Parto enawene – o nascimento de uma mãe

Tiepi estava todo sujinho de terra, melecado de sangue e restos de sua placenta. Acabara de nascer no mundo dos humanos. Sua avó foi a primeira a pegá-lo, assim que saiu do ventre da mãe. Ela o colocou, ainda morno, deitadinho na terra. E as três mulheres, sentadas no chão, olharam fixo para o bebe, esperando pelo primeiro chorinho, um sinal de vida.

Estava tudo sob controle. Uma pequena clareira feita na mata, próximo a aldeia. Apenas Tiepi bebê pequeno, sua mãe, avó e a tia, pequena também. De longe ninguém percebia o que ali se passava. De maneira silenciosa, humilde e animal a linda índia paria. Simplesmente paria. Confiante na sabedoria ancestral enawene-nawe, recebia massagens e bebia chás de ervas e cipós que sua mãe lhe dava em goles de cuia nos intervalos entre as contrações. Apenas gemidos, pequenos gemidos e verbos aruak bem baixinhos.

Enfim um chorinho rompe o silêncio do pós-parto. Uma espécie de pulsação vital vinda através do cordão umbilical, ao que eles chamam de Iwini, o sopro da vida, dá a vida ao primogênito do novo casal, consolidando o casamento, seguimento de um clã.

As mulheres passam então as mãos sobre o recém-chegado, deitadinho na mãe terra, examinando-o detalhadamente, sua cor, sua pulsação, sua temperatura. Tiepi tem o cordão umbilical cortado por uma talinha afiada e é colocado enfim no peito da mãe. O bebê mama em sinal de saúde.

A avó puxa cuidadosamente a placenta. A mãe não aguenta mais. Mais dores, mais dores! As contrações reaparecem, ela geme, chora e a placenta vai saindo, ardendo, torcendo lá dentro. A avó deposita o órgão num pequeno buraco feito na terra. Enterra-o.

Tudo terminado.

As mulheres abandonam o lugar e voltam pra aldeia.

Pela primeira vez Mamãe Matsi sente o peso do bebe nos braços. Sente o peso do mundo mudado. Ela caminha diferente. Acaba de constituir família.

Exausta, se taca suja no fundo da rede, dentro da grande oca. O fogo aceso perto dela esquenta seu corpo moído. Crianças se aproximam, examinam, espiam. Tiepi bebe recebe massagens com óleo da avo. Muita pressão nas pernas, logo abaixo dos joelhos, mais enfático no braço, logo abaixo dos ombros. Avo desliza muitas vezes seus dedos enrugados ao redor dos olhinhos, fechados de sono, do pequeno Tiepi, que dorme e aos poucos vai chegando no mundo dos humanos.

Ele tem sua franjinha cortada e cordas de algodão tingidas de urucum atadas nas pernas e nos bracinhos finos e pálidos. O indiozinho recebe brinquinhos de tucum.

Na rede, a mãe dorme satisfeita. Seu pai, orgulhoso, retira da filha as pulseiras chocalho de tucum, próprias das jovens sem filhos. Ele troca seus brincos de conchas, Matsi ganha cinto novo de tucum. Mamãe agora não é mais Matsi. Ela troca de nome. Mamãe agora é Tiepi-ene, mãe de Tiepi.

• Etnia: Enawene-Nawe

• Localização: Mato Grosso

• População: 641 (Siasi/Sesai 2012)

• Tronco Linguístico: Aruak

Baseado em relatos antropológicos.

Leticia Baeta
Enviado por Leticia Baeta em 22/03/2016
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