A revolução começa no bar
A revolução começa no bar
Corpos moviam-se do lado de dentro, o pouco da música tocada pela DJ que fazia da desconstrução o fundamento das batidas chegava até onde estava, não transpunha o outro lado da rua, a pesada chuva estava encarregada de revestir com gotas as notas perambulantes do ar.
Pessoas iam e vinham na parte de fora do bar. Marquise, ou simplesmente parte de fora, lugar preferido em dias quentes. Não chegava ser calçada, simplesmente a parte externa do bar que se dividiam em tantas outras. Na interna central, havia as caixas e as atendentes do balcão maquiadas de forma nada convencional, também os chapeiros que inventam os famosos espetinhos, que hoje em dia lembram bastante os salgadinhos empacotados com variados sabores. Acima, mais bar, nem imagino como seja, nunca pus os pés na escada.
Partindo o do centro, esquecendo das escadas, a direita, outra extensão do bar da cidade universitária. Depois da porta grosso e pesada, a direita, o espaço separado para o debate, salão para palestras, discussões, diversões. Escuro, com um palco de três por um e meio, decorado com fotos de pessoas ilustres na parede ao fundo. Na extrema direita, outro balcão, e do lado de dentro um barbudo tatuado entrega as cervejas e abastece o copão de plástico da rapaziada. O furtivo olhar era para a máquina de fliperama que é encostada à parede onde atende, cuidado, não ponha o copo molhado nela. Há assentos entre as paredes, e da grande que separa a parte externa, justamente a frente, enormes camadas de vidro, que impende as conversas de entrarem.
É dia somente de som, só da sonzera que faz esquecer da vida, da nossa, da dos outros, da do país. O som é nacional, descontruído e construído pela mão talentosa da loiraça de visual retrô. Calça cintura alta, blusa curta, a cintura fina ostenta as curvas e a sensualidade com que toca os pioneiros do novo estilo nacional.
Sozinho, fumo sentado no banco alto e preto, na parte de fora, sob a marquise que nos protege da chuva que desrespeita a fumaça da nossa nicotina e sorrateira, respinga sobre os outros assentos arredondados de plástico preto. Fumo, compulsivamente a mão direita leva aos lábios cansados de proferir tolices pós-modernas. Lábios prontos para descansar em outros lábios quentes.
Ouço com cuidado as conversas dos convidados daquela noite de quinta-feira chuvosa. Precisamos de revolução, de revolucionar os alicerces, dizia a garota de voz fina, óculos redondos, dentes pequenos, cabelos encaracolados e olhos bem grandes. Pela pouca beleza, reconheci de cara que o sorriso ao contar sua experiência para o cara da frente era sua principal estratégia de sedução. Devo confessar que bem-sucedida, capta minha atenção também e me deixo levar pelo som anasalado.
Cara, o pinguim, o pinguim estava lá. Sabe, ele representava a parte ruim da minha viagem, toda viagem só é viagem quando as partes vão juntas. Sabe cara? Aquele lance de ter tudo com você, e mesmo assim, sabendo que está lá, faz parte de você, mesmo que ruim. Meu, foi revolução geral na minha mente quando vi o pinguim, ele apareceu, pensei: cara o que faz aqui? Tem que estar preparado para a revolução interna, destas que faz impactar consigo, e perceber de quantas partes somos feitos; ayahuasca te permite isto.
Mais inteirado do assunto, acompanhei por mais alguns instantes, até perceber que eu a ouvida. De relance, me assusto, noto que a mão esquerda leva a boca o cigarro. Pouco motivo tenho para sobressalto, no entanto jamais houve momento em que usara a esquerda para algo do tipo. Com a direita livre, passo a limpar em círculos o banco preto molhado a minha frente. Deslizo meus dedos de fina pela, uma mão que desconhece o pesado da enxada, o frio de uma arma, as rachaduras do facão. Minha mão que sempre caçara confusão e solução, em círculos misturam as gostas no fundo negro, percebo que tenho poder para fazer girar o buraco negro, ou fazer estancar a fala do mais nobre articulista das causas políticas.
