Uma janela além do barco
Cena I: ela vestia branco. ela preta. uma flor. branca também essa. a flor (rosa, lírio, jasmin-meus olhos baços e minha memória sem brio não conseguem grandes distinções). os olhos, debalde, fixos (nela, na flor). a flor escorrega da mão, pirueta-se até o chão e sangra na brevidade de seu tombo.
Cena II: uma praça. o gramado molhando os bicos dos sapatos. não mais chove, mas chovera. fumaça alinhando-se entre os narizes de alguns senhores. um homem sentado em um banco. ele maneja o pescoço em direção à duas crianças de guarda-chuvas coloridos que passam.
Cena III: a senhora de meia idade deixa-se perceber por um ninho de passarinhos que fecunda a imagem da sua varanda. ela dá algumas golfadas de iogurte. sentada: me escute bem, senhor, estou vivendo apenas em rascunho, amanhecendo uns biscates de futuro!
Cena IV: um menino de um lado da cerca de arame farpado. um outro menino do outro lado da cerca de arame farpado. um sorriso faceiro de um dos meninos. o sol ilumina as covinhas das bochechas do outro menino que também sorri. aqui estão as pessoas reais!
Por que motivo esses teus dedos afundam-se nos meus lábios como pés na lama?
Cena V: a camiseta vermelha borrando sua cor pelo ar, estendida no varal, pelo horário das três da tarde. magia morna dos dias em que a felicidade esconde-se nas casas com quintais. a camiseta branca desprendendo-se subitamente do varal, partindo em voo pelo desconhecido, pelo horário das seis da tarde. encanto vivo dos dias em que a felicidade alfineta nossos narizes e não a percebemos.
Cena VI: o som vinha de um longe próximo, atravessava os muros, as paredes, os eletrodomésticos aturdidos. e era valsa, como um sopro de pés arrastados sem rumo. dona tereza aperta-se entre os cobertores para ouvir a melodia com o corpo.
Cena VII: os portões já se fecharam, a noite encosta-se ao sol. uma criança procura a sua pandorga entre os galhos altos das árvores. seu olfato apurado desenha em sua mente o cheiro-gosto de bolinhos fritos. está na hora do abraço longo em seus pais.
Cena VIII: pés descalços desafiam a lama. mãos ásperas contornam os ombros. ele precisa de um beijo para o frio de seu coração. as pessoas não plantam mais flores nos jardins. ele só precisa de uma flor para depositar no altar gelado do seu corpo.
Quanto tempo mais terei de suportar as ruas vazias do meu peito?
Se eu pudesse ter outra vez o brio dos olhos-moleques que acompanhavam silenciosamente os delitos das borboletas por sobre as folhas.
Como se eu soubesse ainda comer apenas o que me agrada. Nem sempre os pés conseguem ter firmeza diante de um céu azul, clamando por asas roxas ruflando direto, direto ao encontro do deus-pequeno que pode com um toque de dedos retirar toda a sujeira que se acumulou nesses anos todos deitado na cama de cetim azul.
Quando a procura não é mais do que um caminhar sem esperanças. Quando os cabelos perderam o viço, e a barba arremeda as do meu antigo ídolo.
Tivesse ainda os braços magros, mas com forças de revolver a terra. Tem já os braços rugosos, de veias inflamadas por alquimias malucas.
Poderia ter a velha vontade de erguer-se todo, em penas finas de amor, em passos longos de conquista, em vozes todas de anseios.
Poderia cunhar sem medo as moedas de um sistema outro que fora seu maior amigo.
Talvez não compreendam o enigma que preciso declarar-vos. Talvez não haja mais tempo suficiente para entender coisa alguma. Talvez o tempo fosse mais um passatempo seu, na unidade imaginária que maquina todos os dias diante das flores do jardim, embaixo das escadas de madeira abundantemente enceradas no porvir dos sábados, em cima das laranjeiras em flor.
E o que falta? Seria a terra atropelando os seus olhos para avisar-lhe da colheita do amanhã? Seria o vento fingindo um gesto manso em seu rosto para dizer-lhe das muitas cores do depois? Seria a lua vagarosa acobertando os seus desejos menos valentes para contar-lhe das angústias no quarto vazio do futuro?
Os sapatos pretos de solas já gastas pelo andar sinuoso. As camisetas com descosturas enormes. A cor avermelhada da boca perdendo a busca por outras bocas. Os olhos de um preto atento esvanecendo a ação de batalha. O corpo, mesmo desbotamento da vontade que cai quando do riso certeiro dos que não lhe confiaram a trepidação.
Conte-me da vida!
Não, não me conte. Vou ali esbarrar na vida um pouco.
Eu sempre soube do teu coração. Nunca precisaram ensinar-me das artimanhas da fé caduca das pessoas.
Por muito tempo foram os gostos, o olfato apurado e o tato enobrecido que guiaram o que eu herdava de fora. E agora? Ainda tenho essa exatidão bonita? Talvez o menino tenha crescido e abandonado as mesmices líricas de antes, ou seria esse menino apenas um adormecimento que pede passagem em cada esquina vã?
