O encontro
O vento de dezembro trouxe a mim uma carruagem de sonhos desfeitos. Era para ser um mês alegre, de risos e de São Nicolau disfarçado de papai Noel, mas não foi. Era para ter um pinheiro, uma árvore, uma lapinha, um presépio... Qualquer coisa para esperar o “bom velhinho”. Mas não deu. Tudo se vestiu de vermelho: piscas, luzes e estrelas... Cascas de alegrias compradas em cada esquina. Devia ter eu entrado no pique, usado o cartão de crédito e parcelado minha alegria em doze prestações sem juros. Mas jurei não fugir. As crianças corriam de um lado a outro, encantadas com os coloridos das bolas enquanto em mim girava um globo de ausências. Quis rezar alguma oração aos pés do altar, mas o medo do ridículo de barganhar com Deus alguma felicidade me vez caminhar e apenas sentar diante à matriz. E fiquei ali por horas que me pareceram séculos, mastigando pedaços de esquecimentos. Sentia-me invisível aos olhos de todos, apesar da praça, àquela hora da manhã, já retratar todo o caos inerente às sociedades modernas. Podiam-se ouvir, por todos os lados, os gritos e os gemidos das angústias e solidões silenciadas. Parecia que cada um olhava apenas o preço mais justo de suas felicidades compradas. Eu apenas sentia um cheiro de passado e pagava à vista o preço da saudade. Era para celebrar um nascimento: “E deu à luz seu filho primogênito, e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o num presépio; porque não havia lugar para eles na hospedaria”. O tempo era de buscas, mas o caminho escolhido parecia levar seus peregrinos somente a um pesar profundo. Uma espécie de desertificação da alma. Em meio aquele cemitério de falsos vivos, eu também, agonizava, calando meus gritos, sufocando lágrimas, esquecendo lembranças... Era para o raiar do dia me trazer esperança, mas o vazio nos olhos dos transeuntes se confundia com o vazio na minha alma. Vagava, sem a mão sapiente de Virgílio, pelos infernos do meu pensamento, quando aqueles olhos me chamaram. Era nada além de mais um andrajo humano. Jamais o teria olhado duas vezes, não fosse aqueles olhos tão paradoxalmente vivos naquele rosto privado de carne; aquele corpo que parecia, desaprendera ser humano. Em suas mãos, umas flores, que a meus olhos cansados do cinza, pareceram extraordinariamente vermelhas, em contraste com o palor daquele rosto desfigurado. Era para ter buscado em minha bolsa, algumas poucas moedas, repelentes eficazes a esses inconvenientes. Mas aqueles olhos nada me pediam, e cautelosamente, talvez porque percebera as pedras ruírem lá embaixo no abismo em que me encontrava, ele se aproximou. Sorriso transformado em careta, mãos me oferecendo flores. Flores vermelhas. Estática, apenas recebi o que jamais alguém havia me oferecido. Certo que não era seguro se aproximar mais, ele voltou ao seu mundo. Perplexa, vaguei entre os andrajos humanos com vestes de ouro. . “Com vossa mão livrai-me dos homens, desses cuja única felicidade está nesta vida, que têm o ventre repleto de bens, cujos filhos vivem na abundância e deixam ainda aos seus filhos o que lhes sobra” A angustia ao meu lado e dentro de mim, faziam-me zanzar sem destino. Percebi no gemido solitário do badalar do relógio público, que o dia havia passado, era chegada a hora do Ângelo. “Entrando, o anjo disse-lhe: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Lembrei-me do banquete de solidão que logo mais eu teria que tragar, em minha boca sentia o salivar dos brindes em taças vazias de presente, e uma travessa posta à mesa recheada das lembranças do que já não era. O triste arrastar do relógio lembrou-me de que também eu devia me arrastar para casa. Repleta de vazio, errei pelos mesmos caminhos, que à essa hora, começavam a ficar ainda mais desertos de almas. Apenas alguns supermercados permaneciam abertos e aqueles para quem o dia tinha sido mais um de muito trabalho compravam os últimos presentes. E eu que não ganharia e nem daria sequer um voto de feliz Natal. A noite em mim se fez mais densa e pareceu mais escura, apesar dos piscas e das luzes natalinas. Ao longe, avistei um vulto. Seria um dos fantasmas da minha solidão? Esta cria papões a nos assustar. Para minha surpresa o mesmo farrapo de gente da manhã, ajeitava sobre uns restos de papelão sua ceia de Natal, provavelmente retirada de algum lixo. Ao avistar-me veio ao meu encontro, e dentro de mim veio a mesma vontade de repeli-lo com umas moedas, e mais uma vez para minha decepção a partilha veio dele. “A vida vale mais do que o sustento e o corpo mais do que as vestes” A ideia de partilhar com aquele estranho um banquete de restos, onde eu própria o era , me fez lembrar o cântico da missa da manhã entoado pelas beatas: “No banquete da mesa de uns poucos só rico se sentou nosso Deus fica ao lado dos pobres colhendo o que sobrou”. Mas onde estava Deus? Ali? Juntos aos restos de mim? Junto aquele farrapo cadavérico? ”Ele estará em toda parte onde chamamos por Ele”. E assim num misto de repulsa e medo daquele que me ofertara rosas, e no meio daquele banquete de pobrezas humanas, Ele se fez carne e cumpriu sua missão de pescar almas. “Se, pois, todo o teu corpo estiver na luz, sem mistura de trevas, ele será inteiramente iluminado, como sob a brilhante luz de uma lâmpada”.