Iaiá

Para Lucas Santiago

“Não nos perderemos, afinal, sabemos um do outro como se sabe de cada fio do cabelo das mães. Eu carrego no rosto a superioridade de quem é simples e a devoção de quem foi menino temeroso a Deus em noites de tempestade. Se ele descobrisse a receita, o segredo, uma norma qualquer para a felicidade, sei que espalharia a quem pudesse. O plano certo não tem plano certo. São machucamentos a todo instante.”

Não contei. Não quis dizer. Não que eu precisasse contar. Embora quisesse dizer a ele, preferi ser fiel aos meus segredamentos.

Quando adolescente, e se eu estava mesmo adolescente naquele tempo, segredava comigo, às vezes segredava com meus animais de pelúcia. Segredei por um longo período o meu desejo-anseio-vontade-sonho-idealização-projeção, ou como se queira nomear, em poder sair de carro com a pessoa amada (talvez, passeio). Misturamento de futuro do presente.

Esse súbito desejar tinha como raiz o meu espreitar pela janela aos finais de semana: na casa ao lado, o moço levava a namorada para o passeio de carro. Bastava-me crer na substância do “algum dia” naquele momento. Filmes demais na infância? Filmes das tardes sonolentas? Filmes com namoradeirices em carros?

Dia desses acabou por ser a realidade de um dia daqueles.

Não contei. Não quis dizer.

Atabalhoado diante do convite. Maçaneta escapando às mãos, chaves deslizando em suor...caminhei no tempo de duas alamedas e entrei no carro. Vermelho! Que de fogo queria conservar-me.

Não houve beijo. Não houve um corcel nos meus cabelos. Tudo não houve. Por que seria namoro se não houve?

O gozo pelo substanciar do antes ideal. Isso houve.

Houve: a sensação de que uma camada de cristais, de que brilhantes flocos de neve bebiam do meu corpo ao espalharem-se desde a cabeça até os pés. Deixaram a face macia, pronta para a mordida da compreensão suspensa.

Não contei. Conto: a nevasca era negra.