O MACHÃO
O MACHÃO
Conto de Solano Brum
O POEMA
“... Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira, lá, ra, ra, lá, lá, lá...”
Não demorou muito para que no rádio tocasse essa música carnavalesca:
“... Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira...”
Desligo o rádio. O autor é para mim, um... Sei lá! Ele não sabe realmente o que é “você pra lá e eu pra cá”, quando se ama uma mulher assim como Nídia. E foi justamente isso que ouvi dela, no decurso de nossa discussão. Quase que posso ouvi-la. Aqui, em meio a esses móveis, a sala é muda. Mas, naquela hora, mandei tudo às “favas” e gritei:
- Pois que vá. Não é tudo que você mais quer? Quer ficar longe de mim, junto de seus parentes, pois que vá. Arrume tudo e vá “pro diabo que a carregue”, agora mesmo.
E cheguei junto de seu rosto – como ele estava esplendoroso naquela manhã de sol! - e gritei:
- Vá. Estamos de férias, não é? Você retirou o dinheiro ontem do Banco, não foi? Então, vá. Assim será melhor para nós dois. “Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira!” Terminei a discussão usando as palavras da incoerente música que haveria de ser cantada nos salões e nas ruas.
Vi que sua boca esboçara umas rugas, como se mordesse o lado de dentro. Saí, deixando-a furiosa e triste.
Brigamos, justamente um dia antes do carnaval. E tudo por causa de nosso café matinal. Eu quis fazê-lo e ela não entendeu bem e não quis ouvir-me... Sei lá. Acho que ela não foi legal. Entrou no banheiro e fiquei falando sozinho e furioso. Por que ela não me deu atenção? Isto – eu achei naquela hora -, é que acontece com homens iguais a mim, que e prestam ajudar suas esposas nos afazeres de casa. Eu a ajudava sim. Trabalhávamos o dia inteiro. Quando chegávamos em casa, tudo era maravilhoso. Dois anos de casados. Nunca uma briga. Nunca uma discussão. Por que aquela então? Será que estávamos chegando ao Ponto Final? O enjoo?
Será que fomos rude demais um com o outro? Ela, não retrocedeu pé. Eu, para bancar o “machão”, não dei, nem nada pedi. Não lhe pedi que sorrisse ou que chorasse. Como em seu poema, deixado cuidadosamente sobre a cama, que encontrei ao voltar, confiante de que ela estivesse a minha espera e tudo terminaria legal, depois de uma rápida ausência minha.
O título e o corpo do poema estavam datilografados em uma folha branca, porém, amassada, como se, depois de escrito e lido, refletido ou mesmo arrependida, quisesse jogá-lo no lixo.
POEMA DO “ADEUS”...
É bem melhor dizer-te, adeus!
Para nós dois,
Incorrigíveis,
Indomáveis,
O amor não passa
De uma simples batalha de orgulho!
- Você nada pediu
E eu nada te dei!
É bem melhor dizer-te,
Adeus,
Porque, somente assim,
Poderemos conquistar
Nossos ideais!”
= = =
Uma pedrada! Sim, uma pedrada certeira na minha cabeça. E no final, bem no cantinho da folha amassada, quando li, cheguei a gelar:
“Você exigiu que eu saísse, não foi, pois bem, deixo-te esse “poeminha” e “até quarta-feira,” tá ?
Nenhum traço de descontrole emocional no talhe da letra bonita. Nenhum tremor, nada. Ela escreveu, friamente, com cálculos e já sabedora do meu desespero.
Dotada de grande força de expressão no que escreve, mostra-me os mais bonitos ou os que mais gosta, é claro! Sempre a sorrir, me diz que os escreve para mim. Que sou seu “muso” inspirador! Graceja. Isso me deixa lisonjeado, é claro. Não os divulgava nem publicava. Nunca participou de concursos a não ser um, antes de nos casarmos. Ganhou a medalha e ficou naquilo mesmo. Eu os trago guardados numa pasta, bem datilografados a seu modo, é claro, e, certo de que um dia, eu poderei publicá-los, para torná-la a mulher mais feliz do mundo!
No entanto, falta sua presença nesse lugar. Tudo aqui reclama sua presença. Olhei o apartamento sentindo ainda o perfume de seu corpo. Perfume que vagava como um sopro de vento. Caminhei até a sala e entrei no quarto. Li várias vezes o poema. Estava bem datilografado. Apenas no canto da folha era em manuscrito e nenhum tremor na letra – olhando-o bem, tentava descobrir alguma falha na minha conclusão. Nada. Nenhum tremor. Não acredito... Não, não era possível e, já se haviam passado quinze horas após o desastroso entrevero.
Comecei a me preocupar. Olhando o relógio, vi que faltavam, precisamente, vinte minutos para as vinte e três horas! Lá fora, um bloco. Um bloco sujo ou a Sociedade? Sei lá. Aqui, falta Nídia. Um carro quase me atropelou quando resolvi, sair, à tarde, e procurá-la na casa de sua amiga mais íntima. Cheguei e com um sorriso amarelo, não entrei. Disfarcei arriscando um “feliz carnaval”. Sua amiga, viúva, muito bonita, não entendeu. Saí quase desorientado. Não sei se ela entendeu bem. Eu queria Nídia e sua amiga viúva me perguntou por ela, dando a entender de que ela não se encontrava ali.
Que burrada! E aconteceu. O carro avançou. Parei. Ouvi os freios e como que paralisado, fiquei no meio da rua e um bruto palavrão saiu boca à fora, de dentro de dois pulmões, talvez, sóbrio ou embriagado e que varou a rua e preencheu todos os cantos vazios. Propagou-se pelos ares, ecoando entre as paredes dos prédios a meu redor. Como adivinhar sobre o carro? Assim, com as pernas bambas, voltei mais uma vez ao apartamento, na esperança de encontrar Nídia e seu sorriso. Mas, que nada! – Por que bancar o machão em certos momentos na vida?
E aqui estou eu... Pra onde ir? E não é carnaval? – pensei. Vou até o paletó e apanho um convite. Clube do Flamengo. – Clube do Flamengo, hhuumm...!
A MASCARADA
Em meio a grande multidão de foliões que se divertem, estou eu, copo de papel na mão, junto dos colegas da repartição, de bermudas e camisa listrada, autenticamente carnavalesca e a cara quase cheia. Mas o equilíbrio, esse sim, ótimo. Procuro por Nídia. Quem sabe? Quem a viu? Alguém viu Nídia? Todos cantam e eu grito e meu grito se perde, engolido pela musica da bandinha. Procuro por ela aqui? – penso - por que não vou a Saquarema?
- Que é isso homem? – pergunta o amigo que me telefonou à tarde, fazendo questão de minha presença neste clube. Dançando, rosto cheio de suor, quase grita:
- Que bicho te mordeu, cara?
- Nada. Nada de errado – respondo quase colando minha boca ao seu ouvido.
Não lhe contaria. Não. Nada de desabafar, agora, cara cheia e num lugar desses – pensei.
Despistando, sai para um canto. Uma mulher, usando uma máscara preta se aproximou erguendo os braços. Sua máscara era linda. O Sarongue que usava, tinha flores amarelas, roxas, vermelhas... A mulher mascarada sorriu e estendeu-me um colar de flores. Baixei a cabeça e ele entrou livremente até os ombros. Naquele instante, pensei em não aceitar. Mas, aquilo era um convite para a folia! E Nídia? – Onde estaria Nídia, justo na primeira noite sob o Império do Rei Momo?
Abri os braços e cantei a música da separação que o compositor deixara escapar de sua alma vadia. Os cabelos da mulher misteriosa balançaram de um lado para o outro e eu, misturei-me à turba, no salão, cantando abraçado à mascarada. Sorríamos ao som da marcha.
Entre beijos e abraços, saímos de carro e entramos num hotel que não me lembro. Ali, ela tirou a máscara e seu rosto deixou de ser misterioso. Fiquei decepcionado, pois, a mulher, não era Nídia. Mas, seu perfume era adocicado. O mesmo perfume da “Coty - Promessa” que Nídia usava desde que a conheci. Sua voz macia e sua liberdade de ação eram enormes. Assim, com um leve sorriso nos lábios, ela convidou-me para entrar no banheiro ao lado. Sua boca se misturava à minha com desejo ardente. Parecia estar esfomeada por carinho. Deveria ter uns... Sei lá, talvez uns trinta e oito ou quarenta, não sei... Sei que nunca teria conseguido me reerguer dos escombros daquele episódio, não fosse a explosão de carinhos da mulher.
A Ducha era morna. Saímos e depois entramos na pequena banheira azul, de, mais ou menos um metro e meio de largura por dois de comprimento. Ela tinha os seios rígidos apesar da idade que aparentava, e, seu rosto, parecia brilhar entre o feixe de luz e a parte azul dos ladrilhos do banheiro. A água borbulhava ao mover de sua mão. Eu, carinhosamente a puxei pelo pescoço e a beijei. Ali, dentro d’água, na pequena banheira, ela se contorcia de prazer. Mas, num instante de perda de fôlego, ela, rápida, se livrou dos meus braços, deu um pequeno salto e pôs-se de pé. Deu-me a mão para que eu saísse e, leve como uma pluma, quase deslizou sobre o tapete. Além de estender os braços num convite ao prazer, nada falou. Nada pediu. Nada exigiu. Nossos corpos molhados foram se secando até que nos vimos sob o espelho do teto. Apaguei a luz e seus olhos foram se fechando, na posse do amor e da loucura. Ela era maravilhosa. Dócil. Seu corpo se contorcia de prazer. Dei-lhe todo meu carinho e amor de momento. Uma felicidade de momento. Ou momentos de felicidades? – Sei não! Dormimos sono profundo até que fui acordando com seus beijos carinhosos. Ela já havia tomado banho e sorrindo, beijava-me insaciável. Horas depois, deixei-a na Tijuca. Não fiquei com seu endereço ou mesmo um cartão. Não dei meu telefone nem fiquei com o seu. Amor de carnaval? Depois, como se voltasse de um sonho, parei e me condenei.
