ANO DE 1961   - Cont.
Esse jovem, neto da praiana, casou-se e foi perdendo os poderes sobre as finanças de sua mãe, deixadas por sua avó. Sua mãe sabia que o filho, orgulhoso por pertencer a uma família de Conde, gastava o dinheiro desordenadamente. A um canto da casa mal conservada por ele, chorava o triste destino que enfrentara, sem marido e com um filho que não prosperava na vida e que esbanjava a cada dia toda a fortuna de sua avó, deixada à sua mãe. Olhava o neto com alegria e tristeza. Era moreno; cabelos lisos e beirava os três anos de idade. Tinha os olhos verdes, iguais ao do fundo de um garrafão, como ouvira os comentários de pai para filho, sobre esses fenômenos. Numa manhã de inverno, caíra da escada. Acamada, não resistiu à fratura que sofrera na região entre o tronco do corpo e a coxa. Não andava e sentia enormes dores. Falecera sem muitos cuidados médicos.

Após o funeral, ele vendeu tudo e deu rumo à sua vida. Disse à mulher que algo o chamava para donde, ele não o sabia; e, ela, vendo o marido – bisneto da Praiana e filho do qual havia checado as posses dos Gêmeos - a tudo vender e embrenhar-se ainda mais no Sertão como criador de cabras, resolveu, deixar o único filho com ele aventurar-se a viver numa Cidade Grande, uma tal de “Guanabara” que alguém, entusiasmado, lhe falara certa vez. Tinha conhecimentos sobre o fato de a Família ser de origem nobre; porém, a nobreza falida não lhe enchia a barriga.
Voltaria assim que juntasse algum dinheiro. Mandaria buscar seu filho e o marido para tentarem uma melhor posição na vida social.

Mas, o tempo passou. Sem nunca conseguir juntar dinheiro capaz de realizar seu sonho, foi ficando e se distanciando ainda mais da Sociedade. Sem casa, vivia num pequeno quarto de um apartamento, onde o proprietário exercia o cargo de desembargador. Era um homem viúvo com sua única filha. Com algum esforço, adquiriu um pequeno barraco na Favela do Pinto, o qual a abrigava, nas poucas horas de folga que conseguia, pois sabia que dia mais dia menos, seria demitida por não suportar as exigências da patroa, a qual lhe pagava uma quantia irrisória , sem nunca lhe dar o devido valor.
Dezessete anos depois, apareceu um casal de jovens em seu barraco. O filho que ela havia deixado com o pai. Espantou-se pelo fato de haver deixado uma criança e sem dar conta do tempo, vendo-o agora, já mancebo, e sem nenhuma cerimônia apresentando-lhe uma jovem como sua mulher a qual se queixava da longa viagem por estar grávida.
Como sempre contou ao filho a história sobre seus antepassados, agora, junto da jovem esposa, parecia um conto de fadas. Revelava-lhe, em os mínimos detalhes, o que lhe foi passados por seu esposo, descendente da Praiana.

Acomodados no humilde casebre de madeira (barraco), tiveram grandes progressos nos meses que se seguiram. Após completar dezoito anos, alistou-se nas Forças armadas e um ano depois, revelando-se um um forte rapaz, ostentava uma vasta cabeleira preta. Fazia uso de um produto anunciado pelos propagandistas da famosa dupla Alvarenga e Ranchinho, de nome esquisito que deixava os cabelos brilhantes, ensebados e alinhados o dia inteiro. O rapaz era muito vaidoso, porém, com baixo grau de escolaridade, todavia, o porte físico o deixava preparado para o trabalho braçal, tornando-o mantenedor do dever de cidadão. Trabalhar; trazer para sua casa o alimento; e, criar o filho como todo pai planeja, era sua missão. E não foi difícil conseguir o sonhado propósito. Mesmo com pouco conhecimento sobre construção e com a carteira de trabalho à mão, conseguiu ingressar numa obra do Estado que era administrada politicamente pelo Ilustre Jornalista e então Governador “Carlos Lacerda”.

