O garoto que perdeu seus órgãos

Vitor era um garoto dos distraídos, vivia no mundo da lua, despreocupado com a vida ou com qualquer coisa. Era do tipo que gostava de olhar as estrelas, sentar embaixo de árvores e observar os animais, sentir o vento bater no rosto, andar descalço sentindo a vibração silenciosa do universo e mergulhar na imensidão azul do céu. Na verdade, Vitor era um poeta, mas não se dava ao trabalho de escrever poesias, ele criava seus versos das cores das borboletas ou da delicadeza das flores, recitava para o vento e deixava seu poema ir embora.

Por ser assim distraído, Vitor costumava perder as coisas facilmente, assim como perdia os poemas que criava. Ele podia viver sua vidinha normalmente, até que certo dia, sua distração lhe causou, pela primeira vez, uma consequência negativa. O garoto estava acostumado a perder as coisas, desde um chapéu que levava na cabeça a um iô-iô em seu bolso. Nada durava muito tempo em suas mãos. Ele também não se apegava muito a nada, pensava que não precisava guardar nada, pois sabia que tinha o mundo inteirinho para si. Ele sempre deixava as coisas irem, pois sabiam que elas continuavam neste mundo e ele era parte deste mundo então as coisas que perdia ainda eram partes de si.

Numa tarde tranquila um pedaço de Vitor foi levado embora. Quando acordou de uma longa soneca embaixo de um cajueiro, Vitor sentiu que estava respirando diferente, precisava fazer um esforço a mais para puxar o ar. Inspirou e expirou algumas vezes e só depois de alguns minutos, entendeu o que estava faltando: um de seus pulmões havia sido levado. No peito, só restava uma cicatriz discreta, já sarando. Vitor se levantou e saiu caminhando devagar, achou que teria alguma dificuldade ou sentiria alguma dor, mas não. Ele percebeu que seu pulmão não lhe faria falta e poderia continuar muito bem apenas com um deles.

Pena que não demorou muito para a história se repetir: quando acordou pela manhã de uma bela noite cheia de belos sonhos, Vitor se deu conta de que mais um pedaço seu havia sido extraído, viu uma marquinha perto da barriga, mas não sabia pela sensação distinguir o que lhe faltava, precisou que um médico lhe mostrasse, depois de alguns exames, que um de seus rins tinha sido roubado.

Sem pulmão e sem rim, Vitor continuou sua vidinha relaxada, não se sentia mal pelo que lhe faltava, talvez quem lhe tirou aquilo que lhe sobrara estivesse precisando mais que ele, até se sentiu feliz por imaginar que alguém estava mais feliz e talvez mais saudável, graças aos órgãos que ele lhes "doara".

Mas a história de Vitor não acaba aqui, muito tempo depois dos acontecidos narrados, Vitor levava o cachorro que lhe fazia companhia (que não era seu, era do mundo) para passear pela praça, foi quando encontrou uma bela moço que de imediato lhe prendeu a atenção. Os dois se conheceram, ficaram próximos e foi assim que a vidinha de Vitor teve um fim, ao cair de amores pela moça, ele entregou para ela algo com o qual não poderia viver sem, algum tempo depois a bela moça se cansou do pacato vilarejo que Vitor morava e foi embora levando consigo o coração do rapaz.