Meu Deus, nesses anos todos de casado, jamais havia traído minha doce esposa! Que grande canalha que sou! Bastou uma briguinha... Bati na cabeça como se quisesse por para fora o que nela havia.
Voltei meio triste por não ficar sabendo nada da maravilhosa mulher que me possuiu noite passada. Era realmente linda. Seu sorriso esplendoroso se parecia muito com o de Nídia. Estacionei o carro na garagem do prédio e pensei tomar banho, fazer a barba e ir ao encontro de Nídia. Entrei no elevador, doido para ir ao banheiro.
A impressão que tive, naquele instante, era de que Nídia estaria à minha espera. Abri a porta e os móveis me olharam, como se me culpassem pela ausência dela. Da ausência de suas mãos; da ausência de seu corpo feminino; da ausência de seu rosto e de seus gestos. Ah, que saudade de Nídia!
Parado, dentro da antessala, meio tonto e cansado, fiquei sem saber o que fazer.
“Ora”, aos diabos com tudo isso! Não tenho culpa! Gritei aos móveis que me olhavam. Calei-me a seguir e um pressentimento absurdo preencheu minha cabeça: Será que estou ficando doido? Sacudi a cabeça e entrei no banheiro. Após o banho, um telefonema inesperado. Um convite.
- Vou sim. Confirmei. Não demoro nada. Logo chegarei!
Mas, como participar de uma rodada num bar, sem a presença de Nídia? Ela sempre estava comigo. Hão de me perguntar por ela.
A DECISÃO
O bar ficava justamente na quadra seguinte à rua em que morávamos. Calmamente fui me aproximando e quando meus amigos me avistaram, foi grande o alvoroço. Havia mulheres que eu não conhecia. Entrei na onda do vira-vira. Um pandeiro e uma cuíca animava o momento. Alguém, que eu não conhecia e nem a ele fui apresentado, incrementava tudo aquilo. Outro batucava bem no meio das mesas, pois, eram três, as quais alguém as havia juntado como quem demarca o território. Dancei de copo na mão, barriga cheia de cerveja e nos pés, uma sandália de fivelas que Nídia havia comprado dois dias antes da briga, para eu brincar o carnaval. Talvez, eu, o único de cara cheia – pois, não posso beber além dos cinco copos de cerveja. A cabeça fica leve e a alegria vem espontaneamente – vi que os amigos se revezaram. Alguns saíram sem eu perceber e outros chegaram – como eu, - sem pedir licenças. Já nesta altura dos acontecimentos, era grande o movimento no bar. Lembro-me que sai também. Era noite. Fiz sinal para um táxi, e, decidido, mandei que o motorista rumasse para a Rodoviária. Lá, o Guarda perguntou-me se eu tinha documentos. Eu ri. Ele não gostou. Tirei do bolso da bermuda um cartão de crédito misturado ao talão de cheques Verde do BANERJ. No outro bolso, porta notas de couro com várias repartições em plástico nos quais se encontravam os documentos. Sem pestanejar o apresentei a quem me fizera a exigência. Ele conferiu a foto e olhou-me sob os aros dos óculos. Segui-lhe os movimentos. Olhou para a foto outra vez e outra vez olhou-me, e, desta vez, entregou-me a identidade.
- Boa viagem!
- Obrigado. Dei-lhe as costas. A Rodoviária estava cheia de pessoas que saíam e outras que chegavam. Embrulhos e malas se cruzavam raspando em minhas pernas. Um falatório enorme se confundia com uma batucada vinda do fundo, a um canto esquerdo, onde ficava o bar e ao lado, um banheiro público. O Guarda se afastou sem mais nada exigir e a minha cabeça parecia explodir. Fui até a escada rolante e passei para o andar superior. De cara, vi uma farmácia. Ah! A bendita farmácia! Comprei um efervescente antiácido e bebi ali mesmo. Sentia uma azia infernal. Ela me corroía o estômago. Procurei entre os letreiros, o lugar onde comprar a passagem. Um homem mostrou-me a Empresa e o Guichê. Entrei na fila e quando chegou a minha vez, adquiri a bendita passagem.
- Muito lá atrás? Reclamei.
- Se o senhor preferir pode esperar por outro ônibus. Temos passagens até às onze horas! Falou-me o atendente.
- Não. Não Senhor! Vou mesmo é nesse que sai agora. – resmunguei.
O meu estômago estava azedo. Depois, senti que foi aliviando até passar o mal-estar. Andei pelo corredor até chegar ao lugar indicado de partida. Desci as escadas apoiando-me no corrimão. Algumas pessoas se esbarravam em mim. Eu parava e os olhava. A cada um que me esbarrava, eu parava e o olhava. Continuava a descer e assim fui, até chegar à plataforma. Fiquei esperando pelo ônibus. Mas, eu estava mesmo meio tonto que nem notei a presença dele um pouco mais adiante. O motorista pegou a passagem e confirmou a saída. As oito e meia, ouviu, senhor! – Ta... Ta bem. Respondi.
Entrei, decidido, a procurar a poltrona numerada. Quando me sentei, foi que me lembrei do carro. Mas a cadeira era tão macia... Meus olhos estavam pesados de sono. Sem mesmo fumar um cigarro, adormeci pensando em Nídia.
…...................................................................................................................“... Eu sabia que aquilo não daria certo. Com a respiração abafada, subi as escadas; dei dois passos à frente e uma Senhora, idosa, tendo a epiderme do rosto agredida pelos longos anos de vida, que, ao virar-se, despejou toda sua ira sobre mim, usando uma vassoura de piaçaba. Encolhi o ombro e estiquei o braço tentando proteger meu rosto. O Porquê da agressão, eu não sabia. Outra vez a vassoura subiu e desceu, atingiu-me de raspão na cabeça e desta feita, tonteando-me. Meio zonzo rodei cambaleando, mas, não caí. Havia me segurado no corrimão da varanda. A idosa enxotava-me como quem enxota um cão indesejável ou mesmo pulguento. Olhei para o lado e uma linda mulher, cabelos soltos e longos, olhou-me e sorriu. Sorri apesar de toda aquela confusão, mas, a suposta septuagenária, outra vez fez descer o objeto agressor atingindo-me o lado esquerdo. Mas não doeu. Permaneci olhando e a vi chegar bem perto, estendendo o dedo com rispidez contra meu rosto. A vassoura era como se fosse uma pancada de isopor e nada senti. A mulher... Sim, era Nídia. Corri para abraçá-la, mas, meu corpo naquela hora rodopiou e minha cabeça pendeu para o lado e quase caindo, levei outra vassourada na cabeça... Soltei um grito e apaguei no chão.”
…...................................................................................................................
Acordei sem saber o que estava acontecendo.
- Desculpa-me, Senhor, não ficou bem alojada!
Olhei para o lado e a pequena jovem, meio sem graça, sorriu desculpando-se pelo desastre. Seu lugar era junto à janela. Para tanto, passara por cima de mim, sem me incomodar enquanto eu dormia. A vassourada do sonho que eu havia recebido na cabeça, era algo de plástico que havia caído do porta embrulho. Todavia, para o meu bem estar, o estorvo havia me tirado daquele sonho pavoroso. Mas, nesse pavoroso sonho, lá estava minha querida Nídia !
A menina desculpou-se mais uma vez e acrescentou:
- O Senhor brigava com alguém enquanto dormia; estava quase caindo... E eu, prestando atenção no Senhor, não querendo acordá-lo, não vi que a maleta estava mal posicionada .
- Oh, Senhor, desculpa-me!
- Huum... Senhor pra cá, Senhor pra lá... É educada, mas uma “educada desastrosa! Pensei. - Resmunguei passando a mão nos cabelos – O ônibus está chegando? - Perguntei para a menina tagarela, olhando pela janela sem poder ver o lá fora.
- Daqui a pouco – falou-me, confiante nas suas palavras ou tentando ser gentil.
Bem acomodado e sem empecilho, quis dormir e temi pelo sonho continuado... Permaneci acordado por uns instantes e adormeci. Ronquei e ela, talvez, incomodada com meu ronco, sacudiu-me. Acordei com o ônibus passando por um buraco ao entrar na pequena Cidade. Não queria chegar ao ponto final. Queria descer ali mesmo. Meio sonâmbulo e meio bêbado fui obrigado a descer na plataforma, julgando-me um rei, na pequena Estação Rodoviária. Achei que era. Mas não era. Era somente uma rua. A Cidade não tinha Rodoviária. Apenas uma espécie de lanchonete. O ônibus para e as pessoas descem e dão como ponto final. Desci com elas. Num breve momento, todos se dispersaram e os que ficaram na Lanchonete, olhavam-me de soslaio. Talvez eu os tenha incomodado com meu ronco. Bem fez a menina em me acordar. Resolvi sair. Andei por uma rua meio escura. O silêncio era ensurdecedor.
