O belo mês das flores

“Os enfeites velhos, comidos pelo tempo, neste ano repousarão sobre a mesma gaveta. Eles já não me fazem pensar em harmonia e tempos de paz. Ganhei um cinturão em que guardo os pedaços de luzinhas quebradas dos natais passados.”

Eu sabia que era quase uma confissão de assassinato, mas por vezes era difícil admitir que nada do que eu planejava dava certo. Quando se tem dez anos ou afunda-se em um lago com todas as suas forças ou simplesmente não se aprende a nadar.

Naquele inverno, fazia mais frio do que de costume, porém em minha casa tudo sempre fora tão quente, que se me derretia até os mais gélidos pensares. Lembro-me da senhora que trazia em seus pés rachados a marca do sofrimento, e eu queria poder entender o porquê dela ter machucados visíveis, mas radiante olhar para mim. Era uma velha, que trazia em seu colo uma mesma bolsa plástica, uma mesma bolsa.

Era a senhora que me respingava o melhor de todos os sentimentos que já tive: a compaixão.

Mas não era uma compaixão desmedida, dessas que a gente simplesmente tem e esquece-se; era uma compaixão contínua, que santificava.

Ora, se recordo do dia cinzento em que acordei para salvar a minha alma e a alma daquela mulher. Todo ano, no mês de novembro eu ia encontrar-me com a salvação e também eu ia apenasmente encontrar-me diante de um sepulcro, onde eu podia através de flores amarelas me reconhecer naquele concreto com asas de maribondo.

Como era agradável ver o rosto daquela senhora, como era lindo ver-na coroada por princesas. Eu e todas as crianças jogávamos pétalas na senhora afável que nos invadia o peito.

E ainda hoje o badalar daquele sino ressoa em mim, como a compaixão que tinha. E é o som do sino mais belo que já escutei. Porque na verdade, era o som da minha vida que ardia naquele lugar. Ali, depositarão meu corpo, que transformado em ossos pelo roer dos vermes, dará continuidade à tradição da qual sempre fiz parte: chorar diante do belo mês das flores.