As conversas espontâneas surgem da minha direita, da minha esquerda, a frente, a bonita rua que recebe a chuva e termina numa praça arborizada dita o ritmo dos corações ansiosos por revolução. Minha mão branca, ainda colada no banco molhado me chama atenção. Ainda tanto para fazer, escrever, dedilhar. Absorto, preso a ela, começo a sentir todo o calor do corpo correr para o membro externo, articulador das letras, levo a esquerda aos lábios novamente, jogo o cigarro na calçada, na rua, a correnteza da via que segue até praça, faz apagar aos poucos a chama da ponta.
Ainda estava inteiro, foi parar no molhado devido ao susto que levei ao perceber que esquerda estava envelhecida. Rugas profundas misturavam-se aos pelos grossos e gastos pelo tempo. Ressequida, pesadas manchas no tom marrom marcavam a data, o uso, a exposição ao sol. No desespero, levo a até a chuva, o toque frio me retornaria a sobriedade. Trago para dentro, digo para a parte externa do bar, ainda velha, a minha mão esquerda está velha.
Seguro-a pelo pulso com a direita. Ouço a música, vaca profana, vida profana, mão direita profana, que impede a esquerda de dizer o significado da revolução. Permito que as coisas aconteçam, e quem sou eu para não fazer permitir?
Cara? Foi mágico! O meu amigo Pinguim estava lá, depois me contou tudo sobre o percurso da autodescoberta... O que é a vida? Um aglomerado de matéria! Posso ouvir a conversa ao lado. A matéria, pela força da natureza, está que chamo de vibração, foi capaz de unir as moléculas. Tesla explica, Tesla foi o cara. Mas há de concordar comigo que a vida, sem a consciência dela não é a vida que queremos enxergar. Era uma dupla de rapazes perto dos trinta que discutiam o áureo tema filosófico. Outras falas chegavam até minhas mãos, a direita que retinha a esquerda de envelhecer.
A revolução começa de dentro, estamos no tempo certo de ir as ruas e chamar a greve geral. A greve que trará as diretas e dela teremos o movimento legitimado em prol desta classe trabalhadora que só geme pelos direitos. Mano, ainda há água para passar neste rio sujo chamado política! Cala a boca irmão, acha que estou aqui falando da malandragem do congresso, estou interessado em falar do materialismo que se apresenta, não percebe em que ponto estamos? Falo de estrutura, um modelo que passe a ser pelo e para o povo. Irmão, já discutimos que este tipo de tomada do poder, de enfrentar o Estado pela frente, como se fosse um monstro mitológico materializado é ficção. O que deve ser feito é...
Não pude ouvir mais, descubro o que houve com minha mão esquerda. É minha mão, mas não é. Gostaria de inventar e dizer que é a mão representativa do nosso povo trabalhador, honesto e calejado pelo sol. Entendo que seria social, quero preservar a realidade. Aos poucos nasce uma ferida na parte de cima da esquerda, onde estão os pelos grossos e as manchas escuras. Ainda mais velhas que no primeiro momento, percebo que são as mãos do meu pai. Seguro-a firme com a direita, como é difícil aceita-las assim!
Antes fossem do povo, do povo maldito, do povo bendito, do povo omisso, do povo curioso e inculto. Antes fossem de uma nação voltada ao bem-estar, que prega a solidariedade e a concretude dos sentidos por meio da realidade. Antes fossem de um desconhecido, mas são do meu bom e velho pai. Queria amá-la! Vaca profana, Pinguim maldito que permeia a narrativa toda, discurso filosófico inútil. Será que todos vocês, sim, vocês que dançam para aliviarem a vida, será que com teus mestrados, doutorados, pós-doutorados, com aulas recheadas de termos técnicos, difíceis para a maioria da humanidade, será que são capazes de compreender que a mão esquerda é a do meu pai, do meu nobre pai, envergado pelos anos cruéis por não poupar a esperança e marcar os corpos com a violência.
São capazes de compreender que o sorriso dele já não é jovial? Que as broncas que leva por derrubar os copos de refrigerante na mesa tornam-se sorrisos por não terem mais força para brigar. Com todo os estudos das ciências físicas e humanas ou do caralho a quatro, conseguem definir por que um homem cansado sorri mais do que o normal? Do que querem fugir? Por que se escondem em manchas pretas e feridas difícil de se fecharem?
A mão direita estanca o sangue da esquerda. Esta esmorece, suspira sem medo de se partir. O formigamento repousa entre os dedos velhos e calejados. Há revolução? Ah... revolução, ela começa e termina no bar.