Tudo parecia muito tranquilo e a lua, extremamente pálida. Espargia seus raios sobre as cabeças dos que, cambaleavam entre o sim e o não. E eu era um igual entre tantos carnavalescos... porém, teria que seguir até a casa de Nídia mas uma força maior me tranquilizava e os pensamentos retinham-me na prudência de esperar pelo alvorecer. De repente, parei. Ouvi gritos que vinham de outra rua. Optei por ela pois, apresentava-se mais iluminada. Atravessei a praça e cheguei perto de um bar. Senti um calor abafado e a ausência do vento. Olhei em derredor e não imaginei estar à beira de uma praia... – Ausência de vento?
- Que deseja senhor?
- Uma cerveja bem gelada.
Falei ao homem voltando-lhe as costas, mas, vi no espelho à minha frente que ele também me havia olhado de soslaio, meio desconfiado. Mesmo assim, trouxe-me o pedido. Antes de entregar-me o copo, estendeu a mão esquerda e pegou o dinheiro.
Bebi tudo aquilo tentando saciar minha sede e acendi um cigarro. Ao retornar o maço ao bolso, encontrei um papel amassado. Trouxe-o entre os dedos, abrindo-o debaixo da luz do poste. Outra vez reli o tal poema. Meditei muito a respeito do que ele dizia – se era uma despedida culminando com a separação ou se apenas mais dos seus poemas, sopro de inspiração que lhe saia d'alma, para algum papel branco. Martelava-me a primeira meditação. Não obstante aos pensamentos impróprios para o momento, pois, poderia ser um de seus Poemas que lhe saia d'alma... percebi uma certa algazarra vinda de longe... O ar continuava abafado. Era um clube. Caminhei lentamente. Quando cheguei perto, muitas pessoas queriam entrar com o bilhete pago e outras optavam pelo famoso “penetra”... Pedi licenças e paguei. Não conhecia ninguém ali, mas, passar a noite lá fora, não era o meu propósito. Conhecer alguém ou não conhecer, não fazia diferença, é claro que o local deveria estar repleto de pessoas de fora, como eu... A orquestra estava firme. Muitas mulheres e os presentes todos passavam alegres, cantando, e eu, movido por uma alegria a álcool, comecei a dançar e a sorrir no meio do salão, junto com os foliões daquela noite, tentando esquecer tudo que havia passado até então.
Muito cansado e além de tudo, soado, depois de quase uma hora entre os foliões, olhei para o outro lado do salão, e, e a um canto, vi uma mulher. Abri bem os olhos. Tinha os cabelos iguais aos de Nídia. As costas, iguais. Aproximei-me, após dar uma enorme volta pelos cantos. Não queria aproximar-me. Estava receoso. “- Como é que uma pessoa que amamos, afastada, de modo tão abruto como foi, permaneça fixa em nossa cabeça? E como pode acontecer eu olhar para qualquer uma e sentir que a quem vejo se parece com ela? De longe, assim... Cheguei perto. Olhei-a de frente. Em meio aos confetes, serpentinas e a música “até quarta-feira”, a mulher, olhando-me, sorriu espargindo as alegrias do Rei Momo. Instintivamente estendeu-me o braço. Não. Não era Nídia. Mas o que me fez pensar encontrá-la aqui? Acho que fiquei doido!
Tomei-lhe a serpentina azul e dançamos no espaço apertado do salão. Mas, logo me lembrei de estar num lugar desconhecido e ela poderia estar acompanhada ou... Como eu, sozinha, a procura de alguém... E, se um seu admirador chegar? Eu, procuro por Nídia... E ela, a quem procura? Disfarcei-me e sai para um lugar afastado, certo de que, caso me procurasse, não me encontraria. “Jamais cometer o mesmo erro...” Foi o que pensei.
Tomei outra cerveja e resolvi sair do salão. Lá fora, o ar fresco da madrugada esfriou meu rosto.
A CURRA
Atravessei a rua, desci a divisória da parte murada e pisei na areia. Caminhei meio desajeitado e desconsolado. A cabeça rodava um pouco. Mas eu sabia perfeitamente o que fazia... Ou não? Sabia sim. Eu pisava nas areias finas e secas. O mar, um tanto distante, explodia suas ondas caprichosas as quais levantava um denso nevoeiro.
... Agora, vou tentar descansar na areia, perto do mar e quando o dia clarear... Ai eu vou procurar por Nídia.
Era minha intenção. As areias, por serem finas, macias, deslizavam nos meus pés. Parei e desatei as fivelas das sandálias e segurei-as firme na mão e continuei a caminhar, agora, descalço e sem direção. Sei que ia para frente, ouvindo o mar batendo nas rochas um pouco mais distantes dali de onde eu estava. Eu não tinha nenhuma noção da hora, naquele momento, mas, não muito longe de onde eu me encontrava, três pessoas riam e brincavam. Apenas as labaredas de uma pequena fogueira iluminava as três figuras. Quem se encontra no escuro fica fora de foco, por isso, não perceberam minha aproximação. Daí eu vi que eram dois homens e uma mulher. Mulher ou menina... Sei lá. O certo é que ela estava de biquíni, e eles de calção. O calor da madrugada, talvez os teria trazido à praia – pensei. Isto é normal nos dias de hoje... No entanto, minha curiosidade fez-me ficar a espiá-los até o momento em que um deles tentou arrancar o biquíni da mulher. Deveriam estar por ali já há alguns tempos. A pequena fogueira, quase nada iluminava o recinto, pois suas labaredas já definhavam. Pouco restava de luz. Mas, ela se curvou e saiu-se rápida das garras do homem. O outro, porém, assim que ela se afastou, segurou-a pelo braço. Ela, ao sair, deu uns pequenos gritos nervosos; em seguida, abaixou-se tentando pegar uma certa toalha estendida na areia ou coisa parecida e seus cabelos se espalharam pelo rosto. Em seguida, com um gesto rápido da mão, ela os fez retornar para trás. Logo depois, o primeiro pulou como um gato sobre seu corpo, arrancando-lhe à parte de cima do biquíni. Ela ergueu-se novamente, agora, com as mãos e a toalha sobre os seios. Tentou correr, mas, desequilibrou-se e caiu outra vez. Conclui, naquela hora, que mulher alguma pode correr, safando-se de alguma coisa, protegendo os seios com as mãos, não os deixando balançar. Eu pensava em tudo isso sem acreditar no que via. O segundo homem fez força e enquanto o outro a segurava, arrancou-lhe a peça de baixo, num gesto violento e cheio de risadas.
Desvencilhando-se deles, ela se levantou e os encarou. Parou. Enquanto eles riam, ela, nua, deu dois passos para trás e temerosa, tentou correr, mas o outro a cercou, como um gato esfomeado cerca sua presa.
O SOCORRO
Outra vez agarrada pela cintura e em seguida derrubada na areia, debateu-se ferozmente, porém, sem meios para se erguer, desviou o rosto para um lado e para o outro, tentando proteger a boca, mas foi beijada à força.
Esfreguei as mãos no rosto, jurando que, tudo aquilo que eu via era mentira e quando voltei a olhar a cena, um deles – o mais forte tentava possuí-la, não sei por que, à força.
Permaneci a olhá-los sem nada entender. Por que alguém como ela, não querendo ser possuída pelos dois, teria vindo aqui, nesta praia deserta a esta hora da madrugada e de biquíni? Será que ela não desconfiou que pudesse acontecer aquilo que agora vejo? Mas, - continuei conjeturando - e se ela, naquele momento crítico, resolvera não ceder a nenhum dos dois? Eu pensava e ela se debatia. Às vezes, saindo debaixo do mais forte... E outra vez sendo cercada e derrubada... E, enquanto eu os olhava e procurava entender tudo àquilo que via, pois, podiam ser amigos e... Tudo bem... São amigos... Mas, se fosse uma curra? Se ela estivesse meio bêbada e eles, aproveitando o momento, a levaram para a praia e agora... hum... Estou muito desconfiado!
Ela se contorcia e o outro esperava sua vez, ainda segurando-a pelos braços. Fazia força, sem dar, a nenhum dos dois, possibilidades da penetração. Suas pernas não se abriam e ela dava chutes violentos. O outro, de repente, enfurecido daquilo tudo, deu-lhe um tapa violento no rosto e ela gritou chamando-os de “covardes.” Ouvindo o grito, ele deu outra tapa mais forte. E outro, mais outro, até que ela... - não sei se temerosa por um soco mais violento e viesse a desmaiar -, ficou paralisada. À distância não me deixou entender bem. Assim, seu algoz fez pose. Ajoelhou-se diante de seu corpo estirado na areia.