Sua esposa, sempre fora uma menina inteligente. Porém, lá em sua terra Natal, desde os treze anos, era constantemente assediada pelo padrasto que a procurava à noite. Homem robusto, com cheiro de fumo de rolo, chegava em seu quarto e, com uma lamparina à mão, ficava apreciando-a enquanto dormia. Por diversas vezes sentiu a presença desse homem à noite, pelo forte cheiro de sua respiração ofegante. Ficava quieta, fingia dormir mas não comentava com sua mãe os acontecimentos. Temia por sua má conduta e não poderia imaginar a reação de sua genitora, já que durante o dia, por diversas vezes a via sorrindo para ele e recebendo abraços e beijos. Ela dava valor ao macho e jamais acreditaria na sua reclamação, caso a fizesse. A palavra dele sempre haveria de prevalecer. Temendo uma surra de varas ou um castigo maior, nunca comentava. E ele passou a deslizar sua grossa mão de lavrador sobre seu corpo jovem, depois que completara os quatorze anos. Não acontecia logo ao se deitarem. Era bem de madrugada quando ele chegava com a lamparina e ficava olhando-a para depois se aproximar de mansinho. Ela gelava. Queria gritar mas tinha medo de que sua mãe não acreditasse no que estava acontecendo. E o que dizer a ela que dormia no quarto ao lado da pequena casa? As separações dos cômodos era feita em estruturas de moirões e quadrados de bambus, bem fechados, para receber o barro pisado. Somente as divisões de paredes não chegavam ao teto. À noite, havia um enorme lampião que vivia suspenso acima das paredes; e, com o lume bem baixo, alumiava, não só o quarto do casal como o outro cômodo em que ela dormia junto de seu irmão. Era quando se dispunham a dormir, muito cedo, que ele apagava o candeeiro suspenso, justificando estar economizando o querosene. Sua mãe, cansada da lida, dormia. Era uma mulher franzina – alta por assim dizer, com apenas vinte e nove anos de idade. Não tomara corpo ainda. Tempos atrás, aos dezesseis anos, fora tomada por um homem que a deixou grávida, culminando com a abrupta saída da casa de seus pais, por haver sido desonrada. Amargurada, cheia de pensamentos horríveis sobre sua conduta a partir daquele momento, ela temia ser possuída, à força, por outro homem, nas condições em que se encontrava. A barriga já mostrava estar com uns... quatro meses. Mesmo franzina, sua pele nova e macia exalava os aromas do mandacaru. E como sempre existe uma boa alma que na vida nos conduz, a ela não foi diferente. Antes de se prostituir, fora acolhida por esse homem forte que a levara para sua casa. Pariu a menina e ele a viu crescer. Oito anos após, engravidou. Ao parir, ficou feliz por ser um menino. Mas ao passar dos anos, começou a temer o marido que a acolhera e que agora, era o pai de seu filho. Ouvia-o gabar-se de haver se juntado a uma gangue de ladrões antes de conhecê-la e que fora ela, a autora de sua quietação. Entre outros casos, além de afiar bem o facão e ameaçá-la vez em quando por ciume ou desconfiança, mantinha um revolver escondido, que ela bem o vira certa vez. Era nas horas mortas da madrugada, que até o cão, de tão preguiçoso quanto desinteressado a qualquer suspeita em redor da casa, deixa de latir, que ele adentrava ao quarto da menina. Quase uma rotina. Nada fazia. Apenas a olhava ou às vezes, alisava seus cabelos, gestos dos quais, ela julgava mais pretensiosos que carinhosos. Suas incessantes visitas a importunavam. Tremia de medo e logo dormia, sem saber o que ele poderia fazer... Muito adolescente, logo esquecia pela manhã os atos injuriosos daquele homem. A caminho da Escola, sob sol escaldante, usava uma sombrinha lilás. Caminhava a passos largos, temendo encontrar em algum lugar, às escondidas, o seu perseguidor. Quando avistava uns amigos e outras meninas, ficava mais calma. Era um pouco longe, mesmo assim ela conseguia chegar e assistir as aulas. Conheceu um menino que chegava sempre em seu cavalo. Ele amarrava o animal debaixo de uma árvore, ajeitava no ombro o embornal e passava por ela. Mas, quando terminou o ano, não mais o viu. E como vê-lo? Seu padrasto a fazia capinar o pequeno roçado à frente da casa onde a plantação de milho se estendia por quase cinquenta metros. Capinava um pouco e parava para olhar as fileiras dos pés de milho. As vezes, entretida com as lembranças que lhe chegavam, sem que ela soubesse como, sobre sobre o menino. Distraída com os pensamentos, tomava nas mãos os cabelos loiros das espigas e misturava-os aos do vermelho e apertava-os às palhas, amarrando-os bem, para depois, apreciar sua criação vespertina, enquanto que, enlevada de sonhos, sentia algo estranho acontecer em seu corpo, misturados à libido crescente. Nunca soubera dizer o que sentia, porém, já o amor lhe aflorava ao coração. O mato crescia rápido. Era uma ordem dele aquela obrigação, com a conivência de sua mãe. Sem perceber, por vezes, a ordem se transformava em entretenimento. E o propósito dele era, visitá-la, aproveitando que a menina pouco descansava durante o dia e que após o banho e a sopa rala no final das tardes, recolhia-se a seu quarto. Mesmo sem atingir sua concupiscência, seu sadismo era prazeroso... Sabia que ela tremia ante sua aproximação. Sabia que, dia mais, dia menos, na ausência de sua mãe, seria agarrada por ele, mesmo que seu grito avançasse léguas e mais léguas. Tremia de medo só de pensar e nada falava. E ele, aproveitando o medo de ambas, nunca a deixava apresentar-se às festinhas caipiras ao redor do povoado; tampouco, nas férias, se encontrar com o menino. Um dia, antes de começar o período escolar, ajeitou-se toda; cortou os cabelos – o que desagradou por demais o padrasto e à sua mãe – costurou seu uniforme escolar e cuidadosamente, como era o costume, encapou os cadernos. Grampeados no meio, havia um Escoteiro com a Bandeira do Brasil na capa da frente, terminando, na contra capa, com o Mapa do Brasil e o intrigante quadradinho no Planalto Central de Goiânia, deixando muitos alunos sem a conclusão do que seria aquilo, e, sobre esse mapa, a Letra do Hino Nacional. O entusiasmo era somente para três cadernos e o livro “Meu Tesouro”; o qual lhe chegara às mãos, quando da renovação de sua matrícula, na quarta Série Primária, a qual haveria de cursar. Passava de mão em mão, o melhor e mais conservado livro para o aluno mais dedicado aos estudos e que apresentasse boas notas nas provas finais. Era um incentivo aplicado aos alunos, para que progredissem nos estudos, durante o ano letivo. Aquele Livro bem conservado a enchera de orgulho. Acolheu-o junto ao peito de menina e jurou devolvê-lo tão intacto quanto o recebera. Já a ansiedade lhe abordava desde logo. Preparava-se com todo esse trabalhos, pelo retorno as aulas. E enquanto realizava seu sonho, esperava o entardecer. E entre o dormir; sonhar, e, manter-se atenta às investidas de seu padrasto, percebeu que a noite lhe fora um pesadelo.
Pelo caminho que a levava ao Grupo Escolar, juntava-se aos demais alunos mantendo em sua cabecinha, o rosto do menino e seus cabelos negros e lisos e de olhos profundamente verdes, como o fundo de um garrafão.

