O Universo de Dário

NO COMEÇO, você queria crer que era impressão, que sonhava, ou ainda, que realmente havia enlouquecido. Mas não lhe permitimos considerar nenhuma das três hipóteses, ou qualquer outra que porventura surgisse. Somos reais demais; tão reais o quanto você, meu caro. E ainda acho que, se calcularmos bem, provavelmente ainda o somos mais que você. Como pode ver, apesar de nossas condições, a nossa existência não depende de você. Estamos aqui, ainda que você não se esforce para isso. E você? Quem é você? Só vejo a figura de algo que deveria ser você; mas não sabemos onde você está. Onde você está?
     - Onde você está?
     Dário olha para o enfileirado das teclas da máquina, como se a questionasse, aguardando uma reação dela. Mas se a máquina tivesse vida, podia-se dizer que ela é quem aguardava uma reação da parte dele. Seu pensamento afinava com o que ele ouvia: sabemos onde ela está. Mas e você? Onde você está?
     - Onde você está, Dário?
     Vê? Não se encontra. Todos sabem onde estão, o que são e o que fazem.      E você? Quem? Onde?
     - Dário, onde você está? – ouviu o som da maçaneta, que girou – Dário!

     A jovem senhora entrou no quarto, e fitou bem o filho, que lá estava, sentado à escrivaninha, olhando para a folha no rolo da máquina.
     - Você está aí! E eu te procurando, te chamando, e você não responde...
     - Desculpa, mãe, eu não ouvi. Estava concentrado num texto.
     - Não, você quando ‘tá aí, é só você, né...
     Dona Maria Rita tinha razão. Quando entrava em seu quarto, Dário parecia ir para outro lugar, distante dali. Era como se fechasse um portal ao encostar a porta. E quando de frente à máquina de escrever, demorava em captar contato além daquele cômodo. Ela entregou-lhe uma lista, e pediu que o filho fosse ao supermercado, pois precisava de algumas coisas para terminar o almoço. Quando Dário saiu, ela notou que a folha da máquina, a qual ele tanto olhava, estava em branco.
     O sol o incomodava, procurava andar olhando para o chão. As pessoas o olhavam, falavam dele, o estranhavam. No mercado, procurava ser objetivo. Não gostava de pedir informações, nem de dá-las. Não costumava partilhar com os rapazes, nem flertar as meninas; evitava falar, sair. Não gostava de sair de sua concentração, de sua cúpula. Não podia perder o fio. Precisava escrever.
     Repolho, abóbora, cenoura, papel. Tempero, espaguete, creme de leite, canetas. Vinagre, fermento, fita para máquina. Pimenta, leite de coco, ovos, corretivo líquido. Maçã, vinho, farinha de trigo, personagens. Corredores, prateleiras, carrinhos, dilema. Gente, produtos, consumidores. Quem eram? O que buscavam? Para quê levavam?
     Observou uma senhora que colocava uma lata de leite condensado no carrinho. Havia mais doces. A senhora receberia uma visita da neta, e lhe prepararia algumas guloseimas. E talvez não fosse uma visita. Poderia ser que a neta fosse passar uns tempos na casa da avó, e esta ainda nem sabia. Seria mais fácil, pelo menos até a mãe da menina arranjar um emprego. Mas quando ela puxou o seu carrinho, Dário viu o velho gordo que abria um dos pacotes de doces. A loja tinha câmeras de segurança; certamente ele seria flagrado. Mas o tiozão confiava na sorte: não o focariam, ali, naquele exato momento. Mas Dário viu outra possibilidade: a senhora que comprava doces para a neta, poderia ser, na verdade, contratada pelo estabelecimento, e vigiava à paisana. E enquanto ela acionava alguém pelo rádio, Dário abandonou a versão da história. Chegando ao caixa, buscou uma razão para a operadora estar daquele jeito, mal humorada. Possivelmente teria faltado dinheiro em seu caixa no dia anterior. Teria de pagar. Nova no ramo e na cidade, confiava demais nas pessoas. Por diversas vezes deixara a gaveta do caixa destrancada, ainda que por poucos minutos – poucos e fatais. A moça ingênua não imaginava que Vivian, a operadora ao lado, que demonstrava tanta bondade com ela, já sacara dinheiro em seu caixa sem avisá-la.
As histórias no caminho de volta para casa se misturavam, uma transformando outra. E por esses, dentre outros motivos, Dário evitava sair do seu quarto, onde ficava a sua escrivaninha. A sua mente era mais ágil do que ele podia controlar. Seu subconsciente era mais astuto que o consciente, e sempre lhe trazia muita novidade. Mas não queria, não podia. Precisava concluir os outros textos. Pior ainda era ter contato com as pessoas; sentia quebrar uma regra. Não podia desconsiderar que elas, ainda que não tivessem intenção, poderiam bloquear uma obra inteira.
     Quando chegou em casa, Dona Maria Rita estava no banheiro:
     - Deixa aí em cima da mesa. Obrigada, filho.
     Ao retornar para “sua cúpula”, teve uma grande surpresa: dois velhos conhecidos o aguardavam, sentados em seu velho sofá. Ao vê-lo entrar, ambos levantaram-se, com expressão de enfado por aguardarem.
     - Opa, olha aí a figura – disse um deles, tocando o ombro do outro.
     - É, agora deu pra ficar passeando pra lá e pra cá, enquanto a gente espera.
     Mas Dário também mostrou enfado pela presença dos dois:
     - Esperem aí! Eu tenho uma vida, sabiam? Preciso vivê-la.
     - Fazer a nossa vida é a função principal da sua. Em outras palavras, nós somos a sua vida – bradou um deles.
     - Você estava em Honolulu! Onde mais queria estar? Em pleno verão nas praias havaianas! Já se tocou disso?
     - E quem liga pra isso? Minha paixão está em Montenegro, na segunda década do século XX! Quero que continue. Parou numa página que não diz o que sucedeu comigo!
     - Isso é loucura! – foi Dário.
     - Eu era amigo do príncipe Nicolau! Ia me dar muito bem!
     - Bráulio, procure conter-se... – tenta acalmá-lo o amigo.
     - Conversa! Seu príncipe caiu! Montenegro foi reino por menos de dez anos! – rebateu Dário – o outro procurava acalmá-lo também.
     - Pois quero viver esses anos gloriosos! Não os escreveu! Não me deu nem mesmo a possibilidade de fazê-los!
     - Será que não entende? Não posso escrever qualquer coisa sobre lugares reais, e não sei nada sobre Montenegro!
     - Estude! Que raio de escritor é você?!
     - Senhores, não percam a compostura! – insistiu Glauco. - Bah! – fizeram os dois, dando as costas um ao outro.

