O Fim do Mundo em Alta Definição (versão 2.0)

Sentado na poltrona do sofá, assisto ao fim da Humanidade na minha IA Smartv LED cento e cinco polegadas, 16K de resolução Hiper Ultra HD, display de 50 milhões de pixels, projetor de imagens em 3D, com entradas USB, HDMI, reconhecimento de voz, sensor de movimento, processador octacore, Ultrafino, conexão à internet, WI-FI 6G, Bluetooth, com Google Play, Netflix, HBO MAX, Disney PLUS, sistema operacional de última geração e o melhor contraste e nitidez e brilho e qualidade e... Argh! Para quê tanta coisa?! Eu só quero assistir um programa banal, de uma emissora qualquer, enquanto o véu obscurecido da realidade se desmancha sobre mim. Onde estou? O que é real? Vejo-me num ponto fixo do espaço-tempo na história do universo, sou um evento qualquer de um mundo objetivo que colapsará em breve.

Reclino-me em minha poltrona, numa posição mais confortável. Em minha mão direita, o controle remoto - o destino do mundo. Na minha mão esquerda, colho alguns grãos de pipoca no pote, escarnecendo dos atores da vida, com um sorriso irônico no rosto. Indiferença. Para quê me levantar e perder minha vida numa causa perdida? Talvez ignorância. Personagens elegantes vomitam seus discursos no canal Nacional. Eu não entendo muito bem o que eles querem dizer, não quero entender, e assim eles me aliviam do esforço de pensar. Bem e mal, certo e errado, a TV pensa por mim. Slogans repetidos insistentemente - mentiras contadas à exaustão se tornam verdades absolutas: “O governo é bom!”; “A nação está feliz! Não há razão para não estar!”; “Pensar por si só é errado!”; “Você não é o dono da verdade!”; “Não há progresso sem sacrifícios, dê sua vida pelo país!”.

Passo os canais, e só vejo morte, violência, choro, desprezo, sorrisos e felicidade. Estou cansado de toda essa desgraça. Então desligo a televisão, e o que eu vejo diante da tela me deixa estupefato: Um homem velho, uma figura cadavérica, repleto de marcas de expressão e cicatrizes por todo o rosto e corpo, suas roupas em farrapos, os olhos profundos e mortiços, sem nenhum brilho, sem vida. À sua volta, destroços; em seu encalço, a sombra da morte - e tudo o mais eram corpos, destruição, agonia, vermelho.

Aquela criatura, quase irreconhecível, me encarava em tom de deboche. Seu olhar era acusador, e seu corpo, trêmulo, esforçava-se em comunicar todo o ressentimento pelas más decisões de sua vida. No entanto, embora pudesse sentir o abraço aconchegante da morte sobre si, uma centelha de revolta e intrepidez se escondia em algum lugar no negrume de seus olhos, como um feixe de luz que se perdera num buraco negro de desolação. Lembrei-me daquele jovem que iria mudar o mundo, mas que acabou aprisionado ali, dentro desse monitor, um velho decrépito e incapacitado. Como pude permitir que isso me acontecesse?