Naquele momento, vi que nada era “tudo certo” como havia pensado antes, e, sim, uma curra das mais repugnantes. Podiam até matar a pobre criatura; quem sabe, até jogá-la no mar... Sei lá! Sei que ergui o corpo e corri em direção a tal curra. Cheguei, e o que estava por cima, sem que percebesse minha rápida aproximação, de surpresa, fui logo agarrando-o pelos cabelos. Quando ele se voltou, dei-lhe um soco. Fiquei a olhá-lo. Eu nunca havia dado um soco em ninguém na minha vida ate então! Mas, como tudo pode acontecer um dia, aproveitei o momento. Nunca havia brigado com ninguém. Mas, dei o soco e o vi cair na areia. O outro, bem mais forte que eu, me fez tombar com um bom tapa bem forte, pois havia me esquecido dele, e... Aí foi que rolei! Lembro-me. Mas ergui-me rapidamente. Os dois bateram-me e eu bati. Outra vez agarrei a um deles e rolamos. Dei um soco no queixo do mais forte e quando levei o troco, vi estrelas piscando. Mas respirei fundo e permaneci de pé. A mulherzinha, ajudando-me, batia no outro e pedia por socorro. Gritou muito. Gritou com desespero e muito alto. O mar abafava os gritos, mas, os dois, a ouviam. E ela, como uma leoa, nua, também batia, com ferocidade. Tive medo quando ela me viu bater no rapaz, pois, já vi muitas brigas de mulher com homem, que, na hora em que a gente vai ajudá-la, ela se volta contra quem a protege e ai, apanha, justamente quem está querendo defendê-la. Mas não. Inteiramente nua como nasceu, batia, agarrava e gritava. Eles se afastaram, assustados por minha resistência física. “Fora o álcool?” Sei lá. Senti-me zonzo e o olho doía. A mulher catou a peça de pano que antes a cobria, vestiu-a rapidamente e depois de colocar a última peça nos seios e enrolar-se na toalha, olhei-a de frente. Ela permaneceu de pé, também a olhar-me, receosa por não me conhecer.
O ENCONTRO
Você está bem? - Perguntei-lhe, para que ela ficasse mais confiante. Afinal de contas, eu a salvara!
“Sim.” - Respondeu-me Balançando a cabeça, confirmando o que me havia dito. Depois, deu dois passos em minha direção.
Dói o rosto? Tentou olhar-me, querendo descobrir naquela escuridão, possivelmente quem eu era.
Não muito. Respondi-lhe.
Ao tentar me examinar, mas sem poder ver muito, sorriu e comentou não ser nada sério e depois, agradeceu solícita, chamando-me de seu defensor!
- Eu fiquei muito desesperado com o que estava acontecendo. Você estava sendo currada... Você quer um cigarro?
- Não. Não fumo. Fumar faz muito mal à saúde!
Mesmo ouvindo sua opinião sobre o tabagismo, procurei o maço pela areia. Até minha carteira havia se perdido. Ela ajudou-me a procurá-los. O isqueiro estava no bolso, e, procura aqui, procura ali, achamos. Assim que acendi o cigarro, ela disse que meu olho estava roxo. Pedindo mil desculpas por haver me envolvido naquela encrenca, desabafou: “- Se você não chega, meu estranho amigo...”
Quem seria ela? Por que estava ali, em plena madrugada de carnaval, apenas de biquíni e com dois homens? Mas agora não me cabia recriminá-la. Já a havia salvo.
- Você veio com eles? Arrisquei pergunta.
- Sim. - Respondeu-me, tranquila. Mas, baixou a cabeça como que arrependida.
- Por que você não cedeu a eles sem que houvesse a violência?
Ela olhou-me assustada. Mas não esboçou reação. Depois, sentindo-se obrigada a me responder, disse sem nenhum constrangimento: “- Mesmo que fosse uma mulher... meu amigo, não cederia a dois! Não sou quem eles pensam. São dois amigos, sim, mas, ao se envolverem com as demais do lugar, incluíram-me, e eu, não percebi o que tramavam”.
- Ah! Sim. Desculpa-me pela pergunta, mas... Nunca mais faça isso. Vir à praia com dois amigos há esta hora... É loucura!
Um deles é meu amigo... Desabafou e concluiu: - Quer dizer, era. O outro, corpulento, é conhecido dele e o conheci hoje e desabafou: - Sou mesmo uma idiota, confiar... Ele sempre pensou mal de mim por eu ter esse corpo enorme... e que... Você sabe! Mas nunca me assediou. Só hoje, quer dizer, ontem, quando estávamos juntos, apareceu o amigo e ele me convidou para irmos atrás da primeira duna. Mas, eu, enquanto aquecíamos a fogueira, falei que não era nada daquilo que eles estavam pretendendo... Não acreditaram. Insistiram e eu recuei, mas cai. Eu não podia imaginar... Que burrada a minha! Ai você chegou.
Calou-se me vendo jogar fora a metade do cigarro sobre areia. Uma cor vermelha começou a aparecer na parte oposta do mar. Podia-se ver perfeitamente o dia amanhecendo, tingindo as águas. As ondas quebravam fortes na areia da praia. Já se podia ver que seria um lindo dia. Olhei para os olhos dela.
- Você está com sono? Perguntou-me, cheia de cuidados.
- Sim. Há muito que não durmo. Estou à procura de um alguém!
- E quem, esse alguém? – Aqui na praia?
- Minha mulher!
- Mas, você a perdeu? - Sorriu quando fez a pergunta.
- Não. Nós brigamos e ela veio para cá.
- Deixou você? - Perguntou, olhando-me fixamente.
- Sim... E não. – Fiquei indeciso. - Não é bem isso. Apenas está dando uma lição em mim!
- Ah! Exclamou. - E como se chama?
- Nídia.
- Bonita? Perguntou, tentando fazer-me voltar ao assunto, enquanto minha atenção estava voltada para o mar, que explodia suas ondas, deixando um rastro de espumas brancas ao longo da praia.
- Muito! – Respondi, depois da insistência. E completei: - Muito bonita. Gosto dela como gosto da vida!
Ela sorriu ao ouvir minha revelação.
- Preciso ir-me, não queres vir comigo?
- Não, obrigado!
- Você vai ficar aqui, sozinho?
- Vou. Ficarei até que o sol esquente um pouco mais!
A garota, ao ficar de pé, devia ter um metro e setenta... Quase da minha altura. Seu corpo era muito escultural. Devia ter dezessete ou... Sei lá. Começou a caminhar lentamente e sem muita preocupação, subiu a primeira duna e foi sumindo gradativamente, à medida que avançava em direção a saída da praia. Enquanto ela descia, seus cabelos voavam. Parou. E foi assim que pude ver sua figura com mais clareza. Acenou com a mão para mim e com uma única passada, desapareceu por detrás do monte de areia. É claro que eu não a veria mais! E se isso acontecesse, jamais poderia fazer comentários sobre aquele encontro informal, posto que, ela estava nua e eu a havia visto por inteiro, apesar da pouca claridade no momento. Mas, por que estou pensando nisso agora? O vento passou rasteiro. Senti-o nos pés. O sol apareceu por inteiro de dentro das águas e eu, permaneci deitado, tentando dormir. Não consegui. O astro incandescente, já esquentava muito e percebi que meu corpo estava em perfeitas condições de caminhar... E depois, já algumas pessoas apareciam e dois pescadores jogavam seus anzóis n’água. Lembrei-me da briga... Pó! Se eles resistissem mais um pouco... se não corressem... Seríamos nós dois os espancados!
Olhei para o mar que parecia enfurecido e, com uma leve satisfação de haver cumprido meu dever, pensei – Já pensou, se eu não tenho forças e se não estivesse de cara cheia?
Levantei-me refeito e comecei a andar. Subi a primeira duna; desci e as areias já estavam mais firmes e cobertas por uma batatinha rasteira, com espinhos aqui e acolá. Calcei as sandálias e pisei firme no chão de uma rua. A pequena cidade estava calma. Não parecia ser dias de carnaval. Passei por uma padaria a qual conhecia o dono. Algumas pessoas já estavam de pé. Subi a rua e dobrei a outra esquina. Não muito no centro. Comprida e adiante, faz uma volta e após, poder-se-á ver perfeitamente, a grande varanda. E à medida que eu me aproximava, ela ia crescendo. Ao longe, vi uma figura minúscula envolta num vestido amarelo. As flores exalavam perfumes estonteantes. Um perfume de flor “Dama da Noite”, vindo da casa de Nídia. Uma calma profunda me dava a força de que necessitava. A certeza absoluta da figura dela na parte baixa do pequeno jardim. Sua figura era linda... Era ela quem eu via... Eu poderia conhecê-la, entre milhares de flores, à distância. Só agora compreendo sobre as mulheres que vi... Elas não estavam entre as flores...
É ela sim! Eu andava e confirmava para mim mesmo o que via. E ela, olhando-me, reconhecia minhas passadas. Eu a via e caminhava agora a passos largos. Eu quis correr naquele instante... Senti meu corpo tentar correr... Uma grande atração! Dentro de mim, o grito “corra... corra”. A vontade enorme de abraçar aquele corpo perfumado; de beijar aquela boca açucarada e, nunca mais me afastar, tampouco deixar acontecer o que nos trouxe a separação... Ah! Estúpida briga!
Estava distante, mas, eu a vi sorrindo. Vi. Sua boca se abriu como uma rosa vermelha. Eu vi. Era uma distância razoável e vi quando ela retornou ao primeiro degrau, tentando me ver por inteiro.
Eu quis correr, mas... Além do orgulho, o instinto de machão não o permitiu. “Não corro.” Pensei. “Não vou correr... Mesmo porque, ainda não é quarta-feira!”
E não corri.
