Antônia, mulher de coragem
Gosto de ouvir as histórias contadas pela Antônia. Às vezes sentamos à mesa e enquanto tomamos o café, vamos tecendo nossas memórias. Nem me lembro mais quanto tempo faz que ela veio trabalhar comigo. Sei que é tempo suficiente para conhecer sua alma de mulher forte, mãe cuidadosa, amiga generosa.Gosto especialmente das histórias em que narra sua infância e ela sempre lembra mais um pedacinho e vai cerzindo. Eu vou emendando cada pedaço e admirando sempre a pessoa resiliente que ela é. Prefiro a companhia de gente assim, que não traz do passado a amargura, antes agradece todas as conquistas e enxerga o que passou como uma estrada, às vezes árida, mas com pinceladas de flores a colorir o caminho. Conta que habitou,com os pais e os irmãos, embaixo de uma grande árvore de nome Juá. O pai limpou o mato ao redor e lá viveram ao relento. Um tempo depois, passaram a morar numa casinha de lona. Dormiam em camas feitas de vara e capim. Os pais “faziam bicos” para sobreviver. Desde muito pequena, ajudava a mãe nas faxinas que fazia. A comunidade era bastante carente e a organização econômica era algo como: muito pobre trabalhando para pobre, o que significa dizer que o pagamento era dado muitas vezes em mantimentos. Ela lembra com ternura e alegria que havia uma senhora muito generosa que os deixava assistir televisão pela janela, na varanda. Disse que um dia ganhou desta senhora umas sobras de um arroz tão gostoso que o aroma ainda encontrava-se em sua memória. Levou para casa e dividiu entre os seus. Não poderia satisfazer sua fome sabendo que em casa os outros não teriam tal sorte. Ela dizia que os rapazes da comunidade não tinham coragem de paquerá-la por ser uma sem teto. Um deles chegou a dar-lhe uns beijinhos atrás da igreja, mas, em público não poderia ser vista ao seu lado. (segregação absoluta), Viveram nesta condição durante um longo tempo, até que sua avó materna foi embora para a capital e deixou que fossem morar em sua casa. Foi a primeira vez que dormiram em camas convencionais e usaram banheiro, ainda que muito precário. Antônia não sabe bem ao certo sua idade, pois foi registrada junto com mais algumas dezenas de pessoas, recrutadas num caminhão, por ocasião das eleições. Afinal, o povo deveria votar. Começou a trabalhar possivelmente aos nove anos e aos quatorze já era mãe. Casou-se, teve outro filho e foi-se embora para São Paulo, pois o marido era um capítulo a parte (outras histórias). Fugiu da miséria e da indignidade. Trabalhou duro, passou maus bocados, mas se lembra com alegria dos bons bocados. Casou-se novamente. teve uma terceira filha e aqui está ela hoje. Criando os filhos com honradez. Antônia tem uma inteligência prática excepcional. Já viveu tantas temporadas que parece ser bem mais velha do que de fato é. Trata-se de uma jovem vivida, com muitas histórias para contar e a ensinar. Ouvindo esta e tantas outras narrativas da Antônia não tenho como não meditar sobre quantas vezes me acomodei, esqueci sonhos numa necessidade equívoca de voar baixo e em segurança. Quantas vezes senti-me carregada de receios, mesmo diante da urgência de mudanças. Paralisada, buscando terra firme. Quantas vezes invejei a maneira assertiva, corajosa e pontual na qual cria os filhos. Não tem receio de tomar decisões. Vai e faz.