Assim

“As grandes vozes do céu ressoam como o som da trombeta, e os coros dos anjos se reúnem. Homens, nós vos convidamos ao concerto divino; que vossas mãos tomem a lira; que vossas vozes se unam, e que num hino sagrado se estendam e vibrem de uma extremidade a outra do Universo.” (O Espírito da Verdade-O Evangelho Segundo o Espiritismo).

Emanuel, naturalmente, sabia que sua felicidade escondia-se mansa à distância de quatro quarteirões do seu apartamento.

Não menos fugidio do que sua alegria era Emanuel; não menos que a alegria cotidiana que via se debulhar aos poucos como milho às galinhas, durante algumas horas do dia.

Acordava cedo, lembrando-se das indicações que outrora sua afável mãe lhe inculcara. Sabia da nobreza do ato de levantar-se juntamente com os primeiros raios de sol. Vez ou outra, os raios (esses, do sol) demoravam mais do que Emanuel.

Maquinalmente, o cavalheiro perdido dessa contação espontânea, preparava o seu café. Três colheres de chá de café solúvel. Duas colheres de chá de açúcar.

Gostava, ele, de cantarolar uma cantiga, talvez para repelir a solidez das ausências que lhe fustigavam fundo no coração.

“_Alecrim, alecrim aos feixes, meu amor não deixes de gostar de mim...”

Mais uma vez a imagem atônita de preciosidade: a mãe rodeada pelo vento lancinante e ferida por inúmeras flores de ipê-roxo ao colo.

Ele arrumava a cama como quem prepara o mais saboroso manjar para o mais imponente imperador.

Emanuel resmungava no conluio das manhãs amenas, das tardes sem gracejos e das noites ligeiramente vagas, sorrateiramente enoveladas pelo ir e vir das plumagens dos anseios já sepultados e pelo sentir das estrelas mínimas que lhe eram notadas rentes à grade da janela da cozinha. Emanuel sempre preferira a cozinha ao quarto.

Emanuel esperava das nuvens bem mais do que as nuvens. Emanuel apalpava seu corpo franzino bem mais do que um apalpar leve-costumava tocar-se como a anciã da aldeia cingindo seus dedos por sobre as estatuetas de santos, envoltos por flores, velas quase findas, cera escorregando pelas hastes.

Seu corpo- pensava ele, era a casa donde se guardavam os diferentes cantares dos passarinhos; era a morada dos diversos hinos de regozijo dos homens. Para que assim, ao tocar-se, poluiria beneficamente todos os lugares do mundo com seu grosso, calejado e acalentante olhar.

Mesmo sendo sabedor de todos os becos até às quatro quadras em direção ao sítio dispendioso da sua felicidade, Emanuel vacilava dia após dia ante a decisão. Apenas seguro de que seu destino era certeza na travessia das formigas, partia todo final de tarde em busca de afeto-outro, que não o dele.

Ria corando as faces, ruborizando-se com os estalos de seu sorriso. Sozinho, mas não inócuo. Numa praça, não uma qualquer. Aquela mesma praça dos avós sentados em fila indiana protegendo dores. Aquela mesma praça dos jovens despejando sonhos frustrados em copos de bebida alcoólica. Aquela mesma praça, onde se festejava a si pelo abandono. A praça em que seu sorriso era pesado por sabê-lo falso. A praça em que seu sorriso era leve por querê-lo esperançoso.

Emanuel vira um sorriso parecido com o seu. Era tarde demais. Embora sorriso, a risada alheia era altissonante demais para que o amor fosse imediato.

Ele chegara à casa do sítio da sua felicidade. “penso que não sei mais sobre aquele nada do tudo que se misturava a mim, anteriormente.”

Ouviu-se um flautim súbito por várias alamedas daquela cidade. O som percorre até hoje quando das madrugadas garoentas daquele local.

Emanuel desaparecera enigmaticamente. Deixara tão somente, no seu apartamento, sobre a mesa posta para o café da manhã, rabiscado em um papel manchado de café: “há casas que são um poema para dar a um amigo (Eugénio de Andrade)”.

Assim.