Matapu quer comer os cabelos pretinhos de Matsi - Baseado no ritual alto xinguano Festa do Zunidor entre os índios Waurá
Por baixo dos longos cabelos pretinhos, a menina moça tinha os seios pequenos e nus e deitava esparramada na rede de buriti. Rec, rec, rec, rec. Matsi tinha a visão acostumada `a penumbra do interior da oca e apenas acompanhava com os olhos puxados, e levemente com a cabeça, o movimento de vai e vem que a avó fazia. Com um rolo de fios de algodão nas mãos, a índia idosa andava lentamente de um lado ao outro das duas traves fincadas no chão de terra, que serviam de tear para fabricação da primeira rede de Matsi.
A menina-moça seguia em reclusão, guardadinha num canto da grande oca. Dava poucos passos e não via a claridade do pátio da aldeia há mais de dois anos, exceto nas ocasiões em que haviam festas e todas as índias saiam para dançar. Seu coração batia sereno quando, de repente, ouviu pancadas violentas na porta da frente da grande oca – pá, pá, pá, pá, pá!
- Matapu, Matapu! - as mulheres gritaram assustadas. Eram os homens avisando que iria começar a Festa do Zunidor, instrumento musical sagrado entre os índios Waurá, o qual as mulheres eram proibidas de ver, e portanto deveriam recolher-se para dentro das casas, urgente!
O coração de Matsi saltou e ela olhou em volta a procura das irmãs, mas não as viu. Sim, tinham ido se banhar no rio! Mas que hora! Num pulo ela saiu da rede e seus cabelos pretos e longos voaram como uma flecha para fora da casa, pelas porta do fundo. Num grito em vão, a avó tentou agarrar a menina, mas a pontinha dos negros fios escorregaram pelas suas mãos tardias e ela só pode dizer “não, você não pode sair!”.
Matsi sabia, mas a jovem índia foi tomada por um medo indescritível. Ela tinha uma aversão em especial ao som das flautas sagradas. Sabia o que aconteceria se uma mulher visse tal instrumento de poder sobrenatural. “Seus cabelos vão cair, você vai passar a mão e eles vão sair na sua mão, vem pra cá, vem pra cá pra dentro menina”. Sua avó repetia a cada ano. Matsi não temeu por si, mas por suas irmãs. E por isso corria e seus cabelos voaram em ondas no caminho que descia pro rio.
Achou as meninas de longe que, por sorte, corriam para ela assustadas também. “Matapu, Matapu”. Elas haviam escutado as batidas de longe. De oca em oca os homens passavam dando as pancadas na porta usando um zunidor de tamanho grande, usado apenas para assustar e recolher as mulheres. E, como um raio, as três irmãs ofegantes entraram de volta `a oca, ao que seus longos cabelos pretinhos enfim quietaram.
Matsi sentou-se em sua esteira de menina-moça, agarrou os joelhos, colocando a cabeça entre as pernas, evitando escutar o som do zunidor, de modo que seus longos cabelos lisinhos escorreram por suas pernas cor de jambo.
O barulho vinha do céu, misterioso e ameaçador, e ela sentia que chegava perto, cada vez mais perto e forte. Seus olhos fechados viam cobras coloridas e gigantes que se mexiam nervosas, pássaros de duas cabeças rondavam acima de sua casa. Entao, como sempre acontecia quando ouvia os instrumentos sagrados, flashs horríveis passaram em sua mente. Ela estava em pé bem no centro da aldeia tocando flauta sagrada, mulheres estavam em volta e faziam festa, dançavam. De repente elas ouviram um barulho assustador, zuummm, zuummmm, zummmm, como esse, como esse que ouvia agora, e os homens então puxaram seus cabelos, derrubando-as, e roubaram delas todas as flautas.
Matsi cerrou mais forte os lábios, com raiva, e os olhos, como medo, até que voltou em si. Sentiu os pelos arrepiarem. Agora só se lembrava do medo de perder os cabelos. Pediu a seu deus que aquelas visões não entrassem e não comessem seus lindos cabelos pretinhos. Era o barulho de Apapaatai chegando – o espírito que “roubava” as almas causando doenças e morte.
No centro da aldeia, homens e meninos pintados com muito vermelho de urucum e desenho de cobra grande giravam sobre suas cabeças o zunidor - uma simples peça de madeira, achatada, alongada, amarrada a extremidade de uma corda que eles levantavam bem alto por uma vara comprida. Giravam, giravam e davam vida ao zunidor, ou Matapu na língua Aruak.
Um instrumento que, segundo a mitologia alto xinguana, foi usada pelos homens para amedrontar as mulheres no momento em que eles retomaram delas as flautas sagradas. As flautas teriam sido criada pelos deuses destinadas aos homens, mas foram roubadas pelas mulheres, que passaram a tocá-las e a fazer tudo aquilo que os homens faziam, como pescar, enquanto eles passaram a realizar os afazeres femininos, como preparar comida e colher mandioca. Esta espécie de “inversão” foi revertida quando os homens retomaram os instrumentos, para isso usando o zunidor.
Longos fios de palha amarela pendiam da cabeça dos homens e quase alcançavam os pés. Seus tornozelos e cintura também estavam enfeitados com palhas de buriti. Eles chamavam por Apapaatai Matapu. Outros homens, cujas famílias foram atingidas por doença nos meses que antecederam a festa, traziam panelas cheias de mingau de pequi, pra Apapaatae comer, ficar bem satisfeito e ir embora do convívio com os humanos, livrando-os das doenças.
Era mês de setembro, as chuvas começavam a querer cair e as primeiros frutos do pequi davam sinal de amadurecimento. A Festa do Zunidor abria a sequência de festas oferecidas aos espíritos donos do Pequi. Matapu, o zunidor, era um deles. Durante três dias os homens cantaram a musica de Curi, confeccionaram zunidores e giraram-no conforme as regras do ritual.
Matsi também dançou, junto com todas as mulheres, no pátio central, de modo que a pontinha de seus longos cabelos balançavam ritmados de um lado pro outro, seguindo seus passos curtinhos e secos no chão. Panelas e mais panelas de comida eram ofertadas no centro da aldeia. Todos queriam agradar Matapu. Todos queriam uma boa colheita de pequi naquele ano.