Foi então, que veio à minha memória o dia no qual renunciei à minha razão. Foi o dia em que meus pais, familiares e pessoas próximas hastearam a bandeira da liberdade e decidiram lutar contra a opressão do autoproclamado Partido Supremo do Centro-Sul. Eu havia insistido em ir também, mas me disseram que não precisava me preocupar, eles iriam derrotar o líder e voltariam logo. Meus pais ligaram a TV, e me colocaram gentilmente na poltrona. Abracei-os, e os deixei partir. Eu tinha 12 anos na época. Sentado em frente a IA Smartv, sorridente, estava confiante de que eles cumpririam a promessa e sairiam vitoriosos. O que aconteceu depois disso, nem mesmo o pior de meus pesadelos iria jamais se comparar. Meu olhar altivo e esperançoso foi de encontro ao terror supremo, absoluto. Foi tudo muito rápido. O noticiário interrompeu a programação para mostrar a luta daquilo que restava da nação, daqueles que ainda se importavam com ela, contra a face pura do mal, da destruição. O número de soldados era inferior ao de rebeldes, porém, o armamento deles era de última geração, muito superior ao da população comum. Em poucos minutos, centenas de fileiras caíram brutalmente assassinadas pelos seguidores do Grande Benfeitor, como o líder dos destruidores era chamado. A última imagem que me vem à mente é o close que a câmera deu nos corpos caídos dos meus pais, antes da transmissão sair do ar. Eles pareciam confusos, seguravam a mão um do outro enquanto olhavam diretamente para a tela, como se suas visões pudessem atravessar quilômetros de distância e chegar até mim. Não podia ouvir o que diziam, devido à chuva de tiros, os gritos de terror, medo e dor que preenchiam o monitor, mas pude ler em seus lábios a seguinte mensagem “Filho, nos perdoe...”.

Após esse evento, todos os meios de comunicação passaram para as mãos do Grande Benfeitor. Logo as notícias sobre o massacre foram abafadas, e os últimos delatores misteriosamente desapareceram. Medo. Todos os dias, soldados percorriam as ruas da minha cidade. Eram rostos muito simpáticos, porém, por algum motivo, suas mãos permaneciam sempre firmes no coldre, mesmo não havendo nenhum risco imediato às suas vidas. Eu perdi o que tinha de mais valioso, não havia mais motivos para resistir. Apenas aceitei o mal, liguei a televisão, e permiti que a programação invadisse a minha mente, tomando minhas horas, meus dias, meses, anos.

Por que passei tanto tempo em frente a essa máquina que drena a vida, suga a alma? Talvez, no fundo, eu ainda esteja esperando que os meus pais se levantem daquele mar de caos e desespero e alcancem, milagrosamente, a vitória prometida. Mentirosos! Como puderam me iludir daquela maneira! Era uma causa perdida desde o início, fiquei abandonado, sozinho, e meu único conforto era aquele vidro negro, frágil opaco e desprezível. O mundo era uma realidade fria, e incômoda; a televisão, uma mentira doce e agradável. Mas isso, eu sei, é, na verdade, apenas uma justificativa, um modo de encobrir meu medo, minha covardia. Renunciei à razão e à vida, e quis impor o ônus da minha inércia sobre aqueles que se foram.

O grande botão vermelho, o Power que levará a humanidade de encontro ao seu fim, está prestes a ser pressionado, e não me resta muito tempo. Brilhos intensos rasgam os céus, estrondos explosivos eclodem de todas as direções. Olho ao meu redor, e vejo os destroços, a pilha de entulhos a qual chamo de lar. A TV é a única coisa de valor que me restou. Irônico. O sinal transmitido para ela é ininterrupto, eterno, adentra todos os lares, queira você ou não. Até o pobre mais miserável e faminto possui um aparelho. E a pipoca é parte do pacote da Felicidade que o governo nos dá como esmola, junto com o aparelho, para garantir que todos estão sob seu controle.

Com grande dificuldade, me ergo do sofá e pego um simples papel e caneta. Uma última tentativa, um último esforço será feito, em nome daqueles que partiram, e por aqueles que ainda virão. Contarei a minha história, a história de decadência, de subversão e domínio da razão pela força bruta, a história da luta verdade contra aqueles que a falseiam, da luta do cidadão de bem, contra os temerosos, da vida contra a morte, e irei espalhá-la aos quatro cantos do globo. Se alguém estiver lendo isso, ainda há uma esperança. Não sabe por onde começar? O que fazer? Ora, pegue seu controle remoto e aperte o Power! Desligue essa maldita TV!

Arthurx
Enviado por Arthurx em 25/04/2018
Reeditado em 03/02/2023
Código do texto: T6318338
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