E para sua surpresa, o menino tão sonhado não apareceu! No outro dia, esperou, e, nos demais que se seguiram, foi ficando mais desesperançosa. Temia nunca mais vê-lo. Por sua cabecinha ansiosa, passavam pensamentos sobre sua ausência: a de ter-se mudado; a de que passara a frequentar outra escola mais distante por ter um cavalo que lhe facilitava ou... Não conseguia atinar outras razões. Mas um dia, bem no final de julho, assistindo a uma festa caipira, quem estava dançando o folclore? - Ele. E assim que achou uma oportunidade, esforçou-se em chegar perto do rapaz. Exigiu dele uma explicação sobre o não comparecimento às aulas e ele, antes de falar gaguejou. Não sabia o que respondê-la. Depois de alguns meses sem vê-la, não esperava tantas perguntas, mas, respondeu as que soube e alguns minutos depois, ela lhe falou onde morava. Mas o padrasto, quando a viu conversando com um estranho sem seu consentimento, encheu-se de ciúmes. Antes de ele dirigir-lhe a palavra que seria com certeza uma “chamada de atenção” ela adiantou do que se tratava e de quem se tratava. O rapaz notou o comportamento do homem cheio de fúria, bem como o viu colocar todos dentro da carroça e na saída, chicotear com rispidez o pobre animal. Logo, ele subiu no cavalo e acompanhou, de longe, o itinerário, até chegar numa porteira. Mas, de longe avistou o casebre onde pela janela aberta, pode constatar, vendo a luz do lampião, de que, ela morava ali, onde, por ele, o já desaprovado colono, era empregado de seu pai. Como fator de produção, o pedaço de terra pertencia ao seu pai e o explorador lhe entregava metade dos produtor obtidos nas plantações. Vez por outra, o via chegar e passar alguns alimentos a seu pai e desaparecia.
No outro dia, o padrasto injuriado pelo que vira, exigiu fidelidade da menina, pois, crescera sob suas asas e era ele quem sustentava a casa. Mas pouco adiantou tanto alarde. Para quem percebe que o amor lhe chega ao coração, nada é impossível, principalmente para ela, atinada ao que desejava. Em menos de um mês, eles já se falavam. E com quinze anos, sabendo que ela se encontrava com aquele mesmo rapaz, resolveu atacá-la à noite. Porém, sua mãe, ao contrario do que ela imaginava, já estava desconfiada dele. Um dia, ao acordar, sentiu que ele não dormia ao seu lado. Tudo estava muito escuro e ela resolveu procurá-lo. Poderia estar pitando seu cigarrinho lá fora... ou mesmo ter ido no mato, quem o sabe? Jamais poderia imaginar encontrá-lo no quarto da filha. Mas, enquanto voltava, ele saiu do quarto e deitou-se na cama. Desde essa noite ela passou a vigiá-lo. E numa noite derradeira, ela o pegou dentro do quarto da menina. Mas, em vez de castigá-lo, revoltou-se com a filha, acusando-a de estar recebendo o seu marido em sua cama. Todos os “nãos” foram injustificáveis para quem se achava traída. Ela, além de não acreditar ou não querendo acreditar, desdenhou os argumentos da menina. Temeu perder o homem com quem já tinha um filho e achou por bem expulsá-la de casa. E sem ter para onde ir, procurou a escola e lá se encontrou com o rapaz que ao ficar sabendo do acontecido, a levou para a sua casa. Viveram juntos, com o consentimento do pai que aprovara a união, porém, não poderiam ficar naquele fim de mundo. E com a aprovação do pai que já vivia só, de poucas posses e ainda mais para alimentar mais uma, resolveu sair com a menina, em busca da mãe que morava no Rio, na Cidade da Guanabara, bisneta da praiana que havia se casado com um homem de linhagem Nobre que lhe aparecera, certo dia à tarde, e tão de repente sumira sem dar explicações.

Porém, quando aqui chegaram, ficaram estarrecidos com o lugar e as condições em que vivia a querida mãe.
O pai, ela não tinha grandes esperanças de que viesse, pois, não deixaria o lugar para mais um mal dado passo. Dizia que, se mais tarde ela quisesse voltar, teria lugar certo. Além do mais, se vangloriava em deboches nas muitas tendinhas que frequentava, de que sua linhagem era de nobres. Mas, olhava para um canto e para outro e o pouco que via, em comparação ao que ouvira de seu pai e sua mãe, era o péssimo lugar em que estava. Mas sustentava haver ouvido de sua mãe as histórias sobre o Conde D'Almada, sua família e suas riquezas. Decerto, o caso que passava de pai para filho ou filha, era de que, a linhagem provinha da nobreza, porém, jamais usara o nome tão falado ou vira de perto, qualquer documento que se pudesse afirmar categoricamente as raízes dos laços familiares do famoso “Conde”. Tinha ciência; ouvira falar... Mas, certeza absoluta, não atestava. Mesmo assim, com o pequeno espaço de que era proprietário e que para tanto, entregava ao pai da menina parte da plantação, se intitulava um homem de raízes nobre; e ela, sua mulher, entregando-se a uma aventura mais arrojada, deixou aquele lugar para tentar outra situação, longe. Agora estava ali. Numa Favela... Famosa por estar localizada numa área nobre da Cidade da Guanabara; todavia, apresentando chocante contraste com as construções de arranha-céus no Bairro do Leblon – em pleno Jardim de Alá.

Já desde os anos cinquenta e quatro, havia a expectativa de um excelso plano piloto. Era elaborado pelo honorífico secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, (estou omitindo o nome, por razões obvias) e sua meta e vislumbre, acabar, em dez anos, com todas as favelas da Guanabara, que perfaziam um total de cento e cinquenta, na época. Ledo engano do Ilustre Conferencista! O plano, além de belo, justificado pelo altruísmo, já havia dado início à construção a um Conjunto denominado “São Sebastião”. Todavia, os demais, passaram a gerar dinheiro e orçamentos vultosos, os quais foram desviados para outros fins...

