquele que houvera adquirido após o curso, o de lhe enviar contos, poesias, e de lhe ligar praticamente todas as semanas! Depois de um ano e meio daquele costume, parou. Ela que ficasse com o namorado. Se ela o achava um bom escritor, ótimo, ela não era uma boa leitora; não entendeu nada do que ele lhe escreveu.
Mas o tempo passara, e mostrara a Dário que não conspirava a favor de seus planos. A sua imaginação iniciava trabalhos, mas não os concluía. Ela parava sempre no mesmo empecilho: Adria.
Na ocasião em que lhe veio a ideia de “Os 4 Cavalheiros do Outubro de 86”, definiu bem uma série de coisas; e estava certo do que fazia. Glauco e seus três amigos testemunhariam uma experiência alienígena que transformaria as suas vidas para sempre.
Em 1996, quando teve a ideia, Dário contava dezesseis anos. Viu a entrevista de um músico que relatava a história da formação de sua banda. Dizia o músico, que foi no segundo ano da banda, em 1986, que gravaram o primeiro disco. Disse ainda, que naquele ano de 1985 não havia nada pra se fazer na cidade deles, e todo o país estava concentrado num festival internacional de música que aconteceria noutra capital. Os estudantes então bolaram um festival de cultura na cidade. Quem cantava cantaria, quem atuasse atuaria, quem pintasse exibiria seus quadros etc. Foi onde estrearam a banda, amadora, juntos com todos os outros amadores. Bastou ouvir aquilo, e Dário começou a imaginar que outro tipo de evento poderia acontecer numa cidade como aquela. Certamente, um cenário perfeito para uma ação secreta! Muito mato. As pessoas quase não sairiam de suas casas, nada pra ver. Uma imensidão de deserto verde! Sua imaginação pairava no ar, circundando-o. Uma propaganda de chocolate seguiu-se da entrevista, no qual um garotinho, com a boca toda lambuzada, dizia sorrindo: “Um sabor do outro mundo”. O nome do produto era “Galácticos”. Dário entendeu o recado. Não foi para os milhões de telespectadores aquela frase do garotinho, foi pra ele. Uma ação alienígena num local isolado, para o qual o país parecia de costas naquele momento. E o que levaria aqueles quatro rapazes para aquele local? Isso ele descobriria. Precisava antes saber de onde viriam.
Claro! Aquele músico havia dado a ideia a Dário: fariam parte daquele momento.
Assim, surgiu o Glauco, o cabeça da organização, o Admilson, que era humorista, o Augusto, que escrevia contos e poesia. O quarto... Bom, era justo que Dário não se lembrasse mesmo do nome, não tinha. Pois quando ele se aproximava do campo minado que era a mente de Dário, houve uma interrupção. Uma interrupção surreal. E se Dário quisesse publicar tal cena, talvez desse um belo conto. Ele jamais esquecera aquilo, e jamais entendeu também, por mais que tenha se esforçado para tal... Surreal.
Com certa ansiedade, o rapaz vinha um tanto trôpego pelo caminho, segurando a mão da moça que o acompanhava. Parecia bastante empolgado, e ela demonstrava satisfação, no que parecia uma fuga. Introduziram-se capim adentro, assustando três ou quatro vacas que pastavam ali perto. Pararam. Ele a beijou com sofreguidão, ao que ela lhe advertiu sobre as vacas. Pro diabo com as vacas! O que elas poderiam fazer? Mugir? Que mujam, assim encobre o barulho que podemos fazer. Parou e olhou malicioso para o corpo da moça:
- Ou melhor, que vamos fazer.
E após outro beijo afobado, ela deitou a cabeça para trás e fechou os olhos, mordendo os lábios com fissura, enquanto ele apertava seus seios por cima da blusa, e desamarrava o lacinho que unia o decote. Foi quando ela soltou um grito alto:
- Aaaaiii!
