O AMOR
O amor me apanhou de jeito, de súbito, de surpresa, num momento de distração, em que eu menos esperava ser apanhada. Tão distraída estava, que lia! Sentada no banco de uma praça, alheia às borboletas que dançavam à minha frente, aos pássaros que chilreavam ao meu redor e às flores que acenavam para mim por força da brisa de um final de tarde de primavera, me perdia em pensamentos, envolvida com o romance descrito em páginas abertas ao meu colo.
Lembro que, naquela tarde, tinha decidido reservar um tempo só para mim. Vesti uma calça jeans, uma camiseta branca e tênis, nada mais casual. Não fiz nada com o cabelo, além de pentear, e nem sequer usei maquiagem... Não! Naquela tarde, não queria agradar a ninguém, não queria obedecer a nenhum padrão, nenhum protocolo. Queria, de certa forma, fugir da rotina e apenas ser eu mesma, sem qualquer preocupação. Me desvencilhar, por uma tarde, da pressão pungente das modelos das capas de revistas de moda e das atrizes de TV, sempre impecavelmente belas, daquela beleza que nos faz, outras mulheres, nos sentirmos inferiores, menos privilegiadas talvez, e que nos compele a mergulhar num mundo de cosméticos em busca da beleza perdida. Mas naquela tarde, eu não queria competir com as modelos e atrizes, nem sequer queria a atenção de ninguém, tampouco queria elogios.
Nem o amor, eu queria. Já o havia procurado antes, com certeza. Clubes, bares, concertos, bibliotecas e até mesmo nas igrejas... Sim, havia procurado o amor antes. Me enfeitava, me embelezava, ensaiava frases inteligentes, combinava táticas mirabolantes com as minhas amigas, me esforçava ao máximo para ser atraente e interessante. Mas naquela tarde, não queria procurar, não queria me esforçar, nem tinha quaisquer táticas e planos em minha cabeça. Só tinha mesmo o desejo incontrolável de ter um tempo para mim mesma! Escolhi um livro da estante de meu pai, o qual já havia lido antes, mas isso não tinha importância, pois deveria apenas ser um bom livro. Passeei pela praça, tomei um sorvete, observei crianças que corriam por ali, antes de me sentar no tal banco, alheia a tudo ao redor, perdida em meus pensamentos.
Mas foi assim, quando menos esperava, quando menos preparada e enfeitada estava, que o amor me pegou... de jeito.
Um rapaz bonito, de pele dourada, olhos esverdeados, um sorriso largo e maneiras gentis, sentou-se ao meu lado. Custou-me a percebê-lo, concentrada em minha leitura, vivenciando minhas próprias fantasias alimentadas pelo romance que lia, mas o rapaz olhava pra mim de tal maneira, que o peso de seu olhar me tirou de meus devaneios. Olhei para esse estranho ao meu lado, que correspondeu-me com um sorriso dos mais belos, irradiando um brilho emprestado do sol.
Por um segundo, ponderei se o belo sorriso era mesmo para mim... Incrédula, percebi que minha boca também se fez sorrir por sí só, daqueles sorrisos que a gente dá sem perceber. Passei os dedos pelos cabelos impulsivamente e tive ímpetos de me arrumar, ou pelo menos me aprumar um pouco mais. Lembrei-me que estava num estado absolutamente relaxado, no sentido bom da palavra, sem maquiagem e sem apetrechos, mas procurei me manter firme e confiante.
Um “oi” veio em seguida e eu respondi com outro “oi”. Minha voz soou diferente, incerta, mas assim mesmo, uma conversa trivial se desencadeou sobre o tempo, claro, este é sempre um bom começo de conversa. Um comentário aqui e ali a respeito do que nos acercava naquela praça e nesse ponto da conversa, eu já não conseguia mais retomar à leitura, pois as palavras nas páginas abertas ao meu colo, não faziam mais o menor sentido.
