Partículas doces
E permanecemos comuns. Mesmo após a mudança dos ventos. Quando partimos com destino aos medonhos de ferro e cimento levávamos nos bolsos um tanto de receio paternal (nossas mães sempre foram estrelas de força). Não sabíamos ao certo o que buscar, somente queríamos o querer.
Meu nome, por três vezes é anunciado na TV, apesar dela não estar sintonizada em canal algum. Reconheço a voz anunciante-rouca e ventosa. Supus estar louco. A tela formada por um sem fim de pontinhos cinza e o meu nome mencionado seguido de aplausos. Estou louco.
Precisei tornar-me solitário, quando comecei a realizar nos dias seguintes a dica aprendida em um programa de entrevista na televisão durante a madrugada. Na manhã póstuma e no decorrer das outras, ia ao banheiro ao acordar e deixava o creme dental num quase fim de uso. Esvaziava e esvazio não completamente o conteúdo da pasta de dentes. Vejo-o desertar juntamente com a água que escorre ralo abaixo. Escovo então os dentes com o restante do creme dental, geralmente de cor avermelhada, sugando com os lábios ávidos a corpulenta massa refrescante. A dica aprendida no programa de entrevistas era a engenhosa tarefa de utilizar o resto da pasta de dentes que jazia no tubo. Ora, se a pasta irá para sua boca mesmo, que mal tem em sugar e já ter o creme em seu local de uso?
Para não me sentir tão sozinho, a pasta era desperdiçada quase por total a cada manhã, para que assim, eu tivesse a impressão de casa cheia, de mãos volumosas por sobre o pão quente com manteiga, de sorrisos preguiçosos desabando dos cobertores com a meia vontade de acordar em dias frios, de listas de supermercado com mais produtos para criança.
Sou eu o contado nas sessões de filmes senso comum nas tardes televisivas, em qualquer canal. A história é a mesma.
Revejo algumas fotografias da minha infância. Olhos católicos. Vejo olhos católicos no pequeno menino de semblante assustado e longínquo sentado sozinho numa calçada áspera.
Não ao longe, mas perto, muito próximo, o som do piano chegando junto do som das hélices do ventilador. Mariposas a entreterem-se nas tardes calorentas de sábado. No riacho. No riacho. No riacho. Que não mais o que banhava os meus pequeninos pés, destingindo a cor vermelha da terra. Na terra. Na terra. Na terra. A terra aquarelada em voltas dedilhadas por sonetos compostos de brisa, de sorvetes amarelos, de caudas de girinos, de beliscões por mau comportamento, por bigodes de glacê das bolachas das vizinhas, de alívio e gratidão pela capelinha de Nossa Senhora a adentrar a casa e permanecer por lá durante um dia, por, por, por, por, por o pôr.
As sobrancelhas que não precisavam de norte. As unhas que não queriam o corte. As conversas sem pressa. O mundo pego com a ponta dos dedos. Sempre sinto que os tombos eram felizes apesar da dor. Hoje tomo tombos leves, mas a dor é mais aguda. Quem sou nesse andejar de gumes e de foices?
Chove como choveu e cada gota de chuva, morta pela quentura do cimento, ultrapassa a vidraça desse apartamento e costura-se em mim feito lágrimas. São lágrimas. O choro de quem outrora via sonhos por entre bolhas de sabão.
Percebi que algo estava errado no momento em que eu era apenas um dos seus compromissos escritos em uma agenda. Nosso amor endureceu como aquele pedaço de pizza doce que você mandou eu guardar para você. Há quinze dias, o pedaço de pizza doce está na geladeira aqui de casa e você não veio, e você não vem e eu estou, porque afinal eu sou.