Eu não pedi
“Eu já vi isso acontecer antes
Com meu melhor amigo
E com o vizinho do lado”
Maria, Blondie
Gusmão quer. Gusmão precisa. Goiabas. Gusmão acordou cedo, vestiu-se tão simplesmente, retirou todos os fios das tomadas, não fumou seus cigarros costumeiros da manhã e andou determinado.
Gusmão estava alheio a todas as pessoas, transeuntes, sobretudo, e aos carros e aos semáforos e à faixa de pedestre. Ouvia apenas o chilrear dos pássaros que desconhecia, porque de onde ele veio não havia pássaros como aqui. Deixe-me viver a minha paz, a minha...
Ele tivera um sonho estranho, segredou a quase todos:
“um bater na porta de ferro, som nem oco, mas vazio. o calor, o calor daquele buraco em que se escondia. o moço de pele morena, o convite pra sair. aceitei, fui, cheguei, mas não entrei. prefiro chorar nas escadarias da boate. deixe-me viver a minha dor. soluços, muitos, lágrimas doces, porque eu não sei chorar lágrimas salgadas? meia noite e um minuto, eu sozinho, as escadas verdes, as luzes, o verde, o verde. eu sozinho. sozi/ele veio, pegou em minha mão, afagou minhas linhas, levantou-me, colocou-me em seu colo, começou a chover e deu-me um beijo. o verde, o verde, o verde, as luzes, e agora o beijo e a chuva. um anjo barroco, pele clara, olhos verdes, cabelo louro. o verde, o verde, o verde, e agora o beijo gelatinoso.”
Gusmão sonhara, seria lindo se fosse real; pensava ele. Gusmão seguiu pelas ruas naquela manhã.
Tinha na cabeça apenas uma ideia: comprar goiabas bem maduras. Entrou. Sete reais o quilo. Pegou, apalpou, cheirou e levou duas goiabas bem maduras e grandes. Pagou e saiu da banca de frutas.
Certezas, e ele nunca as tinha, era guiado apenas pelo sentir, mas o sentir que ele mesmo inventava.
_Guga, não mexa na caixinha de costura, vai te machucar menino!
E ele sempre mexia, sempre furava os dedinhos e sempre chorava, mas ao menos inventava que era um alfaiate valente, que fazia roupas ao rei da corte.
Chegou em casa, era tão podre aquele ambiente. Depositou as goiabas na caixinha de madeira em que se punham as frutas naquela casa. E fazia tanto tempo que ele não comia frutas. Não queria comer frutas; comprou as goiabas pelo cheiro que exalaria na cozinha e que se dissiparia pelo resto da casa. Esperava que fizesse sol pelos próximos dias, pois assim as goiabas ficariam ainda mais doces, ainda mais podres, com perfume ainda mais acentuado.
E esperava também que alguém o visitasse e que notasse o cheiro das goiabas na casa e, então, sobraria uma réstia de esperança se na porta batesse alguma alma, sim, porque Gusmão queria a alma, o todo das pessoas e não apenas o corpo.
Ele nunca beijara, nunca transara, sempre tivera dores e medos e traumas, mas tinha as goiabas e os risos que tinha ao abrir goiabas maduras.
Mas a porta não bateu por semanas, e choveu por semanas, e o cheiro das goiabas maduras não se fizeram sentir. Foi então que Gusmão decidiu que era o momento de sair na chuva e dançar sozinho. Quem sabe rodaria muitas vezes, as pessoas olhariam atônitas, e ele ficaria triste pelas pessoas, mas feliz pela chuva no seu corpo.
Gusmão era moço tardio, criança desde sempre. Tinha um buço fininho, umas pernas arqueadas, nenhuma espinha, o que dava à sua pele uma aparência de pêssego maduro (dizia sua irmã).
Sempre se tem o porém na vida das pessoas, na vida das gentes, contudo Gusmão não se sentia uma daquelas gentes. Ele fugia muito, mesmo preso em sua casa, pois tinha seus inúmeros livros e seus diversos almanaques de figurinhas.
A avó de Gusmão sempre o achara muito magro; vivia dando-lhe xaropadas de coração de bananeira (dizia que era um santo remédio para meninos minguados como ele). E as xaropadas nunca adiantavam. Sabe, as coisas não adiantam em nada quando você não crê fortemente nelas.
Gusmão nada pedia, desejava apenas uma mãozinha divina para colocá-lo nos eixos do mundo que ele não conhecia e que tinha medo de conhecer. Por isso saia pouco, por medo de que se revelassem as verdades que lhe aterrorizavam. Era preferível cair sozinho a cair pelos outros.
Dizia costumeiramente:
_Preciso fumar mais, preciso começar a ir a bares, beber um bocado, sair torto, vomitar pelo caminho. Mas terei ombros amigos que curariam minha dor, minha bebedeira e meus excessos?
Por analisar demais acabava nem tentando. Não escondia que lhe faltava coragem. Era um fraco por natureza e era um forte por delicadeza.
A chuva cessou e Gusmão em frente ao portão de casa. Pisa nas poças a cantar “eu nada pedi, eu não pedi, eu nada pedi...”
Não podia se explicar, era demasiado ruim explicar algo sem entendimento. Décimo sexto dia e as goiabas maduras ainda. Sem chuva, o sol radiante e Gusmão a esperar o caudaloso que apodreceria as goiabas e que maturaria seus sonhos.
Vinte anos depois e Gusmão está casado com a filha da vizinha ao lado. Jureminha, que duas décadas antes fazia jus ao diminutivo de seu apelido, era agora uma mulher forte, gorda e com um rebento. Gusmão continuava magro e com dores mal resolvidas. Era um “cara” infeliz. Nunca mais comprara goiabas; não sabe se por vontade, ou se pelo fato da sua esposa não gostar de goiabas.
Jurema era muito organizada, limpava a casa todos os dias com água sanitária, e Gusmão odiava o cheiro de água sanitária, mas não reclamava com sua mulher, afinal ele sempre fora subserviente.
Mas naquele dia resolveu comprar goiabas em uma vendinha próxima à sua casa. A vendinha de seu Amâncio. Chovia. Gusmão pega o guarda-chuva, caminha um pouco, não canta, não chora, não dança, nem sorri.
Apenas segue até a vendinha de seu Amâncio. Lá, pede pelas goiabas: ”mas tem de ser bem madurinhas, padrinho!”
_Não temos goiabas hoje, Guga.
Mas Gusmão sente o cheiro doce das goiabas e incita o senhor a procurar mais uma vez pelas frutas. De fato, na havia mais goiabas. Mas e o cheiro, de onde vinha?
De dentro da casa de seu Amâncio, que ficava nos fundos da vendinha. Gusmão separou-se da mulher um tempo depois. Hoje, manda dinheiro todo mês ao seu filho, e agora mora em outra cidade, em outra casa e com outra pessoa. E na casa, tem um lindo quintal com uma goiabeira. Gusmão vive feliz com Carlos, o filho de seu Amâncio, amiguinho de infância de Guga.
_Eu não pedi, mas as goiabas trouxeram-me.