Enquanto o Conferencista tentava a todo custo ser o alvo das atenções, quanto ao Plano Piloto, havia no entanto, a morosidade dos Políticos, os quais permitiam aos não agraciados, a invasão aos morros e a construção de humildes casebres, na esperança de conseguirem, num futuro promissor, suas moradias definitivas no famoso ato humanitário. A esses conceitos, havia uma divisão pública sobre politica habitacional: Continuar com o P.P., favorecendo-os com moradias descentes, ou deixá-los nos morros, limitados ao “Deus dará?”
Havia também, os que não aceitavam a invasão, principalmente em se tratando de locais nas encostas verdes, como o Morro do Vidigal, que ganhara esse nome, em 1820, em homenagem ao Major da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Fora doado pelos Monges Beneditinos, por seus serviços prestados a Cidade; porém, vinte anos depois, o morro foi invadido por alguns moradores... e, em mil novecentos e sessenta e dois, já se podia ver na mata, uma favela que não parava de crescer, qual ruptura à uma epiderme lesada.
A discórdia aumentava entre o “sim e o não”. Desmatando os morros e tornando-os uma chaga cancerosa à vista dos visitantes, pelo fato de o Plano estar aquém dos propósitos orçamentários, em se tratando de pessoas sem qualificação e sem representantes políticos, ou... expulsá-los? Alguns eram contra a permanência desses indesejáveis, principalmente em se tratando de estarem em bairros nobres, como ladeira dos Tabajaras e outros mais; enquanto que, o Plano Piloto, tão sonhado pelo Conferencista, caducava. O certo é que, a ideia teria dado certo, - e hoje teríamos o verde colossal a se estender sobre esses morros invadidos – caso alguém houvesse dado prioridade ao plano do venerável Bispo; todavia, poucos se davam conta, e, os mais entendidos, não tinham em mente o quão grande era o propósito futurístico à Cidade da Guanabara, orquestrado pelo Ilustre Conferencista.

Enquanto tudo isso acontecia, permanecia, todas as tardes, às dezoito horas, a “Hora do Angelus” em grande audiência, na voz do carismático Júlio Louzada, radialista, que conseguia com tal ato, unir milhares de pessoas ao lado de seus rádios, com copos com águas, chaves e carteiras de trabalho, para rezarem fervorosamente a “Ave Maria” que se estendia até então, desde mil novecentos e quarenta e nove.
Havia nos quadros seguintes, a "Pausa para a meditação" que tratava dos relacionamentos amorosos e traições; e "Eu acredito em milagres", dando prosseguimento, pois, a programação já existia, desde mil novecentos e quarenta e sete.
Logo depois dessas orações, tínhamos nossos heróis: ouvia-se o seriado “Jerônimo” o famoso herói do Sertão. A empolgação do ouvinte era, “Aninha” a noiva do mocinho. Ela jamais se casava com ele, pois, sempre no dia do evento, surgia um empecilho. Lá ia ele, então, montado em seu cavalo, desbaratar mais uma quadrilha de malfeitores; ele, e seu seguidor, o empolgante “Moleque Sací.”
Logo a seguir, ouvíamos o “Anjo.” Detetive que tinha por companheiro, o Metralha. Era uma dupla infalível. Não havia nenhum delinquente, na história apresentada, que não fosse preso.

Quanto ao Plano... nem tudo estava perdido. O Ilustre Conferencista conseguiu, como seu primeiro passo, construir o Conjunto habitacional, localizado a oeste da Cidade, à margem do Jardim de Alá, no Bairro do Leblon, denominado “Conjunto São Sebastião”. Teve início no ano de mil novecentos e cinquenta e cinco, logo após a morte do Presidente da República, Getúlio Vargas.

Já nessa época do ano de mil novecentos e sessenta e dois, todos que moravam nas favelas de entorno, tinham certeza de que sairiam dali a qualquer momento, espremidos pela opinião pública e confiantes da relação nominal dos moradores já catalogados. O menino estava bem amparado pela avó enquanto que sua nora, menina de dezessete anos, era levada por uma conhecida a se empregar em uma casa de família. Seria a babá de uma criança de apenas dois anos. Vivia agradecendo a Deus e a todos, pois, poderia aproveitar todas as roupinhas do garoto, caso a patroa lhe passasse às mãos. Feliz com o primeiro ordenado, julgava estar vivendo num paraíso, apesar das condições precárias que enfrentava, mas, melhor, bem melhor do que aquele lugar em que fora expulsa injustamente. Seis meses de trabalho, seis meses de alegria, seis meses com o dever de mãe, amamentando, quando, fora morta covardemente na esquina da rua Pedro Américo, alguns metros, por assim dizer, da Delegacia de Polícia. O assassino, aproveitando a ocasião em que a Light (Companhia de luz) desligava por uma hora a energia do bairro, então a matou. “- Era ainda uma criança!” - Noticiou os Jornais “ – Fora morta e abandonada, sem as peças íntimas, apenas com a combinação. Possivelmente, o assassino a usou sexualmente em um canto, entre uma parede e a outra. Por certo, já a esperava, sabe-se lá por quantos tempos!”
A Polícia investigativa demorou três meses para prender o malfeitor. Tratava-se de um homem corpulento, mãos grossas e que residia num quarto de uma hospedaria, no Catete. Viera do norte especialmente para encontrá-la. O perseguidor implacável havia deixado sua mãe, para se encontrar com ela. O crime revoltou a todos na ocasião. Declarado por ele, publicamente, “de que chegara ali não para matá-la, mas, tentar induzi-la a mudar sua opinião em continuar morando naquele lugar fétido... Mas que, no primeiro e único encontro, ela tentou gritar e cuspiu em “- minha cara!” - Disse à reportagem - “- Daí, perdi a cabeça e a matei!”
“- Mas como você a matou, indivíduo desprezível?” - perguntou-lhe o Delegado com a fúria a lhe saltar dos olhos:
“ - Com as mãos!” - Respondeu calmamente, mostrando-as, presas as algemas.

Não demorou muito para que a mãe (avó materna) chegasse com o menino, filho do assassino e procurasse abrigo na casa da mãe do seu Genro.

Mas assim que o pai (viúvo) retornou do trabalho, a pôs para fora do barraco aos pontapés, acusando-a de ser a responsável direta pela morte de sua querida mulher. A viu chorar e implorar pelo abrigo, já que não tinha dinheiro nem teto. Mesmo assim, não foi ouvida nem atendida. Saiu e foi residir na Favela do Esqueleto, levada por um homem que conhecera no Norte e que a acompanhara desde lá, assumindo os deveres de pai de seu filho. Mas não era bem isso que ela queria para si. Viver humildemente, ter sua vida ao lado de quem a acompanhara até ali, criar seu filho... não. Queria mais e foi assim que ela se juntou a um conhecido delinquente da época.