= = = = = = = = = = = =
O MACHÃO
Conto de Solano Brum
O POEMA
“... Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira, lá, ra, ra, lá, lá, lá...”
Não demorou muito para que no rádio tocasse essa música carnavalesca:
“... Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira...”
Desligo o rádio. O autor é para mim, um... Sei lá! Ele não sabe realmente o que é “você pra lá e eu pra cá”, quando se ama uma mulher assim como Nídia. E foi justamente isso que ouvi dela, no decurso de nossa discussão. Quase que posso ouvi-la. Aqui, em meio a esses móveis, a sala é muda. Mas, naquela hora, mandei tudo às “favas” e gritei:
- Pois que vá. Não é tudo que você mais quer? Quer ficar longe de mim, junto de seus parentes, pois que vá. Arrume tudo e vá “pro diabo que a carregue”, agora mesmo.
E cheguei junto de seu rosto – como ele estava esplendoroso naquela manhã de sol! - e gritei:
- Vá. Estamos de férias, não é? Você retirou o dinheiro ontem do Banco, não foi? Então, vá. Assim será melhor para nós dois. “Você pra lá e eu pra cá, até quarta-feira!” Terminei a discussão usando as palavras da incoerente música que haveria de ser cantada nos salões e nas ruas.
Vi que sua boca esboçara umas rugas, como se mordesse o lado de dentro. Saí, deixando-a furiosa e triste.
Brigamos, justamente um dia antes do carnaval. E tudo por causa de nosso café matinal. Eu quis fazê-lo e ela não entendeu bem e não quis ouvir-me... Sei lá. Acho que ela não foi legal. Entrou no banheiro e fiquei falando sozinho e furioso. Por que ela não me deu atenção? Isto – eu achei naquela hora -, é que acontece com homens iguais a mim, que e prestam ajudar suas esposas nos afazeres de casa. Eu a ajudava sim. Trabalhávamos o dia inteiro. Quando chegávamos em casa, tudo era maravilhoso. Dois anos de casados. Nunca uma briga. Nunca uma discussão. Por que aquela então? Será que estávamos chegando ao Ponto Final? O enjoo?
Será que fomos rude demais um com o outro? Ela, não retrocedeu pé. Eu, para bancar o “machão”, não dei, nem nada pedi. Não lhe pedi que sorrisse ou que chorasse. Como em seu poema, deixado cuidadosamente sobre a cama, que encontrei ao voltar, confiante de que ela estivesse a minha espera e tudo terminaria legal, depois de uma rápida ausência minha.
O título e o corpo do poema estavam datilografados em uma folha branca, porém, amassada, como se, depois de escrito e lido, refletido ou mesmo arrependida, quisesse jogá-lo no lixo.
POEMA DO “ADEUS”...
É bem melhor dizer-te, adeus!
Para nós dois,
Incorrigíveis,
Indomáveis,
O amor não passa
De uma simples batalha de orgulho!
- Você nada pediu
E eu nada te dei!
É bem melhor dizer-te,
Adeus,
Porque, somente assim,
Poderemos conquistar
Nossos ideais!”
= = =
Uma pedrada! Sim, uma pedrada certeira na minha cabeça. E no final, bem no cantinho da folha amassada, quando li, cheguei a gelar:
“Você exigiu que eu saísse, não foi, pois bem, deixo-te esse “poeminha” e “até quarta-feira,” tá ?
Nenhum traço de descontrole emocional no talhe da letra bonita. Nenhum tremor, nada. Ela escreveu, friamente, com cálculos e já sabedora do meu desespero.
Dotada de grande força de expressão no que escreve, mostra-me os mais bonitos ou os que mais gosta, é claro! Sempre a sorrir, me diz que os escreve para mim. Que sou seu “muso” inspirador! Graceja. Isso me deixa lisonjeado, é claro. Não os divulgava nem publicava. Nunca participou de concursos a não ser um, antes de nos casarmos. Ganhou a medalha e ficou naquilo mesmo. Eu os trago guardados numa pasta, bem datilografados a seu modo, é claro, e, certo de que um dia, eu poderei publicá-los, para torná-la a mulher mais feliz do mundo!
No entanto, falta sua presença nesse lugar. Tudo aqui reclama sua presença. Olhei o apartamento sentindo ainda o perfume de seu corpo. Perfume que vagava como um sopro de vento. Caminhei até a sala e entrei no quarto. Li várias vezes o poema. Estava bem datilografado. Apenas no canto da folha era em manuscrito e nenhum tremor na letra – olhando-o bem, tentava descobrir alguma falha na minha conclusão. Nada. Nenhum tremor. Não acredito... Não, não era possível e, já se haviam passado quinze horas após o desastroso entrevero.
Comecei a me preocupar. Olhando o relógio, vi que faltavam, precisamente, vinte minutos para as vinte e três horas! Lá fora, um bloco. Um bloco sujo ou a Sociedade? Sei lá. Aqui, falta Nídia. Um carro quase me atropelou quando resolvi, sair, à tarde, e procurá-la na casa de sua amiga mais íntima. Cheguei e com um sorriso amarelo, não entrei. Disfarcei arriscando um “feliz carnaval”. Sua amiga, viúva, muito bonita, não entendeu. Saí quase desorientado. Não sei se ela entendeu bem. Eu queria Nídia e sua amiga viúva me perguntou por ela, dando a entender de que ela não se encontrava ali.
Que burrada! E aconteceu. O carro avançou. Parei. Ouvi os freios e como que paralisado, fiquei no meio da rua e um bruto palavrão saiu boca à fora, de dentro de dois pulmões, talvez, sóbrio ou embriagado e que varou a rua e preencheu todos os cantos vazios. Propagou-se pelos ares, ecoando entre as paredes dos prédios a meu redor. Como adivinhar sobre o carro? Assim, com as pernas bambas, voltei mais uma vez ao apartamento, na esperança de encontrar Nídia e seu sorriso. Mas, que nada! – Por que bancar o machão em certos momentos na vida?
E aqui estou eu... Pra onde ir? E não é carnaval? – pensei. Vou até o paletó e apanho um convite. Clube do Flamengo. – Clube do Flamengo, hhuumm...!
A MASCARADA
Em meio a grande multidão de foliões que se divertem, estou eu, copo de papel na mão, junto dos colegas da repartição, de bermudas e camisa listrada, autenticamente carnavalesca e a cara quase cheia. Mas o equilíbrio, esse sim, ótimo. Procuro por Nídia. Quem sabe? Quem a viu? Alguém viu Nídia? Todos cantam e eu grito e meu grito se perde, engolido pela musica da bandinha. Procuro por ela aqui? – penso - por que não vou a Saquarema?
- Que é isso homem? – pergunta o amigo que me telefonou à tarde, fazendo questão de minha presença neste clube. Dançando, rosto cheio de suor, quase grita:
- Que bicho te mordeu, cara?
- Nada. Nada de errado – respondo quase colando minha boca ao seu ouvido.
Não lhe contaria. Não. Nada de desabafar, agora, cara cheia e num lugar desses – pensei.
Despistando, sai para um canto. Uma mulher, usando uma máscara preta se aproximou erguendo os braços. Sua máscara era linda. O Sarongue que usava, tinha flores amarelas, roxas, vermelhas... A mulher mascarada sorriu e estendeu-me um colar de flores. Baixei a cabeça e ele entrou livremente até os ombros. Naquele instante, pensei em não aceitar. Mas, aquilo era um convite para a folia! E Nídia? – Onde estaria Nídia, justo na primeira noite sob o Império do Rei Momo?
Abri os braços e cantei a música da separação que o compositor deixara escapar de sua alma vadia. Os cabelos da mulher misteriosa balançaram de um lado para o outro e eu, misturei-me à turba, no salão, cantando abraçado à mascarada. Sorríamos ao som da marcha.
Entre beijos e abraços, saímos de carro e entramos num hotel que não me lembro. Ali, ela tirou a máscara e seu rosto deixou de ser misterioso. Fiquei decepcionado, pois, a mulher, não era Nídia. Mas, seu perfume era adocicado. O mesmo perfume da “Coty - Promessa” que Nídia usava desde que a conheci. Sua voz macia e sua liberdade de ação eram enormes. Assim, com um leve sorriso nos lábios, ela convidou-me para entrar no banheiro ao lado. Sua boca se misturava à minha com desejo ardente. Parecia estar esfomeada por carinho. Deveria ter uns... Sei lá, talvez uns trinta e oito ou quarenta, não sei... Sei que nunca teria conseguido me reerguer dos escombros daquele episódio, não fosse a explosão de carinhos da mulher.
A Ducha era morna. Saímos e depois entramos na pequena banheira azul, de, mais ou menos um metro e meio de largura por dois de comprimento. Ela tinha os seios rígidos apesar da idade que aparentava, e, seu rosto, parecia brilhar entre o feixe de luz e a parte azul dos ladrilhos do banheiro. A água borbulhava ao mover de sua mão. Eu, carinhosamente a puxei pelo pescoço e a beijei. Ali, dentro d’água, na pequena banheira, ela se contorcia de prazer. Mas, num instante de perda de fôlego, ela, rápida, se livrou dos meus braços, deu um pequeno salto e pôs-se de pé. Deu-me a mão para que eu saísse e, leve como uma pluma, quase deslizou sobre o tapete. Além de estender os braços num convite ao prazer, nada falou. Nada pediu. Nada exigiu. Nossos corpos molhados foram se secando até que nos vimos sob o espelho do teto. Apaguei a luz e seus olhos foram se fechando, na posse do amor e da loucura. Ela era maravilhosa. Dócil. Seu corpo se contorcia de prazer. Dei-lhe todo meu carinho e amor de momento. Uma felicidade de momento. Ou momentos de felicidades? – Sei não! Dormimos sono profundo até que fui acordando com seus beijos carinhosos. Ela já havia tomado banho e sorrindo, beijava-me insaciável. Horas depois, deixei-a na Tijuca. Não fiquei com seu endereço ou mesmo um cartão. Não dei meu telefone nem fiquei com o seu. Amor de carnaval? Depois, como se voltasse de um sonho, parei e me condenei.
