SOBRE OS VERSOS ÍNTIMOS - Primeira Estrofe

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a ingratidão – essa pantera –

Foi tua companheira inseparável.”

(Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos)

Nataxa olhou pela janela da cozinha do apartamento. Caía uma garoa fina e gelada. Há dias que não se enxergava o sol. Uma massa de ar polar como há muito não se via enregelava o ar da metrópole, parecendo tornar ainda mais frios os corações das pessoas da cidade grande.

Para que se cuidar? Para que se esforçar? Para que vida?...

Foi até o armário e pegou a faca. Por lamentável que pudesse parecer, era, no momento, o único instrumento cortante que ela tinha em casa. Lembrou-se de seu avô lhe dizendo: “quem quer se matar não corta os pulsos, corta o pescoço”. Olhou para a lâmina e pensou em quantas vezes na vida tivera vontade de se suicidar – e quantas vezes as palavras de seu avô haviam-na feito ter vergonha de cortar os pulsos, e a falta de coragem a impedira de cortar o pescoço.

Seus tormentos haviam começado precisamente no dia em que seu pai fora registrá-la, e aquele imbecil do cartório colocara um “x” onde deveria estar “sh” – se tivesse colocado “ch”, talvez não fosse tão terrível. Mas na escola tivera de suportar todo tipo de zombarias por causa daquele nome estranho, que, na verdade, não passava de um erro de grafia. Até havia tentado consertá-lo quando completara dezoito anos. Mas o incompetente do advogado havia perdido a ação, e o irracional do juiz a condenara a permanecer carregando aquele fardo pelo resto de seus dias.

Para que se cuidar? Para que se esforçar? Para que vida?...

Apesar das piadinhas dos colegas, Nataxa fora uma aluna brilhante. Ou, talvez, justamente por causa das piadinhas. Havia-se isolado. Não participara de grupinhos, nem de festinhas, e, para ela, a escola sempre fora um lugar de estudo, não um clube social. O fato de ser gordinha, feia e desajeitada também a tornara suficientemente impopular para que se concentrasse nos livros mais do que qualquer outro dos seus colegas.

Fora assim por toda a vida estudantil e acadêmica. Formara-se em Administração de Empresas com louvor. Arranjara um emprego numa fábrica renomada, onde por muito tempo tivera a esperança de conseguir uma promoção. Trabalhava dez, doze, catorze horas por dia, sem cobrar as horas extras. Sabia que sua produtividade era excelente. E, como não tinha medo da concorrência, costumava ajudar os colegas mais novos em suas dificuldades – como aquela moça que chegara à fábrica meio perdida, sem saber nem ligar o computador.

Até que, após quatro anos de muito trabalho duro, vira a jovem que ajudara ser promovida em seu lugar. Aquilo a deixara perplexa. Como podia? Ela era uma incompetente! Até se demonstrava esforçada, mas não conseguiria nem arquivar papéis em ordem alfabética se não tivesse alguém para ajudá-la!

Mas era bonitinha, e, embora a ingenuidade às vezes a cegasse, Nataxa acabou por se dar conta, ao ouvir os comentários dos colegas, de quais haviam sido os atributos que levaram sua concorrente ignorante, mas esperta, ao cargo pelo qual tanto ela lutara honestamente.

Para que se cuidar? Para que se esforçar? Para que vida?...

Olhou para a lâmina da faca que tinha em suas mãos. Talvez estivesse precisando de um pouco mais de fio... Imaginou que um corte de uma lâmina sem fio produziria uma dor muito maior... Ou, talvez, faltasse força para o intento, o serviço acabasse ficando pela metade, o que provavelmente seria terrível...

Havia-se desiludido mesmo com o mundo dos negócios. Ah, mas com o amor, era diferente. Conhecera aquele jovem que lhe parecera tão encantador. Emagrecera quinze quilos em dois meses. Passara a enfeitar-se. Comprara roupas novas. Quando saiam para jantar, sempre aquela tortura – ele comia o que quisesse; ela, apenas uma saladinha com água mineral sem gás. Mas tudo suportava. Quando o coração incha de amor, aperta o estômago de tal forma que a gente nem consegue comer...