O rapaz quis saber o que eu estava lendo e partimos para o meu assunto preferido: livros. Dali para falarmos sobre filmes e músicas foi um passo curto. Já nos achávamos íntimos o suficiente para desvendarmos nossos nomes e o fatal “prazer em conhecê-lo”. Sim, era um prazer conhecê-lo e o prazer se estendeu numa conversa que foi um pouco mais além de tempo, praças, livros, filmes e músicas. Logo nos vimos falando sobre nós mesmos, sobre nossos anseios e sonhos. Obviamente, não os anseios e sonhos mais secretos, apenas os mais simples de se falar a respeito. Nos pegamos sorrindo e fazendo sorrir e, em poucos minutos, eu sabia: o amor tinha me apanhado de súbito e parecia recíproco.
Já ao final da tarde, trocamos telefones e olhares insinuantes, antes de nos despedir. Segui de volta para casa me sentindo outra pessoa, não era mais a mesma. Caminhava pela rua a passos leves e parecia mesmo que o chão era feito de núvens de algodão. Meu corpo caminhava, mas algo de mim mesma ficou lá atrás, na praça, pulsando emoção.
Pelo resto da noite, não tive outro pensamento a não ser o acontecido. Pensava no rapaz que havia encontrado e meu coração disparava eufórico cada vez que o telefone tocava. Dormi e sonhei com anjos que me conduziam por um paraíso celestial, onde um trono suntuoso em forma de banco de praça esperava por mim. Sentei-me ao trono e o rapaz que havia conhecido se aproximou, belo, sentando-se ao meu lado, com aquele mesmo sorriso encantador.
No dia seguinte, acordei com a sensação de que tudo tinha mesmo sido um sonho bom. Talvez eu tenha apenas caído num sono rápido, no banco da praça, e aquele rapaz não tenha passado de fruto de minha imaginação romântica. Mas o telefone tocou para me avisar de que tudo tinha sido realidade, pois era ele... dessa vez, era ele! Conversamos amenidades por duas horas, antes de marcarmos um encontro para aquela noite. Ele veio me apanhar em casa e fomos jantar num restaurante. Uma boa comida, um bom vinho... será que esses são os ingredientes precisos para se apaixonar? Já estava tomada pelo amor, esse sentimento novo, outrora procurado por mim, buscado em cada canto da noite, vasculhado em cada esquina do dia, clamado aos quatro cantos do mundo, sem antes nada me responder, sempre escondido. O que tanto procurei havia chegado dono de mim, possuidor de mim, arrebentando-me por dentro, sem doer. Meu corpo vibrava a paixão, minha pele exalava o desejo, meus olhos, com certeza, transmitiam a explosão silenciosa que ia acontendendo em meu coração.
Depois do jantar, ele me levou para casa e conversamos e rimos ainda mais, como se fôsse fácil ser feliz, tão claro e tão simples... Defronte ao meu portão e antes de dizermos “boa noite”, o beijo. O primeiro! Aquele beijo! Aquele que a gente sabe que não vai esquecer nunca mais, que vai ficar tatuado em nossa memória para sempre, selado em nossos lábios pelo resto de nossos dias e cujo sabor levaremos para o túmulo e para o pós-morte, seja lá o que venha a ser isso. O amor havia me tomado por inteira e era tarde demais para voltar atrás. Eu estava entregue!
Minha vida se tornou o próprio romance, recheada e abastada de emoções diversas. As descobertas do início de relacionamento eram tantas e traziam boas surpresas, as quais nos instigavam a ir cada vez mais longe. Logo percebemos que não bastava nos encontrarmos uma vez por semana, nem duas, nem três, eram necessários oito, dez dias na semana para saciar a vontade de estar junto. Os beijos deixaram de ser serenos para serem arrebatadores. Os abraços deixaram de ser brandos para serem apertados. As mãos deixaram de ser provocadoras e passaram a ser exploradoras. Não demorou para que aquela febre crescente nos levasse para algo mais. Corpos que se desvendaram sedentos, deixando-se ver e querendo ver mais. Corpos que se acoplaram e se ajustaram como peças de um quebra-cabeça predestinadas a se juntarem. Corpos que se aderiram, grudados pelo suor, cheiros misturados, sabores diversos... O amor havia me dominado totalmente e já nem era eu que falava, que cantava, que dançava, que sorria, era o próprio amor dentro de mim, como se eu fôsse marionete em suas mãos astutas e era bom deixá-lo desenfreado dentro de mim, no comando.