Meu Deus, nesses anos todos de casado, jamais havia traído minha doce esposa! Que grande canalha que sou! Bastou uma briguinha... Bati na cabeça como se quisesse por para fora o que nela havia.
Voltei meio triste por não ficar sabendo nada da maravilhosa mulher que me possuiu noite passada. Era realmente linda. Seu sorriso esplendoroso se parecia muito com o de Nídia. Estacionei o carro na garagem do prédio e pensei tomar banho, fazer a barba e ir ao encontro de Nídia. Entrei no elevador, doido para ir ao banheiro.
A impressão que tive, naquele instante, era de que Nídia estaria à minha espera. Abri a porta e os móveis me olharam, como se me culpassem pela ausência dela. Da ausência de suas mãos; da ausência de seu corpo feminino; da ausência de seu rosto e de seus gestos. Ah, que saudade de Nídia!
Parado, dentro da antessala, meio tonto e cansado, fiquei sem saber o que fazer.
“Ora”, aos diabos com tudo isso! Não tenho culpa! Gritei aos móveis que me olhavam. Calei-me a seguir e um pressentimento absurdo preencheu minha cabeça: Será que estou ficando doido? Sacudi a cabeça e entrei no banheiro. Após o banho, um telefonema inesperado. Um convite.
- Vou sim. Confirmei. Não demoro nada. Logo chegarei!
Mas, como participar de uma rodada num bar, sem a presença de Nídia? Ela sempre estava comigo. Hão de me perguntar por ela.
A DECISÃO
O bar ficava justamente na quadra seguinte à rua em que morávamos. Calmamente fui me aproximando e quando meus amigos me avistaram, foi grande o alvoroço. Havia mulheres que eu não conhecia. Entrei na onda do vira-vira. Um pandeiro e uma cuíca animava o momento. Alguém, que eu não conhecia e nem a ele fui apresentado, incrementava tudo aquilo. Outro batucava bem no meio das mesas, pois, eram três, as quais alguém as havia juntado como quem demarca o território. Dancei de copo na mão, barriga cheia de cerveja e nos pés, uma sandália de fivelas que Nídia havia comprado dois dias antes da briga, para eu brincar o carnaval. Talvez, eu, o único de cara cheia – pois, não posso beber além dos cinco copos de cerveja. A cabeça fica leve e a alegria vem espontaneamente – vi que os amigos se revezaram. Alguns saíram sem eu perceber e outros chegaram – como eu, - sem pedir licenças. Já nesta altura dos acontecimentos, era grande o movimento no bar. Lembro-me que sai também. Era noite. Fiz sinal para um táxi, e, decidido, mandei que o motorista rumasse para a Rodoviária. Lá, o Guarda perguntou-me se eu tinha documentos. Eu ri. Ele não gostou. Tirei do bolso da bermuda um cartão de crédito misturado ao talão de cheques Verde do BANERJ. No outro bolso, porta notas de couro com várias repartições em plástico nos quais se encontravam os documentos. Sem pestanejar o apresentei a quem me fizera a exigência. Ele conferiu a foto e olhou-me sob os aros dos óculos. Segui-lhe os movimentos. Olhou para a foto outra vez e outra vez olhou-me, e, desta vez, entregou-me a identidade.
- Boa viagem!
- Obrigado. Dei-lhe as costas. A Rodoviária estava cheia de pessoas que saíam e outras que chegavam. Embrulhos e malas se cruzavam raspando em minhas pernas. Um falatório enorme se confundia com uma batucada vinda do fundo, a um canto esquerdo, onde ficava o bar e ao lado, um banheiro público. O Guarda se afastou sem mais nada exigir e a minha cabeça parecia explodir. Fui até a escada rolante e passei para o andar superior. De cara, vi uma farmácia. Ah! A bendita farmácia! Comprei um efervescente antiácido e bebi ali mesmo. Sentia uma azia infernal. Ela me corroía o estômago. Procurei entre os letreiros, o lugar onde comprar a passagem. Um homem mostrou-me a Empresa e o Guichê. Entrei na fila e quando chegou a minha vez, adquiri a bendita passagem.
- Muito lá atrás? Reclamei.
- Se o senhor preferir pode esperar por outro ônibus. Temos passagens até às onze horas! Falou-me o atendente.
- Não. Não Senhor! Vou mesmo é nesse que sai agora. – resmunguei.
O meu estômago estava azedo. Depois, senti que foi aliviando até passar o mal-estar. Andei pelo corredor até chegar ao lugar indicado de partida. Desci as escadas apoiando-me no corrimão. Algumas pessoas se esbarravam em mim. Eu parava e os olhava. A cada um que me esbarrava, eu parava e o olhava. Continuava a descer e assim fui, até chegar à plataforma. Fiquei esperando pelo ônibus. Mas, eu estava mesmo meio tonto que nem notei a presença dele um pouco mais adiante. O motorista pegou a passagem e confirmou a saída. As oito e meia, ouviu, senhor! – Ta... Ta bem. Respondi.
Entrei, decidido, a procurar a poltrona numerada. Quando me sentei, foi que me lembrei do carro. Mas a cadeira era tão macia... Meus olhos estavam pesados de sono. Sem mesmo fumar um cigarro, adormeci pensando em Nídia.
…...................................................................................................................“... Eu sabia que aquilo não daria certo. Com a respiração abafada, subi as escadas; dei dois passos à frente e uma Senhora, idosa, tendo a epiderme do rosto agredida pelos longos anos de vida, que, ao virar-se, despejou toda sua ira sobre mim, usando uma vassoura de piaçaba. Encolhi o ombro e estiquei o braço tentando proteger meu rosto. O Porquê da agressão, eu não sabia. Outra vez a vassoura subiu e desceu, atingiu-me de raspão na cabeça e desta feita, tonteando-me. Meio zonzo rodei cambaleando, mas, não caí. Havia me segurado no corrimão da varanda. A idosa enxotava-me como quem enxota um cão indesejável ou mesmo pulguento. Olhei para o lado e uma linda mulher, cabelos soltos e longos, olhou-me e sorriu. Sorri apesar de toda aquela confusão, mas, a suposta septuagenária, outra vez fez descer o objeto agressor atingindo-me o lado esquerdo. Mas não doeu. Permaneci olhando e a vi chegar bem perto, estendendo o dedo com rispidez contra meu rosto. A vassoura era como se fosse uma pancada de isopor e nada senti. A mulher... Sim, era Nídia. Corri para abraçá-la, mas, meu corpo naquela hora rodopiou e minha cabeça pendeu para o lado e quase caindo, levei outra vassourada na cabeça... Soltei um grito e apaguei no chão.”
…...................................................................................................................
Acordei sem saber o que estava acontecendo.
- Desculpa-me, Senhor, não ficou bem alojada!
Olhei para o lado e a pequena jovem, meio sem graça, sorriu desculpando-se pelo desastre. Seu lugar era junto à janela. Para tanto, passara por cima de mim, sem me incomodar enquanto eu dormia. A vassourada do sonho que eu havia recebido na cabeça, era algo de plástico que havia caído do porta embrulho. Todavia, para o meu bem estar, o estorvo havia me tirado daquele sonho pavoroso. Mas, nesse pavoroso sonho, lá estava minha querida Nídia !
A menina desculpou-se mais uma vez e acrescentou:
- O Senhor brigava com alguém enquanto dormia; estava quase caindo... E eu, prestando atenção no Senhor, não querendo acordá-lo, não vi que a maleta estava mal posicionada .
- Oh, Senhor, desculpa-me!
- Huum... Senhor pra cá, Senhor pra lá... É educada, mas uma “educada desastrosa! Pensei. - Resmunguei passando a mão nos cabelos – O ônibus está chegando? - Perguntei para a menina tagarela, olhando pela janela sem poder ver o lá fora.
- Daqui a pouco – falou-me, confiante nas suas palavras ou tentando ser gentil.
Bem acomodado e sem empecilho, quis dormir e temi pelo sonho continuado... Permaneci acordado por uns instantes e adormeci. Ronquei e ela, talvez, incomodada com meu ronco, sacudiu-me. Acordei com o ônibus passando por um buraco ao entrar na pequena Cidade. Não queria chegar ao ponto final. Queria descer ali mesmo. Meio sonâmbulo e meio bêbado fui obrigado a descer na plataforma, julgando-me um rei, na pequena Estação Rodoviária. Achei que era. Mas não era. Era somente uma rua. A Cidade não tinha Rodoviária. Apenas uma espécie de lanchonete. O ônibus para e as pessoas descem e dão como ponto final. Desci com elas. Num breve momento, todos se dispersaram e os que ficaram na Lanchonete, olhavam-me de soslaio. Talvez eu os tenha incomodado com meu ronco. Bem fez a menina em me acordar. Resolvi sair. Andei por uma rua meio escura. O silêncio era ensurdecedor.
