Largado
“Eu não sei, querido. É tão difícil para eu dizer que te amo, como se algo me segurasse pelo colarinho da camisa e me apertasse, dando certo sufoco.”
Ele ajudara a mãe a fazer os negrinhos, a confeitar o bolo com glacê amarelo, a ordenar os pasteizinhos de carne sobre a mesa. Balões enchidos, guaranás com canudinhos e o primeiro convidado a chegar. Um pirralho, pouco mais de sete anos. Em cima do refrigerador, algumas rosas numa lata velha de óleo de soja e o primeiro presente. Uma camiseta verde, de estampa sem graça.
A mãe acende a velinha com o “aviu” começa o parabéns. Rostos miúdos, ternuras demais, dentes a menos. Sorrisos muitos, fome muita, gracejos e bochechas roxas. Há dez anos, ali naquele lugar confuso, mas seguro. Mais dez anos e ele foge, mais dez anos e ele é outro, mais dez anos e ele é o mesmo. Como que em um Auto de glória, ele é assim retido na solidão. Sem balões, nem festinhas de aniversário como aquela; muito menos alegrias. Em uma mesa de bar: croquetes e cervejas e molho de pimenta. Os velhos (a maioria embebidos em um emplastro de suor e de urina) ouvem samba e tomam uísque. Ele apenas come em serenidade aparente. Por dentro fervilha, arde como nunca. Quer o amor mais careta, a amizade mais melosa, o drama mais sanguíneo.
Bem?
Saiu só pra comer e para beber. Se bem que sempre sai para amar, sempre ama, mas nunca é amado. Era tão mais fácil no tempo em que ele comia meleca do nariz e em que roia as unhas dos pés. Depois daquela festa brega de aniversário, ele nunca mais fora feliz.
Flores murchas; pétalas frescas. Queria os passos santos da sua mãe, a bondade do seu pai. Queria a cama quentinha, as comidinhas preparadas com amor. Fugir! A fuga sempre basta. Ele foge e esconde seus devaneios, o intrínseco nunca se apregoa nas paredes dos bares, nas salas de aula, na fila do banco.
Com farinha, com açúcar, com doces ilusões. Um bolo em uma tarde de setembro. Não sabia mais o que fazer para tirar o tédio daquele corpo pequenino. Sabia apenas que teria de prosseguir, com medo, com ânsia, com desespero.
Saiu de casa novamente, partiu sem rumo, apenas procurando o amor. O amor nas ruas, o amor nas calçadas, o amor, aquele sentimento de maresia. Surpresa. Pensou encontrar o amor em um banco de madeira. Era apenas mais um desejo. Um disco riscado. Uma vitrola velha. Ele daria tudo pela surpresa. Acompanharia-te no chá, se não tivesse esse desejo de amar. Mesmo assim arriscou. Nome?
Grosseria levou; seu sorriso amarelou. Era um idiota, sabia disso. Ora, como ele queria encontrar um amor assim, em um banco, em uma tarde qualquer, em uma cidade cinza como aquela. Buscaria em qualquer lugar, em qualquer situação. Estava ficando neurótico, diria seu terapeuta.
Iria dizer. Iria voar. Iria.
A casa de Deus; era isso que ele precisava. Água benta, senhoras de terço em mãos, imagens de gesso a expressar humanidades em suas faces, vitrais caleidoscópicos em cores. Entrou, sentou e ficou ali por horas. O sol se pondo e ele ali. Vários terços e ele ali. Martirizando-se como outrora, como naquela igreja de cor ocre, em que jovem, muito jovem, em que criança, muito criança, servia à missa como que em um se salvar pelo pecado de seu modo de amar.
Começou a enlouquecer quando via os santos nus, os anjos rindo dele. Saiu. A noite fazia-se completa; unidade-homem; unidade-universo, unidade-cosmo. Os dedos de suas mãos tremiam. Era apenas um homem desprotegido, um menino acanhado; alguns diriam que era uma mulher frágil. Sempre dava um jeito. Até o apartamento, nada lhe importou aos olhos. Foi-se. Entrou e dormiu com a TV ligada. Não que o que estava passando na tevê lhe interessasse, mas precisava e ainda precisa de algum som para adormecer.
Com uma dor lancinante no estômago; acordou. Esperando uma vida, de ginga, de par, de um espaguete a dois. Mas só tinha a ele. Ele e suas asas. Ele e a comida, ele e sua camiseta amarrotada, ele e a apresentadora do programa de culinária, ele e os classificados do jornal.