UM DIA ATRÁS DO OUTRO
O ônibus trafegava lentamente. Mal saíra do ponto. Adailton acelerou a corrida e o pegou antes que a porta se fechasse. O coletivo não estava cheio, só não havia lugar pra se sentar. O homem passou e se comprimiu no vão da roleta. Ele aparentava uns trinta e poucos anos. Depois, fiquei sabendo que ele tinha muito mais de quarenta e que tinha mulher e filhos.
Era manhã, o sono era companheiro de quase todos os passageiros. O bocejo era a palavra que alcançava os ouvidos. Mas, poucos liam o jornal. No último banco, lá no fundo, um grupinho cochichava sobre a derrota da seleção canarinho. Dona Eulália ao pé da orelha chocalhava o compadre:
- Nélio... Ô Nélio... Num dá! Num guento vê esses perebas, que não tem amor ao pavilhão! Fora com esses pernas-de-pau! Não é cumpadi?
Nélio estava nos braços de Morfeu! O barnabé tinha dupla jornada de trabalho e o banco do ônibus era sua cama improvisada. Tava explicado porque o pobre-coitado somente se sentava no canto... Na janela.
O ônibus se arrastava pela avenida tamanha a quantidade de veículos, naquela 2ª feira cinzenta. Apenas, o barulho intermitente do ar condicionado e a figura daquele sujeito de quase 2 metros... enroscado na roleta tornavam o ambiente menos sepulcral. Mas, a brusca freada trouxe a monótona rotina de volta à vida pra dentro do ônibus:
- Hoje, o meu patrão vai rancar meu coro!
- Caramba! Não trouxe marmita...
- Não tem moleza, não! São 6 bocas pra comer.
- Saí do baile e fui achacado pelos P2.
- Caralho! Essa parada tá muito sinistra!
- Fui espancada novamente pelo meu homem...
- Me deixa quieto!
- Sociedade desgraçada! Só porque sou homossexual?
- Tô na luta... Mas, tá phoda!
- Tava de shortinho. O cara pensou que eu fosse piranha...
- Timinho filho-da-puta!
- Preciso arrumar alguma coisa pra fazer...
- Meu bebe tá doente!
De repente, um estrondo. O corpo de Adailton rodopiou. Como se o ônibus tivesse trombado com outro... Todos os seus miolos se espalharam pelo coletivo. Sujou primeiro a roleta e depois todo mundo. O tresoitão caiu no colo do compadre Nélio. Porque esse foi o único que não acordou...