- Apertei forte? – perguntou, tirando a cara dos seios da moça, e tirando a cabeça.
- Sua vadia!
E o susto dele foi tanto quanto o dela. A voz era de uma mulher que, atrás da jovem (já com os seios nus), puxou-lhe a cabeleira quando ela deitava a cabeça de prazer.
- Quem é essa?! – virou-se, desvencilhando-se dela e olhando a cara da agressora.
- Eu não sei, eu não sei – respondia o rapaz, atônito, enquanto escondia com a mão a tensão no zíper da bermuda.
A agressora não se deu por satisfeita:
- Só não te chamo de vaca em respeito a elas – e apontou para os animais, que pastavam tranquilos -. Agora some daqui, antes que eu te arrebente a fuça!
- Joanildo, me diz quem é essa mulher!
- Eu não sei, Marinalva, juro que não sei! – respondeu o rapaz, completamente confuso com a cena.
- E você não vai fazer nada?! – estava furiosa – Antonio Manoel, você não vai fazer nada!? – insistia a moça.
Mas a agressora o ameaçou, com todo aquele tamanho de mulher:
- Se você der um pio, eu arranco sua bermuda, e te obrigo a voltar assim pro festival. Quer ver? Quer encarar?
Não quis. Ao ouvir aquilo, a mulher pareceu maior ainda aos olhos dele. E calculou que uma coxa dela daria as suas duas. Tomado pelo medo, saiu correndo, deixando Natália desnorteada. A moça sentiu-se insultada com aquela atitude, principalmente pelo olhar que a outra lhe dirigia. Perdeu toda a compostura (se é que teve alguma naquela cena):
- Romualdo! Não me deixa aqui com essa louca! Romualdo, seu covarde! – e foi atrás dele, furiosa, gritando – Romualdo, volta aqui, seu covarde filho duma puta!!!
E já lá na frente, voltou-se ainda para a mulher estranha:
- Isso não vai ficar assim! Seja você quem for, me aguarde! - E foi atrás do rapaz.
Sozinha, a mulher olhou para cima:
- Está aí, com essa cara de palerma por quê? Acha mesmo que escreve o que quiser?
Dário assustou-se. Não podia ser. Olhou novamente fixo na folha. À sua volta, o cenário da cena que escrevia, já dissolvia. Afinal, ele via mesmo quando estava muito concentrado; sentiu o cheiro do capim, ouviu o barulho das vacas, e o do casal também... Mas perdera o foco. Agora, a fala daquela mulher estranha era a última linha escrita na folha. Mas ao olhar novamente para o centro do papel, não a via mais. Foi quando ouviu ela dizer:
- Então, você acha que faz tudo sozinho?
Agora a voz era próxima, bem mais próxima; não parecia gritada.
- Estou aqui atrás, Dário.
Mesmo com receio, ele virou-se de uma vez. A bela senhora exalava sensualidade. Trajava um vestido roxo, longo e levemente decotado, que desenhava com promessas o seu corpo de, pelo menos um metro e oitenta e cinco. Tinha os cabelos arranjados num belo coque, deixando alguns fios caídos na parte de trás. Seus lábios eram carnudos, e apresentavam um sorriso largo; nariz fino, olhos vívidos e instigantes. Sua pele morena era enfeitada com adornos: anel, pulseiras e um discreto colar. A sandália era de salto médio; seu corpo exalava um perfume levemente sedutor. Apresentava segurança no olhar; sabia a que viera. Ele não pôde concentrar-se mais no que escrevia. Sumiram o capim, as vacas, o casal... O rapaz correria mesmo; mas correra para o lado errado. Naquela direção, não encontraria Glauco e os outros, e não presenciaria nenhuma ação alienígena secreta. E o motivo de correr não seria aquele, não seria ela. Aliás, quem era ela?
- Me chame de Mme. Matilde. E esqueça, o talzinho lá não correu para o lado errado.