Tudo parecia muito tranquilo e a lua, extremamente pálida. Espargia seus raios sobre as cabeças dos que, cambaleavam entre o sim e o não. E eu era um igual entre tantos carnavalescos... porém, teria que seguir até a casa de Nídia mas uma força maior me tranquilizava e os pensamentos retinham-me na prudência de esperar pelo alvorecer. De repente, parei. Ouvi gritos que vinham de outra rua. Optei por ela pois, apresentava-se mais iluminada. Atravessei a praça e cheguei perto de um bar. Senti um calor abafado e a ausência do vento. Olhei em derredor e não imaginei estar à beira de uma praia... – Ausência de vento?
- Que deseja senhor?
- Uma cerveja bem gelada.
Falei ao homem voltando-lhe as costas, mas, vi no espelho à minha frente que ele também me havia olhado de soslaio, meio desconfiado. Mesmo assim, trouxe-me o pedido. Antes de entregar-me o copo, estendeu a mão esquerda e pegou o dinheiro.
Bebi tudo aquilo tentando saciar minha sede e acendi um cigarro. Ao retornar o maço ao bolso, encontrei um papel amassado. Trouxe-o entre os dedos, abrindo-o debaixo da luz do poste. Outra vez reli o tal poema. Meditei muito a respeito do que ele dizia – se era uma despedida culminando com a separação ou se apenas mais dos seus poemas, sopro de inspiração que lhe saia d'alma, para algum papel branco. Martelava-me a primeira meditação. Não obstante aos pensamentos impróprios para o momento, pois, poderia ser um de seus Poemas que lhe saia d'alma... percebi uma certa algazarra vinda de longe... O ar continuava abafado. Era um clube. Caminhei lentamente. Quando cheguei perto, muitas pessoas queriam entrar com o bilhete pago e outras optavam pelo famoso “penetra”... Pedi licenças e paguei. Não conhecia ninguém ali, mas, passar a noite lá fora, não era o meu propósito. Conhecer alguém ou não conhecer, não fazia diferença, é claro que o local deveria estar repleto de pessoas de fora, como eu... A orquestra estava firme. Muitas mulheres e os presentes todos passavam alegres, cantando, e eu, movido por uma alegria a álcool, comecei a dançar e a sorrir no meio do salão, junto com os foliões daquela noite, tentando esquecer tudo que havia passado até então.
Muito cansado e além de tudo, soado, depois de quase uma hora entre os foliões, olhei para o outro lado do salão, e, e a um canto, vi uma mulher. Abri bem os olhos. Tinha os cabelos iguais aos de Nídia. As costas, iguais. Aproximei-me, após dar uma enorme volta pelos cantos. Não queria aproximar-me. Estava receoso. “- Como é que uma pessoa que amamos, afastada, de modo tão abruto como foi, permaneça fixa em nossa cabeça? E como pode acontecer eu olhar para qualquer uma e sentir que a quem vejo se parece com ela? De longe, assim... Cheguei perto. Olhei-a de frente. Em meio aos confetes, serpentinas e a música “até quarta-feira”, a mulher, olhando-me, sorriu espargindo as alegrias do Rei Momo. Instintivamente estendeu-me o braço. Não. Não era Nídia. Mas o que me fez pensar encontrá-la aqui? Acho que fiquei doido!
Tomei-lhe a serpentina azul e dançamos no espaço apertado do salão. Mas, logo me lembrei de estar num lugar desconhecido e ela poderia estar acompanhada ou... Como eu, sozinha, a procura de alguém... E, se um seu admirador chegar? Eu, procuro por Nídia... E ela, a quem procura? Disfarcei-me e sai para um lugar afastado, certo de que, caso me procurasse, não me encontraria. “Jamais cometer o mesmo erro...” Foi o que pensei.
Tomei outra cerveja e resolvi sair do salão. Lá fora, o ar fresco da madrugada esfriou meu rosto.
A CURRA
Atravessei a rua, desci a divisória da parte murada e pisei na areia. Caminhei meio desajeitado e desconsolado. A cabeça rodava um pouco. Mas eu sabia perfeitamente o que fazia... Ou não? Sabia sim. Eu pisava nas areias finas e secas. O mar, um tanto distante, explodia suas ondas caprichosas as quais levantava um denso nevoeiro.
... Agora, vou tentar descansar na areia, perto do mar e quando o dia clarear... Ai eu vou procurar por Nídia.
Era minha intenção. As areias, por serem finas, macias, deslizavam nos meus pés. Parei e desatei as fivelas das sandálias e segurei-as firme na mão e continuei a caminhar, agora, descalço e sem direção. Sei que ia para frente, ouvindo o mar batendo nas rochas um pouco mais distantes dali de onde eu estava. Eu não tinha nenhuma noção da hora, naquele momento, mas, não muito longe de onde eu me encontrava, três pessoas riam e brincavam. Apenas as labaredas de uma pequena fogueira iluminava as três figuras. Quem se encontra no escuro fica fora de foco, por isso, não perceberam minha aproximação. Daí eu vi que eram dois homens e uma mulher. Mulher ou menina... Sei lá. O certo é que ela estava de biquíni, e eles de calção. O calor da madrugada, talvez os teria trazido à praia – pensei. Isto é normal nos dias de hoje... No entanto, minha curiosidade fez-me ficar a espiá-los até o momento em que um deles tentou arrancar o biquíni da mulher. Deveriam estar por ali já há alguns tempos. A pequena fogueira, quase nada iluminava o recinto, pois suas labaredas já definhavam. Pouco restava de luz. Mas, ela se curvou e saiu-se rápida das garras do homem. O outro, porém, assim que ela se afastou, segurou-a pelo braço. Ela, ao sair, deu uns pequenos gritos nervosos; em seguida, abaixou-se tentando pegar uma certa toalha estendida na areia ou coisa parecida e seus cabelos se espalharam pelo rosto. Em seguida, com um gesto rápido da mão, ela os fez retornar para trás. Logo depois, o primeiro pulou como um gato sobre seu corpo, arrancando-lhe à parte de cima do biquíni. Ela ergueu-se novamente, agora, com as mãos e a toalha sobre os seios. Tentou correr, mas, desequilibrou-se e caiu outra vez. Conclui, naquela hora, que mulher alguma pode correr, safando-se de alguma coisa, protegendo os seios com as mãos, não os deixando balançar. Eu pensava em tudo isso sem acreditar no que via. O segundo homem fez força e enquanto o outro a segurava, arrancou-lhe a peça de baixo, num gesto violento e cheio de risadas.
Desvencilhando-se deles, ela se levantou e os encarou. Parou. Enquanto eles riam, ela, nua, deu dois passos para trás e temerosa, tentou correr, mas o outro a cercou, como um gato esfomeado cerca sua presa.
O SOCORRO
Outra vez agarrada pela cintura e em seguida derrubada na areia, debateu-se ferozmente, porém, sem meios para se erguer, desviou o rosto para um lado e para o outro, tentando proteger a boca, mas foi beijada à força.
Esfreguei as mãos no rosto, jurando que, tudo aquilo que eu via era mentira e quando voltei a olhar a cena, um deles – o mais forte tentava possuí-la, não sei por que, à força.
Permaneci a olhá-los sem nada entender. Por que alguém como ela, não querendo ser possuída pelos dois, teria vindo aqui, nesta praia deserta a esta hora da madrugada e de biquíni? Será que ela não desconfiou que pudesse acontecer aquilo que agora vejo? Mas, - continuei conjeturando - e se ela, naquele momento crítico, resolvera não ceder a nenhum dos dois? Eu pensava e ela se debatia. Às vezes, saindo debaixo do mais forte... E outra vez sendo cercada e derrubada... E, enquanto eu os olhava e procurava entender tudo àquilo que via, pois, podiam ser amigos e... Tudo bem... São amigos... Mas, se fosse uma curra? Se ela estivesse meio bêbada e eles, aproveitando o momento, a levaram para a praia e agora... hum... Estou muito desconfiado!
Ela se contorcia e o outro esperava sua vez, ainda segurando-a pelos braços. Fazia força, sem dar, a nenhum dos dois, possibilidades da penetração. Suas pernas não se abriam e ela dava chutes violentos. O outro, de repente, enfurecido daquilo tudo, deu-lhe um tapa violento no rosto e ela gritou chamando-os de “covardes.” Ouvindo o grito, ele deu outra tapa mais forte. E outro, mais outro, até que ela... - não sei se temerosa por um soco mais violento e viesse a desmaiar -, ficou paralisada. À distância não me deixou entender bem. Assim, seu algoz fez pose. Ajoelhou-se diante de seu corpo estirado na areia.
