Hoje

Para ler ao som de Bolero de Ravel

Um motivo monstruoso para que eu fique deitado aqui, nesse sofá amarelo, estofamento gasto bem mais pelo tempo do que pelo uso. Não costumo receber visitas. Pessoas, tantas, quase todas que topam comigo por aí não são fortificadas o suficiente para compartilharem da minha maneira de compreensão do existir, digo, até mesmo para estarem sentadas junto de mim nesse sofá amarelo aqui.

Sempre agigantei o ser, o estar e o existir daquilo que os meus olhos tomavam da presença da vida. Diziam-me, dizem-me ainda que eu não sei olhar. Até concordo com esses, mas respondo-lhes: é que eu vejo com a fome interna dos olhos.

Somente sei, e nunca aprendi com ninguém, devorar apressadamente e com benevolência e dor e inquietação o que me esta circundando. Compreende-me? Não compreenda, caso não possa, mas aceite, do mesmo modo que eu tive de deixar fluir sem entendimento esse vulto grosso que me compõe e me domina em todos os instantes e viveres e enchergares e perceberes e refletires.

Lá fora é tão desabitado para o que eu sou. Certeza de que algum dia eu voltarei, não a tenho, nem ao menos a sei em mim. Talvez eu regresse num dia qualquer, assim como a minha existência, que sempre esteve e nunca foi. Encontrei-me com o desterro da crença desde muito, desde aquele dia sagrado em que as minhas pernas infantis foram sangradas.

Então que depois triturei aos poucos as esperanças que os seios agudos e calorosos de mamãe haviam-me depositado. Confesso, tentei resgatar uns poucos desejos que tive. Ah, desejos que não puderam renascer, pois foram afogados em águas barrentas de um açude naquele mesmo dia do antes.

O sol não nasce mais enobrecido como antes. Para mim, o sol começou a soluçar em lágrimas como as minhas. Ele surge e esvaísse como que por obrigação. O sol apenas vem-me para tentar acordar os meus sorrisos de outrora.

Tornei-me um signo de pontuação perdido, sem encaixe e significação em uma oração. Sem ritmo, narro-me às janelas desse velho sobrado. As janelas não respondem, mas parecem entender meus sentires atordoados.

Como me seria felicidade se eu tivesse de volta a tempestade dos meus cabelos correndo ao vento em campo aberto completado por flores de odor macio. Você não entende nada, somente se impressiona e sente pena. Você apenas me observa da sua varanda no início das manhãs quando busca o jornal cotidiano. Você jamais sofreu pela lua aparecer menos colorida em certos dias, jamais lamentou o poente do sol não te trazer a calma de um amor proibido.

Moldaram-me para ser riqueza de jóias e aquele dia transformou-me em passageiro errante, em servo da dor, em substância banal. Não sou raro. Impuseram-me lábios nunca beijados.

Segura a minha saudade de existir?