Os comentários de que os moradores favelados seriam cadastrados e remanejados para um lugar seguro, encheu de esperanças os olhos de dona Felismina. Com o filho e o neto juntos, poderiam prosperar. Mas uma trágica notícia chegou aos seus ouvidos numa manhã de domingo do mês de abril. Fora avisada de que o filho se encontrava morto nas areias da Praia de Copacabana. Quando lá chegou, ele estava sendo levado pelo “Rebecão” para o IML. Chorou muito em seu enterro. O rapaz não era um bom nadador; mesmo assim, entrou nas águas e, dizem que, antes, “mostrou a um amigo de trabalho, justo no dia de sua folga, o qual sempre o acompanhava a vários lugares, a figura de uma mulher, acima das águas, a convidá-lo a chegar perto dela.” O amigo, de imediato retrucou, aconselhando-o a não entrar na água; de que o que estava vendo era uma ilusão... De nada adiantou. Viu o amigo mergulhar e não mais voltar; que, de imediato chamou o banhista salva vidas. Declarou essa conversa, assim que o retiraram das águas, já sem vida. Nenhum dos presentes deram-lhe ouvidos, senão, um repórter que presenciara o fato. No dia seguinte, o astucioso colunista de um jornal popular fez comentários sobre o que ouvira na praia.

“- O infeliz vislumbrou a figura de uma jovem sobre as águas... Mostrou-a a seu amigo. Caiu nas águas e só voltou, morto!”

Um mês depois, ela e seu neto mudaram-se para o famoso “Conjunto Habitacional São Sebastião”

Bem acomodada e com o neto ainda pequeno, escreveu ao marido, convidando-o a vir, mas a resposta à sua missiva fora maior que sua surpresa: ele já havia posto outra mulher dentro de casa e a notícia era de que, seria impossível atendê-la e que não voltasse, pois, a situação estava degradante.
Permaneceu com a carta na mão, sem saber se chorava apela má notícia ou se ria por entender que havia se livrado para sempre do “traste” que deixara para trás.

Ela, como outros mais, aceitaram a saída da Favela; no entanto, os demais que não quiseram sair, foram obrigados a deixar o local, sob protesto; grande tensão, e, resistência, exigindo assim, a interferência da Polícia Militar. A prisão de líderes comunitários acirrou ainda mais os ânimos. Devido ao incêndio nesta Favela, na madrugada do dia onze de maio do ano de mil novecentos e sessenta e nove, o qual pegou muitos moradores desprevenidos e ainda dormindo, alguns foram transferidos para Bangu, na Cidade de Deus, enquanto outros, para abrigos provisórios da Fundação Leão XIII. Segundo as más línguas, o incêndio fora proposital. Porém, ninguém apontou as causas, as quais, nunca foram esclarecidas. Dona Felismina e seu neto, pela Graça de Nosso Senhor, já estavam alojados em um belo apartamento, no Conjunto recém inaugurado.

Por essa época, na Favela do Esqueleto, um homem que já havia ingressado na vida do crime, respondendo pela alcunha de “Cara de Cavalo”, deixara de vender maconha para tomar dinheiro, com truculência, das mulheres que praticavam o “trottoir” – atividade das mulheres prostitutas das calçadas – e até lhes espancava para tomar-lhes os parcos reis que lhes chegavam às mãos dos fregueses das madrugadas, debaixo de marquises ou em cantões de paredes. A doença venérea andava à solta nos órgãos genitais de quem as tomava. E sem haver uma conscientização sobre o mal trazido de além mar pelos marinheiros, jovens e adultos morriam antes do tempo. Havia tratamento adequado à época, porém, poucos procuravam os hospitais, posto que, médicos infectologistas, haviam poucos. A prevenção, ninguém fazia. Mas isso não lhe tirava o ânimo de abordá-las. Se dizia dono de todas as mariposas, menos as que atuavam na Zona do Baixo meretricio, na Rua Pinto de Azevedo. Não podia frequentar aquela zona por ser considerado homem violento; então, vistoriava, de táxi, a Praça Mauá e adjacências. Muitas vezes, espancava os fregueses que temiam por sua quarenta e cinco à mão e, insatisfeito em tomar o dinheiro dos fregueses, ainda batia nas prostitutas.

Mas, como rondar à noite começou a ser uma tarefa árdua para ele, optou então por achacar os pontos do jogo do bicho. O lucro era maior e menos cansativo. Mantinha a mesma investida. Chegava, intimidava e apontava armas, - ele e uma mulher que o acompanhava. (mãe, de quem viera do norte e que fora assassinada...) Cumpriam as extorsões em todos pontos do Bairro de Vila Isabel. Era como se fosse, diariamente, um pagamento compulsório. A mulher andava bem vestida e ostentava joias, estas, tiradas dos incautos das atendentes sexuais. Vangloriava-se de ser bem sucedida na Favela.
O arrocho militar não intervinha nesses assuntos cotidianos que era da competência da Polícia Civil. Porém, o dono da Banca de Bicho, incomodado pelas investidas diárias dos achaques, pois, não tinha hora nem ponto certo, comentou com um Detetive, mais conhecido na época, pela alcunha “Le Cocq”.
O famoso Detetive, junto com seus amigos, também da Polícia, armaram um cerco em um dos pontos de jogo, no dia vinte e sete de agosto de mil novecentos e sessenta e quatro, pela manhã.