Naquele momento, vi que nada era “tudo certo” como havia pensado antes, e, sim, uma curra das mais repugnantes. Podiam até matar a pobre criatura; quem sabe, até jogá-la no mar... Sei lá! Sei que ergui o corpo e corri em direção a tal curra. Cheguei, e o que estava por cima, sem que percebesse minha rápida aproximação, de surpresa, fui logo agarrando-o pelos cabelos. Quando ele se voltou, dei-lhe um soco. Fiquei a olhá-lo. Eu nunca havia dado um soco em ninguém na minha vida ate então! Mas, como tudo pode acontecer um dia, aproveitei o momento. Nunca havia brigado com ninguém. Mas, dei o soco e o vi cair na areia. O outro, bem mais forte que eu, me fez tombar com um bom tapa bem forte, pois havia me esquecido dele, e... Aí foi que rolei! Lembro-me. Mas ergui-me rapidamente. Os dois bateram-me e eu bati. Outra vez agarrei a um deles e rolamos. Dei um soco no queixo do mais forte e quando levei o troco, vi estrelas piscando. Mas respirei fundo e permaneci de pé. A mulherzinha, ajudando-me, batia no outro e pedia por socorro. Gritou muito. Gritou com desespero e muito alto. O mar abafava os gritos, mas, os dois, a ouviam. E ela, como uma leoa, nua, também batia, com ferocidade. Tive medo quando ela me viu bater no rapaz, pois, já vi muitas brigas de mulher com homem, que, na hora em que a gente vai ajudá-la, ela se volta contra quem a protege e ai, apanha, justamente quem está querendo defendê-la. Mas não. Inteiramente nua como nasceu, batia, agarrava e gritava. Eles se afastaram, assustados por minha resistência física. “Fora o álcool?” Sei lá. Senti-me zonzo e o olho doía. A mulher catou a peça de pano que antes a cobria, vestiu-a rapidamente e depois de colocar a última peça nos seios e enrolar-se na toalha, olhei-a de frente. Ela permaneceu de pé, também a olhar-me, receosa por não me conhecer.
O ENCONTRO
Você está bem? - Perguntei-lhe, para que ela ficasse mais confiante. Afinal de contas, eu a salvara!
“Sim.” - Respondeu-me Balançando a cabeça, confirmando o que me havia dito. Depois, deu dois passos em minha direção.
Dói o rosto? Tentou olhar-me, querendo descobrir naquela escuridão, possivelmente quem eu era.
Não muito. Respondi-lhe.
Ao tentar me examinar, mas sem poder ver muito, sorriu e comentou não ser nada sério e depois, agradeceu solícita, chamando-me de seu defensor!
- Eu fiquei muito desesperado com o que estava acontecendo. Você estava sendo currada... Você quer um cigarro?
- Não. Não fumo. Fumar faz muito mal à saúde!
Mesmo ouvindo sua opinião sobre o tabagismo, procurei o maço pela areia. Até minha carteira havia se perdido. Ela ajudou-me a procurá-los. O isqueiro estava no bolso, e, procura aqui, procura ali, achamos. Assim que acendi o cigarro, ela disse que meu olho estava roxo. Pedindo mil desculpas por haver me envolvido naquela encrenca, desabafou: “- Se você não chega, meu estranho amigo...”
Quem seria ela? Por que estava ali, em plena madrugada de carnaval, apenas de biquíni e com dois homens? Mas agora não me cabia recriminá-la. Já a havia salvo.
- Você veio com eles? Arrisquei pergunta.
- Sim. - Respondeu-me, tranquila. Mas, baixou a cabeça como que arrependida.
- Por que você não cedeu a eles sem que houvesse a violência?
Ela olhou-me assustada. Mas não esboçou reação. Depois, sentindo-se obrigada a me responder, disse sem nenhum constrangimento: “- Mesmo que fosse uma mulher... meu amigo, não cederia a dois! Não sou quem eles pensam. São dois amigos, sim, mas, ao se envolverem com as demais do lugar, incluíram-me, e eu, não percebi o que tramavam”.
- Ah! Sim. Desculpa-me pela pergunta, mas... Nunca mais faça isso. Vir à praia com dois amigos há esta hora... É loucura!
Um deles é meu amigo... Desabafou e concluiu: - Quer dizer, era. O outro, corpulento, é conhecido dele e o conheci hoje e desabafou: - Sou mesmo uma idiota, confiar... Ele sempre pensou mal de mim por eu ter esse corpo enorme... e que... Você sabe! Mas nunca me assediou. Só hoje, quer dizer, ontem, quando estávamos juntos, apareceu o amigo e ele me convidou para irmos atrás da primeira duna. Mas, eu, enquanto aquecíamos a fogueira, falei que não era nada daquilo que eles estavam pretendendo... Não acreditaram. Insistiram e eu recuei, mas cai. Eu não podia imaginar... Que burrada a minha! Ai você chegou.
Calou-se me vendo jogar fora a metade do cigarro sobre areia. Uma cor vermelha começou a aparecer na parte oposta do mar. Podia-se ver perfeitamente o dia amanhecendo, tingindo as águas. As ondas quebravam fortes na areia da praia. Já se podia ver que seria um lindo dia. Olhei para os olhos dela.
- Você está com sono? Perguntou-me, cheia de cuidados.
- Sim. Há muito que não durmo. Estou à procura de um alguém!
- E quem, esse alguém? – Aqui na praia?
- Minha mulher!
- Mas, você a perdeu? - Sorriu quando fez a pergunta.
- Não. Nós brigamos e ela veio para cá.
- Deixou você? - Perguntou, olhando-me fixamente.
- Sim... E não. – Fiquei indeciso. - Não é bem isso. Apenas está dando uma lição em mim!
- Ah! Exclamou. - E como se chama?
- Nídia.
- Bonita? Perguntou, tentando fazer-me voltar ao assunto, enquanto minha atenção estava voltada para o mar, que explodia suas ondas, deixando um rastro de espumas brancas ao longo da praia.
- Muito! – Respondi, depois da insistência. E completei: - Muito bonita. Gosto dela como gosto da vida!
Ela sorriu ao ouvir minha revelação.
- Preciso ir-me, não queres vir comigo?
- Não, obrigado!
- Você vai ficar aqui, sozinho?
- Vou. Ficarei até que o sol esquente um pouco mais!
A garota, ao ficar de pé, devia ter um metro e setenta... Quase da minha altura. Seu corpo era muito escultural. Devia ter dezessete ou... Sei lá. Começou a caminhar lentamente e sem muita preocupação, subiu a primeira duna e foi sumindo gradativamente, à medida que avançava em direção a saída da praia. Enquanto ela descia, seus cabelos voavam. Parou. E foi assim que pude ver sua figura com mais clareza. Acenou com a mão para mim e com uma única passada, desapareceu por detrás do monte de areia. É claro que eu não a veria mais! E se isso acontecesse, jamais poderia fazer comentários sobre aquele encontro informal, posto que, ela estava nua e eu a havia visto por inteiro, apesar da pouca claridade no momento. Mas, por que estou pensando nisso agora? O vento passou rasteiro. Senti-o nos pés. O sol apareceu por inteiro de dentro das águas e eu, permaneci deitado, tentando dormir. Não consegui. O astro incandescente, já esquentava muito e percebi que meu corpo estava em perfeitas condições de caminhar... E depois, já algumas pessoas apareciam e dois pescadores jogavam seus anzóis n’água. Lembrei-me da briga... Pó! Se eles resistissem mais um pouco... se não corressem... Seríamos nós dois os espancados!
Olhei para o mar que parecia enfurecido e, com uma leve satisfação de haver cumprido meu dever, pensei – Já pensou, se eu não tenho forças e se não estivesse de cara cheia?
Levantei-me refeito e comecei a andar. Subi a primeira duna; desci e as areias já estavam mais firmes e cobertas por uma batatinha rasteira, com espinhos aqui e acolá. Calcei as sandálias e pisei firme no chão de uma rua. A pequena cidade estava calma. Não parecia ser dias de carnaval. Passei por uma padaria a qual conhecia o dono. Algumas pessoas já estavam de pé. Subi a rua e dobrei a outra esquina. Não muito no centro. Comprida e adiante, faz uma volta e após, poder-se-á ver perfeitamente, a grande varanda. E à medida que eu me aproximava, ela ia crescendo. Ao longe, vi uma figura minúscula envolta num vestido amarelo. As flores exalavam perfumes estonteantes. Um perfume de flor “Dama da Noite”, vindo da casa de Nídia. Uma calma profunda me dava a força de que necessitava. A certeza absoluta da figura dela na parte baixa do pequeno jardim. Sua figura era linda... Era ela quem eu via... Eu poderia conhecê-la, entre milhares de flores, à distância. Só agora compreendo sobre as mulheres que vi... Elas não estavam entre as flores...
É ela sim! Eu andava e confirmava para mim mesmo o que via. E ela, olhando-me, reconhecia minhas passadas. Eu a via e caminhava agora a passos largos. Eu quis correr naquele instante... Senti meu corpo tentar correr... Uma grande atração! Dentro de mim, o grito “corra... corra”. A vontade enorme de abraçar aquele corpo perfumado; de beijar aquela boca açucarada e, nunca mais me afastar, tampouco deixar acontecer o que nos trouxe a separação... Ah! Estúpida briga!
Estava distante, mas, eu a vi sorrindo. Vi. Sua boca se abriu como uma rosa vermelha. Eu vi. Era uma distância razoável e vi quando ela retornou ao primeiro degrau, tentando me ver por inteiro.
Eu quis correr, mas... Além do orgulho, o instinto de machão não o permitiu. “Não corro.” Pensei. “Não vou correr... Mesmo porque, ainda não é quarta-feira!”
E não corri.
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