O relacionamento ficava cada vez mais perfeito e completo e as emoções continuavam a aflorar desimpedidas. O tempo foi passando e eu estava feliz. Era cúmplice, companheira, conselheira, amante desse homem, que continuava cada vez mais belo com o passar dos anos. Já nos conhecíamos demais, quase premeditávamos os passos um do outro. Desenvolvemos a capacidade de ler nossos próprios pensamentos, de interpretar as entrelinhas, de traduzir a mensagem corporal e facial, de entender até o mais obscuro sentimento. Havíamos amadurecido juntos, crescido e evoluído. Os planos para o futuro estavam cada vez mais certos e claros no nosso horizonte, era apenas questão de tempo, pouco tempo, para que o enlace matrimonial viesse nos fazer uma família, no sentido legal e institucional da palavra, pois ele já era a minha família, pois eu o via como meu marido, meu dono, meu homem! O amor, agora enraizado e firme, maduro e abrangente, era parte de mim, como um de meus membros, e prometia dar frutos.
A felicidade era tamanha, porém, com ela vinham os seus fantasmas traiçoeiros, o medo e o ciúme. Medo de perder o que se tem, o que se conquistou, o que se adquiriu, cujo medo é covardemente expressado através do ciúme, que obscurece, ilude e denigre a verdade das coisas. Embaça a nossa visão, se contrapõe, deturpa e engana os corações apaixonados e frágeis e que só encontra alento na solidez de planos definitivos, pés fincados no chão, idéias objetivas e um rumo mais seguro ao relacionamento: o casamento! E foram traçados os planos, conversados e negociados, e cresceram, tomaram forma. Assim, o amor ganhava ainda mais força, pois agora tinha a promessa de durar para sempre, se tornar eterno, posto que eterno já era, e vinha me trazer a calmaria de ventos pós-tempestade.
Mas o casamento não aconteceu. O relacionamento começou a mudar e nem sei quando aconteceu de mudar. Uma frieza em nossas palavras veio se instalar de repente. Uma insegurança persistia em se fazer companheira. O ciúme, sempre regado por gestos bruscos e rudes, germinava e vingava sorrateiro. A distância veio se intrometer entre nós dois, lentamente. Quando percebi, já não éramos mais tão íntimos. Nosso diálogo passou a ser vago e indireto e nossos olhares se desviavam, em busca de subterfúgios. Os lábios não mais se beijavam, apenas se tocavam, cumprindo um ritual macabro de desapego. E a fatal solução para o que não tem solução: a separação! O amor, então, me sufocou, me estrangulou, me torturou... era a perda de tudo. Veio a frustração medonha de ver o rumo mudado, sem que eu quisesse, sem que eu controlasse. O que era promessa, virou mentira; o que era jura, virou brincadeira; e eu fiquei ali, embrulhada no meu amor desprezado.
Ficou, porém, a satisfação por ter amado e a lembrança que me faz gemer de saudade. Ficou o toque em meu corpo, a umidade em meus lábios, o carinho perpetuado em meus pêlos que se eriçam ao pensar no que vivi com ele. O amor cristalizou-se em mim, pedrificou-se, solidificou-se e fala comigo todos os dias, sereno e envelhecido, porque o amor envelhece com a gente, não nos deixa nunca mais, é parte do que somos. Outras pessoas podem aparecer e se tornar importantes, mas o amor está ali, sempre, morando dentro da gente, discreto, sentado em uma poltrona, enrolado em um cobertor velho, lendo o jornal, sem incomodar, sem atrapalhar, apenas ali dentro da gente... envelhecendo conosco.
Hoje, não procuro mais o amor. Ele me apanhou de súbito, quando menos esperava, quando menos preparada estava. Não precisava mais ir a seu encontro... nunca mais!