Não demorou muito e numa das mais movimentadas fortalezas ( na época, lugar em que os apontadores ficavam escrevendo os jogos – espécie de banca “escondida” da Polícia ) de Vila Isabel, parou um carro de praça, de cor preta, - marca chevrolé – bem defronte ao ponto. Assim que o meliante viu três homens vindo em sua direção, desconfiou. Com um grito, mandou que o chofer saísse dali o quanto antes, mas, foi cercado pelo fusca do Detetive à sua frente. O representante da Lei, julgando que o bandido fosse se retratar e se entregar ante sua presença, pois, na época, a Polícia era temida e respeitada, desceu do carro e sem nenhuma arma na mão, lhe deu voz de prisão. Então, sem muito pensar, o meliante atirou contra o alvo... Não deu tempo para que o Detetive se esquivasse. O tiro da Colt quarenta e cinco do meliante o acertou em cheio. O propósito era prendê-lo e se consagrar diante da Sociedade, tendo em vista a ação dos policiais estar sendo coberta pela reportagem jornalistica.
Em socorrer ao amigo Le Cocq, atirar; se defender... - que o propósito era prendê-lo -, o táxi saiu em disparada, levando também a mulher.
Pronto. Seu primeiro crime a um Agente da Lei, noticiado pelos Jornais sem contar com os que não vieram a público.
Tal crime o tornara o mais hediondo de todos os bandidos da época.
Indignados com a morte do Detetive - mais pela ação desastrosa e sem planejamento – criou-se uma organização à moda e maneira deles, denominada “Scuderie Le Cocq”, cujo símbolo era uma caveira com um punhal enterrado no alto do crânio, não para prender, comandados por um outro Famoso Detetive, mas sim, para vingar a morte do amigo.
A caçada ao bandido deixara a Polícia desorientada enquanto que, a excessiva frase na boca de todos era de que, “bandido que atira num policial, não deve viver.” E a perseguição se tornava ainda mais acirrada.
Nessa caçada, pessoas que se pareciam com ele ou mesmo eram confundidas com seu porte físico, apareciam mortos em vários lugares da Guanabara.
O homem, (o qual me oponho a citar seu nome) mais conhecido pela alcunha de Cara de Cavalo, deixou a Cidade e saiu de circulação.
Mas, no dia vinte e sete de agosto do mesmo ano, a Scuderie Le Cocq recebeu um comunicado de que alguém (a mesma mulher) estaria lhe dando cobertura, homiziando-o numa praia, na região dos lagos... Para lá partiram. Da mulher, pouco se soube, porém, o homem caçado e que evadira-se por uma janela, fora perseguido e morto com mais de cem disparos.
Depois disso, alicerçado pela organização clandestina de repressão ao crime, um dos agentes fora eleito deputado estadual, e sua plataforma apresentava os seguintes dizeres: “Bandido bom é bandido morto”.
E sob os protestos de um pintor e renomado escultor; bem como artista plástico, tão performático quanto anarquista, o bandido virou herói, pela ação desastrosa do adjetivado Senhor.
O episódio tornou a explodir em opiniões avassaladoras, tempos depois.

E o menino, filho dos falecidos pais, cresceu, estudou e, sob os cuidados de sua avó, cuja observância excedia em desvelos, recebeu o Diploma de Médico. Continuava a estudar, pois sue objetivo era ser Médico Cirurgião.
Era um Senhor observado por todos, conceituado e dedicado a profissão que abraçara.


OS GEMEOS – TERCEIRA PARTE - 1961


Tempos atrás, nas priscas, - se é que podemos nos referir a tal passado – uma afortunada Senhora, que, pelos livros de um Cartório, única mulher, grávida, casada com um dos descendentes vivos da linhagem do “Conde, a qual vendera tudo para se afastar da maldição dos gêmeos, ocupa uma mansão ainda intacta, tão sonhada por todos os investidores imobiliários, da ex-proprietária e afamada Madame “D'Almada”.

A história foi passada de boca em boca, sempre contada a alguém que se prestava a ouvi-la.
Fora morar na Mansão da Madame, num Bairro Nobre de Vitória – Capital do Estado do Espirito Santo - e por lá ficou, vendo crescer suas duas filhas.

Em várias ocasiões, disposta a relatar sua mágoa, passava à uma das filhas o episódio da fazenda, sobre as altercações familiares entre seu tio e seu pai, os quais eram gêmeos, nascidos que foram, colados pelo joelho.
Todavia, num episódio trágico ocorrido com a filha mais velha, sua derrota fora ainda mais amarga. Perdera-a com um mal súbito... Males como tal, que chegam e varre tudo e se vai, deixando, quase à míngua quem ostentara até então uma soma incalculável entre bens, dinheiro na Caixa Econômica e imóveis por toda a Cidade. Soubera investir o que encontrara de bens na fazenda e o transformara em dinheiro. Mas, pela doença que chega, que toma quase tudo e se vai, seguiu-se, numa tênue linha, do ápice ao nível do chão.
Restara-lhe a menina com vinte e dois anos, formada no Colégio Normal, professora, criticada por muitos sobre a decadência. Mas os comentários não lhe tiravam os louros em pertencer a uma suposta família de Condes.
Quando conheceu rico fazendeiro em Guarapari, na orla marítima, já contava com mais de vinte e cinco anos.
A fama de ser descendente de nobres a tornava figura importante na Sociedade Capixaba, embora a presença dos parcos tostões em sua bolsa, havia tempos que não mais tilintavam.

Mas sua mãe, que comia arroz com feijão e arrotava “caviar” tornara-se uma mulher amarga. Sua filha, vendo-a na decadência, sabia que o Social lhe havia escorrido pelos crivos das mãos, e, por sentir que perdera todos os créditos dos quais a sustentara até então, lançava mãos, para fazer dinheiro, de alguns bens adquiridos outrora, pela afamada Madame, que transformava em bens o precioso metal que recebia de sua genitora.

Morreu aos oitenta e seis anos, querendo um enterro sobremaneira, acima dos padrões passados. A filha, todavia, a espremeu num caixão comum, sem alças douradas, cuja madeira não chegava à nobreza das quais tanto ostentara nas salas e quartos da mansão, deixadas por sua descendente.

