ARANHAMENTE

Menino que esconde os olhos: abertamente.

Estou eu cá, fechado, do outro lado da chuva. Ele lá. Preciso é ver sem dar notar: outra proporção desabitada: pés largos, barriga inchada, perna em tripas. Ver quem vê se chega de dó.

Chovia que nem faz bruto, correnteza não respeita sinais do trânsito, toda a rua corria num risco de atenção redobrada. Queria eu pensar que nenhum parente ou amigo querido estarão então na enxurrada, mas estão protegidos, tenho fé e isso basta. Do que dá pra ser visto nas laterais da cidade é gente se protegida na margem das lojas, as marquises apertadas no contra dilúvio.

Hora de voltar pra casa, expediente de fim de sexta-feira.

Dali do outro lado

do vidro

do carro

o menino se enxuga, esfrega o dorso molhado do punho molhado no rosto molhado

tem capa de chuva até os ombros e nem faz de conta que foi destinado a uma vida minúscula.

É como se a vida daquele guri não tivesse parágrafo.

Percebe meu rosto no vinco escorrido do vidro embaçado. Olhou para mim como dei para vê-lo. Combinamos que não dava para haver-nos contato. Se o vidro se abrisse eu ficava alagado. O carro precisou parar. O circuito urbano estava atolado.

Havia um vidro, uma chuva, uma vida.

Algo que nos separava

Lado do outro lado.

Rompeu o menino com o combinado: acenou para mim a ofertar-me umas balas.

Apelou. Senti-me afetado, ofendido, que culpa: tenho eu do que ali se passa, que tenho a ver com o mundo que passa, ninguém se a mim se aproxima quando dor que me afeta...

Ele insiste em mimicar com a mão cheia de confeitos.

Virei rosto para a janela direita. Tudo era embaçado.

Quando nos atemos ao lado que nos protege, decerto nos atentamos para a nossa posição. Certamente há, ali, um rei que nos protege. Não entendo, portanto, porque a história resolveu implodir os feudos. Em que honra nos prenderemos, afinal?

Uma tese inteira no borro do embaço e agora me firmo em olhar para frente, adiante.

Sabe aquele canto da vista que detecta estrelas cadentes?

Ali estava ele, menino de balas nas mãos.

Sorria, agora. Sor-ri-den-te!

A quem ele quer enganar? Quem tem ímpeto favorável no apelo da vida, sob a tempestade dos outros, sem eira nem para quem descansar?

Acenou com o indicador “uma só”, ministrava gestos na boca, “uma só”, “uma só”.

Uma só...

Às vezes as insistências me domam.

Abri o vidro.

Eu não ando com moedas reservadas nem a quem necessita. Estiquei uma nota de cinco.

Eu não queria as balas, creio por isso caíram elas no chão alagado do asfalto fugido, escorregaram para o baixo da cidade.

O menino exclamou-se.

Rápido, a sua mão se voltou ao bolso. Não mais havia bala. Não mais havia o que pudesse ser vendido.

Esticou-me de volta as cinco pratas.

Fechei o vidro, neguei e até achei bonita a sua atitude.

O trânsito andou, um carro por vez. Fiz o bem, aliviei, nenhum problema tem.

Dados uns minutos talvez, um toque no vidro. Um susto. Um sorriso abaixo do olhar escondido tão esbugalhado. O menino seguiu-me, oferecia duas caixinhas de fósforos.

“Toma, moço, o senhor leva uma”.

Neguei.

“Leva, moço, não pedia esmola não, eu sou vendedor”.

Sorri sem dar nos lábios, abri o vidro, estiquei o braço, peguei a caixinha esfolada.

Combinamos – através do olhar que despede – que o negócio estava fechado.

A chuva não se entregou, mas o fluxo fluiu. Enfim!

Pude fazer o retorno, cruzar para após o canteiro, pude chegar ao semáforo contrário, na mão oposta, estava do outro lado. Impaciente, mas satisfeito em suportar o tempo lotado.

Dados uns segundos talvez, um toque no vidro.

“Moço, moço, pegue esta caixinha aqui, a outra não”.

Bendito e maldigo: que susto! Pra que tanto esforço, por que a correr além de si? O menino das pernas de tripa e olhar de aventura recobrava em si o ar da corrida.

"Pegue a outra", "a outra". Apontava como dissesse: - essa aqui!

Mas não.

Entendi que a velha caixinha não merecia os cinco dinheiros, porém

tratava-se de uma boa ação. A minha sensação de travesseiro leve mais tarde.

“Essa caixinha que o senhor pegou é a arca de Noé”.

Achei graça, achei.

Mas não reabri o vidro. Sem troca. Deixei-a no banco ao lado, a primeira caixinha esfarrapada, e acenei em agradecer. Decidi de vez: o negócio já está feito. Não tem mais volta, não tem.

Parti.

"Arca de Noé..." pensei em riso. Pelo caminho. Através do itinerário. "Arca de Noé"...

Quando em casa cheguei, horas além do merecido, cansado, estafado,

doido e carente por ser paparicado, ouvi um ruído estalar vindo da caixa de fósforos. Abri.

Aranhas ali estavam.

Aranhas!

Elas se correram pelo assoalho do carro, espalhadas. Corri fora dali como quem foge de si.

Desespero: nada me ofega além das aranhas! Que medo! Que tremendo medo! Tenho pavor das aranhas.

Por isso o menino correu uma avenida inteira em chuva tão brava? Ideava ele me enfiar medo? Que ideia era essa? E ainda paguei por isso! Parece coisa dos amigos ricos dos meus meninos que criam artrópodes como quem estima a um cãozinho. E ainda pagam por isso.

Mas o menino na chuva era um menino tão pobre. Caí em mim.

Guardava aranhas na caixinha de fósforo.

Quem protege aranhas da chuva, quando nem a si da chuva se está protegido?

Caí de mim.

Enfim, ocorre que três anos disso já se passaram.

E o carro continua lá na garagem.

Fechado. Parece – e é verdade! – um jardim brotou inteiro lá dentro.

Parece que houve reprodução.

Morro de medo tanto de aranha que financio outro carro.

E aos poucos parece

Que estou perdendo o medo

Azedo

Que eu sempre trazia de mim.