O Espírito Da Criação
O Espírito Da Criação
O frágil ranger da porta anunciava. Alguém adentrava a casa do doutor Oliveira.
Na parede da sala, o relógio de madeira acabava de bater a terceira hora vespertina. Sabia-se, portanto, que não podia ser do próprio doutor Oliveira o vulto que, de modo quase silente, galgava os degraus da suntuosa residência, uma vez que o insigne advogado só regressava do serviço após as dezenove horas.
“A quem pertenceria esse vulto?” – indagava a casa a si mesma sem resposta.
As visitas do vulto eram quase diárias. Sua duração era sempre a mesma. Três horas.
Seu proceder era sempre igual. Costumava se pôr à cabeceira do doutor Oliveira e desaparecer uma hora antes de ele retornar à casa.
O vulto nada dizia, mostrava ou deixava de si, a não ser a fragrância alva e feminina que, após sua partida, recendia no interior do recinto que usava guardar a solitária intimidade do doutor Oliveira.
O doutor Oliveira, contrariamente ao que se poderia pensar, não estranhava a fragrância. Recebia-a com total naturalidade.
Ela até lhe fazia bem. Coincidência ou não, toda vez que a doce fragrância lhe sorria nas narinas, uma frase ou ideia singular acendia-se em seu íntimo.
Cada vez que uma destas frases ou idéias lhe surgia, o doutor não ousava pensar duas vezes. Célere, dirigia-se à sua sala de estudos e a anotava em um dos seus muitos blocos de apontamentos.
Quando notava que um conjunto de frases por ele registradas havia adquirido feição sólida de texto, o doutor o concatenava e transferia com cuidado para o seu computador de colo.
Quando percebia que as idéias que havia anotado lhe poderiam render bons projetos, o causídico as desenvolvia e lhes dava destino idêntico ao dos textos.
As visitas do vulto continuavam e, com o passar dos anos, além de jurista aclamado, o doutor Oliveira tornava-se prolífico poeta e hábil legislador.
A existência carnal do doutor Oliveira durou cerca de nove décadas.
Um dia, quando ele já se encontrava há poucos instantes da morte, o vulto que sempre visitava o interior de sua residência revelou-se para ele em toda a sua inteireza.
Tinha os traços de uma mulher deslumbrante envoltos em vestes plasmadas num branco indefectível e a mesma fragrância excelsa de sempre.
Foi nesse dia que, enquanto se via acolhido pelos braços fluídicos da transcendente presença que, por tantos anos, o vinha inspirando, ouvia do vulto as seguintes palavras:
“Se me aceitas com tamanha naturalidade, hás de aceitar com o mesmo sentimento o destino final de toda matéria. Sou o Espírito da Criação e venho buscar-te para que habites o meu jardim e me auxilies no meu ofício.
Não temas! Tudo será simples!”
O advogado não temeu. Deixou que sua alma se levasse embalada pela mansa cadência do passo do vulto que a ele acabava de apresentar-se.
Hebane Lucácius