Largara o emprego para se casar. Durante anos, dedicara-se a cuidar da casa e do marido – comida bem feita e na hora certa, só para ele (ela permanecia em seu regime de faquir), roupa lavada, casa limpa, lençóis cheirando a lavanda.

Porém, aos poucos, ele lhe parecera cada vez mais distante. Lentamente, fora perdendo o interesse pelo sexo. Claro, a culpa era dela – voltara a engordar um pouco. Fizera dieta. Não adiantara. Talvez o problema estivesse no cheiro de temperinho verde que se incrustara em suas mãos. Pedira a ele que contratasse uma empregada. E ele contratara – aquela morena espetacular, de lábios grossos e coxas bem torneadas. Até que, um belo dia, Nataxa a pegara na cama com seu marido.

Para que se cuidar? Para que se esforçar? Para que vida?...

Tentara perdoar o esposo, mas este mesmo lhe dissera que não lhe interessava seu perdão. Preferia ficar sozinho por um tempo – depois, viera a saber que ele preferia manter o caso com a empregada por um tempo. Fora morar com a mãe. Aquela mesma mãe que sempre a desprezara, que sempre deixara visível sua preferência pelos irmãos de Nataxa – sua irmã mais velha, muito mais bonita do que ela, embora menos inteligente, e seu irmão caçula, que a mãe sempre chamara de “meu filho homem”.

Agora, porém, que a mãe estava velha e doente, que a senilidade se antecipara nela devido a uma doença degenerativa, agora que ela precisava que alguém lhe trocasse as fraldas e lhe desse banho, de alguém que tivesse paciência de lhe dar comida na boca e de conversar com ela, agüentando-lhe os insultos e reclamações, nem a irmã bonita nem o “filho homem” souberam se fazer presentes. Apenas Nataxa e sua abnegação cuidaram da progenitora. A velha realmente estava muito mal. Doía a Nataxa ver o sofrimento da mãe. Por isso, suportava com paciência quando ela a chamava de gorda e de feia, dizia que sempre soubera que ela iria ser uma fracassada, acusava-a de não ter conseguido manter o emprego e nem segurar o marido.

Após mais alguns anos de suplício, finalmente a velha senhora descera à cova. Nataxa sentiu-lhe a morte mais como um alívio do que como uma perda – não tinha como deixar de assumir tal sentimento, ao menos intimamente.

Aí, o “filho homem” apareceu com um testamento, onde a velha havia deixado toda a parte disponível de seu patrimônio (a casinha no interior, o carro que fora do pai de Nataxa, metade da caderneta de poupança) para ele. As irmãs que dividissem o resto. Porém, havia uma cláusula que determinava que todas as jóias da anciã fossem entregues à filha mais velha – e Nataxa se lembrou de tê-la ouvido dizer, uma vez, que com certeza seus brincos e colares ficariam muito melhor nas orelhas e no colo da filha que era mais bonita... A prataria também deveria ficar com a mais velha, que ainda era casada – portanto, melhor dona de casa, na visão da mãe. Até as partes do faqueiro que Nataxa ganhara da mãe quando havia se casado fora mencionada – tudo deveria ser devolvido ao patrimônio da “de cujus” e entregue à sua irmã, desde a pá de bolo que lhe servira a iguaria do casamento até a mais insignificante colherinha de café.

Para que se cuidar? Para que se esforçar? Para que vida?...

Nataxa olhou pela janela. A chuva continuava. Suspirou profundamente. Um dia fora jovem, tivera tantos sonhos – e todos haviam desmoronado...

Apertou a mão em volta do cabo da faca, resoluta.

Dirigiu-se à geladeira, abriu-a e serviu-se de um enorme pedaço de bolo de chocolate...

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 05/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T514689