     - Meu amigo... – foi Glauco a Dário, lamentando a situação.
     -  Olha, o seu caso é mais fácil, tá...? – adiantou-se Dário – Você está em 1986. Posso cuidar disso bem mais depressa!
     - Escute, só queremos viver... E acho que nós três, não?
Bráulio chorava em um canto. Glauco leva Dário a outro, lhe confidenciando:
     - Por que não tentamos nos ajudar? Creio que é o melhor que podemos fazer. Você começou bem “Os 4 Cavalheiros do Outubro de 86”; empolgou a todos nós. E parou. O mesmo se deu com a história do Bráulio. Como sei que está mais fácil pra você mexer com meu texto que com o dele, tenho uma proposta.
Dário olhou para a direção de Bráulio antes; e voltou-se ao interlocutor:
     - Qual?
     - Escreva “Os 4 Cavalheiros...”, e eu convenço o Bráulio a entrar nessa conosco.
     - Não sei se é uma boa ideia. Onde eu o colocaria?
     - Aí é trabalho seu, não meu. Mas veja... Quero que me diga o nome dos quatro protagonistas da sua história oitentista.
Dário o fitou, olhou para o chão, e voltou a encará-lo:
     -Você...
     - Hum.
     - O Admilson...
     - Sim.
     A memória não lhe deu mais nenhum. Ele se viu surpreso.
     - Não me lembro dos outros dois.
- Estamos aqui apenas porque se lembra de nós. Nesse caso, os outros não existem, nem aqui, nem na sua imaginação. Dê um dos postos ao Bráulio. Eu o convenço a esquecer a velha Montenegro.
     - Você acha que consegue?
     - Mas é claro. Deixe comigo. Eu faço isso.
     - E eu? – pergunta o escritor.
     Glauco já começava a desaparecer, enquanto dizia sua ultima frase:
     - Faça o seu papel, escreva.
     Bráulio também sumiu com o amigo, o que não gerou maior espanto a Dário, que ficou pensando no acordo, na possibilidade. Uma história a mais, dois aborrecimentos a menos. Preci
sava ver isso.
O Placebo
Enviado por O Placebo em 29/05/2018
Reeditado em 29/05/2018
Código do texto: T6349368
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