Mas, obedecendo ao proverbio sobre “quem é rei, nunca perde a majestade” - a professorinha, por ter um pesinho dentro da realeza, conseguiu casamento com um jovem que não fez nenhuma objeção sobre a vida passada de sua mãe. Considerava a tragédia como fato natural, sendo de elevado altruísmo – a mãe perdendo tudo pelo esforço que fizera para salvar a filha e o desprezo da sociedade que esmagara, sem nenhum esforço, aquela que tanto teve e que perdera tudo como castigo da natureza, passando a pedir, primeiro para o Banco, depois, aos mais chegados e por fim, empenhando o que lhe restava e vendendo o que de valor ponha os olhos, para pagar dívidas.
Mas o jovem, filho de rico comerciante, com várias casas de comércios e secos e molhados, apagado nos meios sociais, usou-a como o primeiro degrau da imensa escadaria que o levaria, por certo, ao sucesso. O fluxo do comercio no âmbito social o tornava um principiante a enriquecer a olhos vistos. Passou a ter domínio Sociopolítico e lançou candidatura, sempre alicerçado no episódio passado da esposa, concernente à nobreza. Considerava-se esposo de uma mulher cujos descendentes, ostentara, outrora Título Nobre. Para tanto, vasculhou até encontrar o Brasão cuja insígnia justificava o nome “D'Almada”.
Mandou investigar os primórdios do Conde e sua fortuna. Apresentou o “Brasão” aos incrédulos e aos que o sustentara até então em alto apreço; reverteu o quadro de decadência da esposa e família e restitui-lhe o título de nobreza.
Um homem inteiramente anômalo. Era cortês, dava atenção a todos, mas, tomava dinheiro até dos mendigos.
Ao se dirigir aos que orbitavam à sua volta de “burgueses” afirmação impensada e mal interpretada, fora criticado duramente pela imprensa.
Pressionado pela opinião publica e jornalistica, retratou-se com respeitosas desculpas; porém, a palavra lançada jamais voltara atrás e, se não o levou ao chão, o fez cambalear nos quadros sociais. Mas, se quem tem dinheiro não pisa em lama, tampouco se associa a quem nela pisa. Outra vez dentro da sociedade Capixaba, enquanto muitos o olhavam com certas reservas, outros torciam os bigodes aguardando sua iminente volta aos meios sociais. Foi assim que ela, sua esposa, olhou a todos com certa desconfiança. Por diversas vezes se desentendera com o marido sobre como a considerava: “Uma Nobre ou plebeia?” Todavia, seu marido nunca a deixara só. Esmurrou pontas de facas e digladiou com os mais afoitos na ocasião. Por fim, mostrando-se Ilustre político, ganhando status, todos se calaram. Porém, ela nunca se esquecera dos comentários desairosos sobre sua avó que esbanjara dinheiro e era dona de quase todos os Hotéis e de sua mãe, falida por um ato incontestável do destino.
Com o tempo, filhos cresceram, se casaram e a estabilidade financeira para todos estava baseada no Comercio e nos bens adquiridos.

Houve uma época farta, para quem tinha bens – dinheiro – e apenas uma das bisnetas do homem que sustentara o brasão, casara-se com um rico fazendeiro, em janeiro de mil novecentos e quarenta e um.
Uma época dura, porém, não muito difícil de se atravessar para o fazendeiro bem sucedido e dono de muitas terras no litoral Capixaba.

Uma década após a guerra na Europa, começava o aparecer nos mercados, produtos diferentes. Além do açúcar em tabletes bem como os famosos produtos antiácido “Alkaseltser e o “Sal de frutas Eno”, já o tão falado refrigerante, produto da “Coca Cola”, era a coqueluche do momento. Ao término da guerra, o progresso voltou e em mil novecentos e sessenta e um, nasceu um dos filhos da Família Capixaba. Uma menina que se orgulhava de o Pai ser Acionista da Docenave, mas, que, na verdade, amargara o infortúnio de haver visto o último navio do Estaleiro Verolme ser lançado ao mar. Era o Doceserra; Navio de cento e setenta toneladas. A Empresa Docenave exportava toneladas e mais toneladas de minério de ferro, desde mil oitocentos e oitenta e quatro.
Porém, essa grande empresa fora privatizada. Criminosamente sucateada, toda a frota caiu no descrédito e apodreceu, sendo vendida a preços baixos, que os Jornais da época chamaram de “preços de banana”.
Enquanto viva, gerara vultosos lucros aos empresários do ramo.

No Rio de Janeiro, o filho da menina morta pelo padrasto e do afogado, ex favelado, havia se formado em Médico Cirurgião. Já com trinta e dois anos, fora convocado a um Congresso de Medicina onde veio a conhecer uma menina muito bonita. Filha de um Industrial e fazendeiro.
Entre cartas recebidas e telefonemas dados, casaram-se. O marido, pela beleza da esposa, pretendia deixar a medicina para se tornar administrador. Porém, sua mulher levara dois anos para engravidar.
… E o casal, felizes pelo fato de a gravidez estar aproximadamente com quatro meses, foram verificar o feto através da ultrassonografia. O médico, quando viu na tela o fenômeno, chamou o pai em particular e apresentou-lhe os fatos.
Não demorou muito para que a mãe também soubesse. Eram gêmeos... Gêmeos, porém, um dentro do outro, com funções normais; corações, rins... mas, uma perna dentro do abdome do outro, colados, tornando-se impossível a separação. Foram consultados todos os especialistas, porém, depois de muito estudo, chapas e tomografias, chegaram a conclusão de que, caso houvesse a tentativa de uma separação, nenhum dos dois sobreviveriam.
Após nove meses, deu a luz aos gêmeos, numa complicada operação Cesária. O sigilo foi absoluto quanto ao nascimento daquele fenômeno. A horripilante presença dos gêmeos dentro do berço, transformava ainda mais o amor que lhes dedicavam os pais. Mas o pai queria entender o porque daquele fato inexplicável, se ambos eram saudáveis.

