“agora navegue sozinho”
“Já gozei de boa vida
Tinha até meu bangalô
Cobertor, comida
Roupa lavada
Vida veio e me levou.”
(O Velho Francisco. Chico Buarque)
Um dia, não sei exatamente qual, de ano que não era um ano qualquer, conheci uma moça, de sorriso aberto, pele morena, nas maçãs do rosto rajadas de doçura. A moça ensinou-me a cravejar de estrelinhas a minha vida. Deu-me um remo e disse: agora navegue sozinho.
Naveguei durante seis meses, sozinho, com sede e fome, mas nunca esquecendo do olhar-meninice daquela moça. Era tanta a sede que cheguei a embriagar-me de paz pensando no sorriso dela. Mais um ano de navegação-fui comandante, auxiliar de bordo e remador.
Não sei como, nem por onde, fazia frio, e eu gemia. Minha magreza era tamanha que via meus ossos das mãos de maneira a formar um tom rosado.
Cheguei, vi as montanhas e pensei que podia ser feliz naquele lugar cercado por elas. Era bem calor lá, minhas roupas eram trapos. Quis ficar porque vi alguns animais por lá: porcos, cervos, lobos, cobras e apenas um tipo de inseto (vaga-lumes).
“agora navegue sozinho”. Tentei, mas eu precisava ser amigo daqueles animaizinhos desprotegidos. Comecei aproximando-me dos cervos, que eram arredios, mas felizes. Quando consegui a confiança deles, foram bons amigos, ajudavam-me a colher as frutas, cobriam-me com folhas durante as noites de frio. Os cervos são amigos fiéis, mas cuidado, alguns deles são tão bobos que enjoava vê-los saltitarem felizes o tempo todo. Foi então que eu desisti dos cervos.
“agora navegue sozinho”. Tentei, mas eu queria ser amigo dos outros animais. Tinha tanta vontade de conhecer melhor a essência deles. Os porcos vieram até mim, quando os cervos não mais se aproximavam. Descobri que os porcos não gostam de cervos. Os porcos me animavam bastante, porque eles riam comigo. Mas depois notei que eles riam de mim. Então me afastei deles também.
Tive vontade de fugir e voltar para o meu barco e navegar sozinho outra vez, mas era impossível: o mar ou o rio havia secado e eu não tinha mais como navegar.
“agora navegue sozinho”. Tentei, mas eu sentia-me muito melancólico sozinho. Certa manhã estava comendo uns frutos, quando, de repente, apareceram os lobos perto de mim, tinham um rosto cruel, um jeito acanhado, mas traziam-me em suas bocas um suculento pedaço de carne. Eu aceitei a carne. Comi-a vorazmente. Quis dividir com eles, mas eles não quiseram. Adormeci rapidamente, e ao acordar notei que os lobos haviam tomado toda a minha água. Descobri que os lobos são interesseiros.
Tive vontade de subir a montanha para ampliar a minha visão, tão escassa naquele momento. Mas tive medo, porque eu sempre fui medroso. Algumas cobras rapidamente ofereceram-se para levar-me até o cume. Eu aceitei a ajuda, achei-as tão graciosas, de sorriso tão gentil. Subi, subi e subi. Muito. Estava exausto, quando chegamos pudemos ver que não existia nada além daquela montanha, meu coração palpitava muito.
Alguns vaga-lumes brilhavam, porque já era noite. Talvez eu não visse nada porque era noite, mas pude sentir um cheiro azedo e a cada golpe desse odor via-se um vaga-lume a menos. Chamei pelas minhas amigas cobras, mas elas não responderam. Restou um vaga-lume apenas e eu fiquei ao logo da noite a observar o brilho dele. Achei-o tão complexo e inusitado em seus movimentos. Quis ser amigo dele. Sono, sono.
Acordei com um vaga-lume raspando seu bumbum no meu rosto. Ele dizia-me: cuidado com as cobras, elas querem apenas acabar com o brilho dos outros, elas não suportam ver os outros animais brilharem, por isso comeram todos os meus amigos na noite passada.
Fiquei tão triste, porque sempre pensei que seria feliz com novos amigos, e vi que todos eles não gostavam de mim. Então o vaga-lume sussurrou em meu ouvido: quer ser meu amigo?
Ah, ele quis ser meu amigo e eu não fiz nada por ele. Como é fofo e querido esse vaga-lume. Ele começou a fazer um lindo zumbido, que me lembrou das canções de ninar que minha mãezinha cantava para me embalar nas noites de cólica.
Foi por acaso que encontrei o meu amigo vaga-lume. Conversamos muito e eu disse-lhe que queria sair daquele lugar, que me sentia triste e deslocado, mas que não existia mais o mar ou o rio. Foi então que o vaga-lume, meu amigo, disse que não tinha muita força, mas podia carregar-me pelo céu afora até encontrar um lugar, em que eu fosse feliz e me sentisse bem.
Tentamos, agarrei-me em suas patinhas e subimos alguns metros juntos. Enfim, ele caiu, eu caí. Procurei meu amiguinho por todos os cantos e não encontrei. Ele havia sumido e eu fiquei tão triste, mas tão triste que chorei por um longo tempo. Eis então que um palpitar no meu coração fez-me entender que ele estava em minhas entranhas e eu podia ouvir ser zumbido de ninar no compasso do meu coraçãozinho. Entendi, pois, que eu devia navegar sozinho, como a moça de sorriso aberto ensinara-me.
O importante era levar comigo o vaga-lume, não ao meu lado, mas dentro do meu coração. Coloquei minhas mãos para o alto e inusitadamente um vento arrasador levou-me até às nuvens. Agora eu também tinha o sorriso aberto como o da moça.
Nunca mais me senti sozinho, porém nem eu mesmo sabia onde eu estava e se eu estava.
Leitor: “agora navegue sozinho”.