- Não era talzinho, era alguém – respondeu Dário.
- Alguém? Nem nome definido o infeliz tinha. Aliás, você não está num dia legal pra escolher nomes... Mas deixe-o ir. Você é quem corria para o lado errado.
- Eu? Que quer dizer?
- O que pensa que está fazendo?
- Escrevendo.
- Ah, escrevendo? O quê? O que você gostaria de viver com aquela moça?
- O que está dizendo? É uma personagem!
- Não falo dela, falo da outra moça.
- Que outra moça?
- Essa que está aí, dentro de você. Adria.
Foi a partir dali que ele começou a tratar aquela mulher de igual pra igual:
- Não se atreva a falar tamanha imundice!
- Imundice? O que é imundice? O coito? Tabu a essa altura dos tempos? Então acha feio demais o que escrevia? Será que o talzinhode nome indefinido lá achava o mesmo? Ou será que ele acharia a sua Adria... Sem graça?
- Eu não sei quem é você. Mas não tem o direito de misturar tudo aqui dentro de mim!
- EU estou fazendo isso? VOCÊ está! – e caminhou até ele, com a sua média de oitenta quilos bem distribuídos. Sentou-se a beira de sua escrivaninha, e após um belo cruzar de pernas, concluiu: - Você já tem tudo misturado aí dentro.
E tocou a cabeça dele com o dedo, para dar ênfase na sua frase; e usou o mesmo dedo para apontar a própria coxa a amostra, fazendo com que ele baixasse os olhos ao detalhe instantaneamente. Juntou as pernas e desceu rapidamente da escrivaninha, fazendo-o perceber “a entrega” dele ao que ela dizia.
- Você é um escritor, meu bem. Não importa se ganha ou não para escrever, se escreve bem ou mal; mas escreve, é um escritor! E todos os que escrevem, giram o mundo em torno do próprio umbigo.
Indignado, Dário não conseguiu retrucar. Era como se não acreditasse ouvir tamanha asneira. Limitou-se a perguntar:
- Você consegue ouvir o que está dizendo?
- Mas é claro, e por isso mesmo o digo. O que você escreve se resume a: o que você gostaria e o que não gostaria que acontecesse. O que quer e o que não quer, o que precisa, o que sente e o que não sente. Mas parte daí, do seu EU.
- O que diabos você faz aqui?
- Vim te esclarecer melhor o seu caso: tudo o que você faz é pra ela.
- Não é verdade!
- É sim. E não deixa de ser egoísmo, afinal você a ama.
- Que droga é você?
- Não adianta fugir, meu Amor. Quando escreve alguém, como essa última cretina, imagina se é ou não, se parece ou não, se ela faria ou não...
- Você é louca!
Ela riu sarcasticamente.
- E nem existe! – completou ele.
- Ah, eu não existo? Então não sou eu a louca. Seu louco!
- Você é louca!
- Você é que é! E não adianta fingir que a esqueceu, seu louco!
- Você é louca! Louca!
- Vamos ver quem é?
Ela encheu os pulmões de ar, seus peitos foram lá em cima, quase estourando o decote, e usou todo o som da sua voz para bradar:
- LOUCO!
O som parecia numa amplificada em estéreo. E sumiu num eco instantâneo. Vazio, e apenas a sensação da presença dela, que esvaia-se dele.
- Dário?
Sua mãe, na porta. Tudo normal.
- Tudo bem? – ela perguntou-lhe.
E por que não estaria? Perguntou-se? Teria ele gritado, de fato? Preferiu não perguntar, nem ouvir; olhou para a folha.
“E após outro beijo afobado, ela deitou a cabeça para trás e fechou os olhos, mordendo os lábios com fissura, enquanto ele apertava seus seios por cima da blusa, e desamarrava o lacinho que unia o decote.”
- Tudo – respondeu, enfim –. E envergonhado do que havia escrito, puxou a folha para ela não ver, e saiu.