Com dois anos de idade, escondidos na fazenda, unidos, um sorria para o outro, devotando amor recíproco. A mãe, passou a olhá-los com certa indiferença. Mas, não os desprezava... Todavia, o transtorno desde o nascimento sobre como amamentá-los a tornava infeliz. Como seria seus crescimentos; como estudariam; como apresentá-los às pessoas de fora, porque, as da família, os olhavam pasmados. Foi proibido expô-los a quem quer que fosse. Tantas foram as proibições, que sua mãe, entrou em depressão e certa ocasião, fora encontrada morta, dentro de uma poça de sangue. O marido, que voltava sempre à fazenda deixando-os aos cuidados de dois enfermeiros e da mãe, desta vez a encontrou sobre uma pedra fria do IML.
A linda mulher a quem ele tanto amava estava morta. Depois do enterro, sentou-se na sala, olhando os meninos no piso atapetado na presença da Enfermeira, chorou copiosamente. Todos sofriam. Mas, queria saber o porquê, pois haviam feitos todos os exames pré natalinos!
O tempo passou e eles cresceram estudando com professora particular, sem nenhuma rusga entre os dois. Unidos, amavam-se mutuamente. Eram fortes e os olhos apresentavam um verde escuro, da cor do fundo de um garrafão.

Como o marido ficou sabendo sobre sua descendência, reservou para si o que já havia ouvido de sua esposa falecida.
Assim, resolveu investigar o passado. Mandou um investigador aos confins de sua descendência, lá, naquela fazenda, onde, como por encanto, circulava a história sobre os irmãos que se odiavam.
Após alguns meses sem nenhuma resposta, tendo já desistido da espera, chegou o investigador, trazendo um relato do que havia visto e ouvido.
Assim que o médico fazendeiro terminou de ler o relato, o qual mencionava sobre um casal de gêmeos que se odiaram e que morreram digladiando-se, levando outros ao mesmo infortúnio, preferiu ouvir do investigador, de viva voz, um pouco mais sobre o que havia visto e ouvido. E o homem, cauteloso em suas palavras, informou-lhe sobre a demora de sua vinda, pois, havia permanecido naquele local , um pouco mais, para maiores esclarecimentos.

Informou que uma das partes da fazenda ainda estava intacta; mas nada indicava sobre o “Conde D' Almada”. Vasculhando o local, encontrou uma enorme cadeira em cujas costas, havia as iniciais C D A, donde intuiu, de imediato, ser “Conde D' Almada”, todavia, quem se sentava atualmente na referida, era um Senhor de cabelos brancos, beirando a idade de noventa anos, com boa visão e ainda lúcido, o qual presidia uma Sociedade intitulada “Magnânimo Atendimento Espiritual.” Era o quarto descendente na sucessão do Fundador.
Obedecendo rigorosamente aos preceitos local, entrar descalço, não fumar, não usar de bebidas alcoólicas etc. Na primeira vez que entrou, convidado que fora, não prestara atenção ao que se passava tanto no lado esquerdo quanto no direito. Mas presenciara uma fileira de seres encapuzados seguindo-o com olhares baixos. O ancião estava comodamente sentado muna cadeira, única no local, inclusive, vestindo roupa branca, possivelmente de linho e os pés, - aquilo foi o que mais o impressionara – estavam apoiados em um escabelo. “ - Quando me aproximei, ele retirou os pés de sobre o objeto (Tamborete) deixando-me ver o que havia imaginado. Havia no pequeno móvel uma tampa, e, que, possivelmente dentro dele poderia conter alguns papeis ou documentos preciosos. Um banquinho, que à primeira vista, é sem qualquer relevância. Serve apenas para o descanso dos pés, mas... aquele era antigo, em madeira nobre, escura por sinal cuja tampa era alinhada por dobradiça antiga, com as iniciais C D A. Poderia haver algo dentro dele!” “- Quando reportei-me sobre o que havia dentro do escabelo, ele percebeu minha astúcia. Levantou-se da cadeira e levou-me para fora do Templo. Antes de pisarmos no chão úmido, fez-me calçar os sapatos e ao terminar, pus-me de pé. Foi quando ele me segurou pelos ombros, muito suavemente deixando escapar um sorriso majestoso. De frente para mim, sussurrou ao meu ouvido, quase numa advertência, sobre o que lhe havia perguntado, apontando a mão esquerda para o cartaz bem grande à frente, o qual eu ainda não havia visto. E lá estavam os dizeres:

“ REVESTI-VOS DA ARMADURA DE DEUS, PARA QUE POSSAIS RESISTIR ÀS CILADAS DO DEMÔNIO” - Ef. 6. 11

“- Não queiras evocar coisas antigas, meu amigo... Estamos esperando, sobremaneira, reconciliação de algo que não sabemos, quando... mas estamos!” E completou “- Estou aqui, passado à minha pessoa, de pai para filho o que me foi proposto.. Iguais aos meus pais, avós e bisavós, nasci aqui, estudei lá fora, voltei e estou esperando o que me foi dito para esperar... Acho que em breve chegarei a conhecer o propósito dos meus ancestrais.

“ - Suas palavras foram contundentes!” - Disse, por fim, o investigador ao pai dos gêmeos e completou:
Permaneci por lá por uns três meses. Fui bem tratado, porém, nas poucas vezes que adentrei a sala, a convite, sempre sentia um frio correr-me pela dorsal.

Aos doze anos de idade o pai os fez entender sobre os fatos antigos, envolvendo os meninos gladiadores. Contou-lhes as histórias mais de uma vez e depois os fez retornarem ao local esperado. O ancião já os esperava; e, com um gesto fraternal e uma encenação já preparada, os acolheu, oferecendo-os a cadeira que até então o sustentara.
As palmas se seguiram e com o coração partido e abatido, o pai os deixou, ali, aos cuidados dos representantes daquele ambiente Espiritual.
Antes de sair pelo portal, ainda os olhou e o que viu, o deixou satisfeito. Eles estavam sentados, comodamente, tendo os três pés apoiados no escabelo. Ao olhar mais uma vez, notou os quatro olhos verdes se distanciaram dele.
No patamar do portal, o ancião lhe disse as ultimas palavras:
“- Este foi o lugar em que mãos empunharam gládios... Este é o lugar do encontro que se cumpriu o que fora designado por Deus!” Obrigado por trazê-los até aqui!
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Solano Brum
Enviado por Solano Brum em 07/01/2017
Reeditado em 25/08/2021
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