Não receie ir vagando sem tomadas definidas. Ilusione-se com seu gozo de partida. Colha pouco, que do pouco se faz muito. Olhe tantos, olhe manso, mas olhe tudo o que lhe possa antevir aos olhos. Beba muito, dos contrastes múltiplos. Faça-se som, embora te queiram calar. Pode com sussurros ulular alto, vibrar grandioso. Não te condene apesar dos pés descalços e da pele das mãos já corroídas. Veleje pelo desconhecido. Por que o ainda não conhecido também é caminho, também é direção salvatória.
Afunde-se com as ternuras sem crenças. Proteja-se o mínimo que puder. A não ser que tema a insegurança das ondas bravias. Limite-se apenas a acabrunhar-se todo num canto qualquer, tendo medo do agora. Pois se enrole num amontoado de sensações novas. Pois pague caro pela lama que te derramam dia após dia. Pois acorde cantando estridentemente as canções antigas que tanto prima.
Busque acariciar as palmas que nunca te foram companheiras. Alivie a dor física orando para as primeiras estrelas que surgem no céu de qualquer noite. Amarre sem muitas forças os desejos ainda incompletos. Os desejos podem amigar-se e explodirem em festa. Durma apenas quando do sono chuvoso apoderando-se dos cabelos. Aprecie o gosto dos jantares solitários. Aterrorize-se por completo diante das manhãs sem sol. Faça-se chuva e contemple o seu corpo armando nebulosidades dentro dos ônibus.
Duas doses a mais satisfazem meu coração. Duas doses a menos repartem sentimentos. Diversas doses, controle não submisso, alteram minha expressão. Sacio-me com o bastante bem vermelho de loucuras distantes, de terras sem reinos, de flores carnívoras, de embarcações sem mastros, de roupas em farrapos, de tinas já esvaziadas, de...
Traga-me um sonhar novo!
Não, teus sonhos são migalhas análogos aos meus.
Se tu cirandares em volta do fogo durante uma mudança de fase da lua, terás contigo um sorriso mais evidente, que esconderás para muitos, mas revelarás em melodia e em cor aos poucos capazes de senti-lo.
Não prossiga. Isso é mais um ludíbrio para afrontar vontades particulares. Saber-se de posse de um engano muito altivo pode desabitar os seus espaços já construtos. Lança-se ao risco?
Dorme, dorme, flor miúda! Acompanha-te do silêncio, cuja voz trepida em coro nos corações tempestuosos. Acoberta-te com ferrugens já sem nervos. Levanta-te sem brevidade, vomite os...
O trajeto contínuo, semana após semana, organizando os dias, preenchendo as horas, tapeando os minutos e brincando com os segundos. Esses mesmos braços meus, um pouco morenos, lançados fatigadamente nesse encosto. A visão turva pelo obstáculo de vidro. A paisagem, que mesma se vai moldando, sem alegres saltos de inovação. O que me chega aos ouvidos é ignorado rapidamente e assim posso flertar com a minha fabulação, retirando do fora os elementos para a essa forte crença de selecionar o mundo, de reaver sentidos, de imaginar significações que não as do senso comum.
Com tijolos pouco resistentes construira sua existência no agora, pois a existência do antes fora costurada cuidadosamente e por esse motivo era forte e manteve-se por longo período, o qual fora gracioso e aconchegante. Os seios das mães são unicamente o único ninho de paz que se poderá conhecer até o final da vida.
Contaminei há certo tempo, e já se esgotou a cura. Multidões arrastam-se na confiança de encontrarem restos da cura em algum lugar. Eu sei e não tenho esse conhecimento por ditos alheios. Sei sim, a cura escapou-se depois que as cidades tornaram-se ambientes brutais. Vi-a levantando-se do seu banco costumeiro, que observei por muito tempo da grande janela do meu quarto; a cura, de semblante purpúreo, de alongado talhe, olhos de estarrecimento, andara por alguns metros após o banco que repousava e esfarelou-se em cor de fogo brando, desaparecendo então.
Maldigo as lâmpadas de luz excessiva, esfrego esmorecendo o lume aos versos-manequins de lojas, ataco com fuligens agoureiras os semblantes comportados, os quais sem fissuras doloridas trafegam maestrais pelas calçadas da cidade.
Boas pastagens feneceram, roucamente, tresloucadas com suas súplicas. Campos eriçaram a outras partes que não aqui. Morreram-se as bênçãos. O que resta? Por onde avançar? Qual o gesto motivado de agora? Pode-se fugir? A roda sufoca paulatinamente?
Abram-se olhos tarados pelo sentir máximo!
É chegada a hora de desabitar-se uma vez mais.
Os pratos do jantar de ontem esperam pela água fria. O estômago insatisfeito reclama pelo alimento. São Francisco de Assis aguarda pela oração diária. O travesseiro deseja ouvir a cantiga de costume. A janela do quarto fecha-se.