BATATAS DOCES

Eu não esperava aquele abraço. Confesso, como se fosse um pecado do meu bom Deus, ou um raio que me parta, e continuarei confessando até o último dia da minha vida, que não estava esperando por aquele abraço. Mas quem poderia esperar, não é, meu filho?

E para que são feitos os abraços, senão pra gente dar? A gente vai vivendo, não espera acontecer, porque as coisas vão acontecendo por conta própria, vontade da vida mesmo. A gente trabalha doído, não é, meu filho? Dói trabalhar, dói mesmo. As costas, os vincos da perna. Mas a gente carrega aquele balde retorcido, torce aquele pano sujo, enxuga aquela vidraçaria toda. No fim do mês, às vezes um pouco antes, vem o nosso trocadinho. Isso a gente espera, espera mesmo. Mas um abraço a gente não espera.

Um abraço é coisa estranha, quando vem deste jeito, não é, meu filho? Como não? É bem estranho, sim! Quando é no aniversário da neta, é normal. Ela já cresceu muito, já viu? Olha a foto aqui. Meu nariz, nariz da vovó. Vai votar em quem, meu filho? Vejo essas notícias, não entendo muita coisa. Às vezes é bom ouvir os outros, vai entendendo das coisas, ou pelo menos acha que entende. Não é, meu filho?

Ah, o abraço, como já vou deixando levar? Abraço é coisa boa, não é, meu filho? Abraço bom, abraço de amizade, abraço apertado, abraço de saudade. Coisa boa mesmo. Mas não sei o que deu no rapaz. Acho que foi uma luz divina, sabe? Essas coisas acontecem.

O dia é duro, sabe, meu filho? Todo dia é doído. Os vincos da perna, tem nome isso? Chamo de vinco porque acho bonito falar assim. Dói sim, quando a gente fica mais velha. As prateleiras que eu mais procurava na meninice eram as de doces, depois as de esmalte também, aí vieram as do mercado, dos produtos de limpeza (que unhas que aguentam?), e agora eu só tenho pesadelos com as da farmácia. É muito remédio que precisa, mas com que dinheiro, se o genérico tem um preço tão específico?

Sabe, meu filho, acho tão bonito que as pessoas entendem de política, de dinheiro, de viagem, de tudo um pouco. Essas pessoas tão jovens, né? Como são inteligentes. Ou pelo menos parecem. Essas televisões na internet, que passa tudo e todo mundo escreve, é tudo muito bonito, não é, meu filho? Fico vendo meus netos que moram distante crescerem, é tudo tão de verdade.

Mas eu sigo meu caminho de todo dia, e ontem entrei naquele trem que pego sempre. É meu caminho pra casa, que não se faz diferente. Duas sacolas que eu tava na mão, sabe, meu filho? Verdura e batata. Batata é bom de descascar. A porta foi abrindo e eu fui deixando me levar. As pessoas vão empurrando um pouco, que emburrece a gente, mas vai fazer o quê? Os vincos doem. Caiu uma batata da sacola, mas não deu pra pegar. Depois se reza por ela.

Meu braço ficou um pouco virado, sabe, meu filho? Tava um pouco torcido, mas é normal. Pisaram no meu pé algumas vezes. Nunca dancei muito bem, sabe, meu filho, desde na escola, estou acostumada com isso, então não ligo. É bonito quem sabe dançar, eu acho muito bonito. Mas não essas músicas que dança com a bunda, mas aquelas que dança com o pé mesmo. É tudo tão bonito, não é, meu filho?

E aí que foi que começou uma baita confusão. Essas de sair no jornal, mas que não saem. Era um time de um que não era o time do outro. Aí de repente, uns rapazes bonitos, tudo gente crescida, começam a falar umas besteiras uns pros outros. Não entendo, sei que teve educação, mas parece que toma conta, é uma coisa ruim, sabe, meu filho? Cada palavrão, mas cada um, que não se fala na frente de criança. Começaram a se empurrar. Pisaram no meu pé. Outra batata caiu no chão. Aí caiu alguém, e mais alguém, e eu fui caindo também. Caí em cima da minha batata, meu filho, com as costas. Dói muito essas coisas, quando você cai com as costas em cima da batata. Mas não tenho mais idade pra essas coisas não, meu filho, cair desse jeito.

Pisaram em cima de algumas pessoas na confusão, e acabaram que pisaram também na minha mão. Mão é coisa divina, sabe? A gente alisa a cabeça da criança, faz a blusa e a comida, e faz o matrimônio também. A aliança do meu velho rolou na bagunça. Já andava meio frouxa, mas eu sempre segurava, sabe, meu filho? Apertava a mão forte quando batia a saudade, e a aliança apertava um pouquinho. Não sei se eu é que estava encolhendo, ou é ela que estava espreguiçando. Mas aí ela foi rolando pra embora, pra longe de mim. Fiquei muito triste, meu filho.

Aí esse moço bom me levantou, viu? Me deu a mão, na que não estava pisada. Essa doía muito. As pessoas foram correndo cada uma pro seu lado, muita gente boa sabe, eu sei que tem. Esse menino me deu a mão. Olho bom, rapaz bom, acho que viu algo dentro dos meus olhos, no fundo, da história sofrida. Tem gente que tem medo de dar a mão, sabia, meu filho? Tem gente que tem medo de ajudar. Não é história engraçada, pra colocar em filme ou letra de música?

Pegou as batatas do chão, ajudou com as sacolas. Perguntou ainda se eu estava bem, sabe? Isso é muito bom, quando as pessoas se preocupam com você, mais do que com o político que ganha a eleição, ou o time que ganha o jogo. A gente tá ali, né? Do lado? Se empurrando no trem todo dia. Menino bom.

E foi aí que ele abriu os braços. Meu filho, eu tava com as sacolas na mão, e não consegui abrir também. Dói nos vincos. Meus braços ficaram segurando as sacolas, mas ele me abraçou sabe, abraçou forte, abraço de amigo, de saudade, abraço ferido. Não esperava, sabe, meu filho? Coisa estranha, não me conhecia, mas me deu um abraço bonito. Me brotou umas goteiras nos olhos, porque me doeu muito. As pessoas não se abraçam mais assim, entende? Abraço de pessoa boa.

O trem fez o apito na estação, e esse menino foi embora, sabe? Foi descendo sem falar mais nada, nem explicar o abraço. Só sabia que no fundo ele queria dizer: “a senhora vai ficar bem, e eu vou também”. Eu não esperava aquele abraço, mas voltei mais contente pra casa. Nem sentia mais os vincos.

Às vezes é bom, que a gente sabe que tem gente que se importa. Isso vale muito, viu, meu filho? Não é dinheiro não, tem muito mais valor que isso, é coração.

Vai votar em quem, meu filho? Às vezes a gente precisa conversar pra saber das coisas, sabe? Eu não sei em quem vou votar não, meu filho, não gosto dessas coisas de política. Tudo isso me deixa um pouco confusa. Mas sabe, se esse menino aparecesse com uns números na tela da televisão, eu apertava esses números lá na hora. Acho que apertava sim. A gente precisa gostar de abraçar pessoas assim, sabe, meu filho, desconhecidas, que a gente gosta de verdade mesmo sem conhecer.

Quem sabe, quem sabe. A gente nunca sabe, né, meu filho? Só sabe daquilo que já foi.

Vem cá, me dá um abraço...

E agora vamos, que já chega dessa prosa.

É preciso descascar as batatas.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 20/09/2014
Reeditado em 31/10/2023
Código do texto: T4969455
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.