ATRÁS DAS CORTINAS (à Robin Williams)

À um artista inesquecível.

Robin Williams

***

Sua feição perde vagarosamente a consistência, enquanto a pele desiste de si mesma sobre os ossos do rosto, derretendo, deixando se desgarrar aos poucos. Sua fisionomia, contundente, diz resignada: Amargurado. Os olhos, fechados até então, permitem escapar as primeiras lágrimas. Desolado. As mãos, em vão, tentam lhe tapar a face. Envergonhado.

Quando a música cresce repentinamente, de uma sinfonia suave de violinos para as batidas guturais dos bumbos, seus gritos ecoam no recinto. Irascível. As palavras se contradizem às ideias. Arrogante. Grita cacofonicamente, até que as cordas vocais se recusem a trabalhar. Infausto, suspira profundo. Exausto.

Dá então um largo sorriso. Ambíguo. Esquece-se, de tal para qual, de sua condição cruel, e passa a denotar as belezas de um futuro promissor. Esperançoso. Palavras sem nexo ou direção. Louco.

Neste instante, os silenciosos pés femininos adentram o cenário pelo lado esquerdo e a mão lhe pousa no ombro. Apavorado. Encontro de olhares. Aliviado. Olhos lívidos. Apaixonado.

O beijo técnico, substituído pelo verdadeiro, não lhe permite mentir a si mesmo. Estragaria a própria fantasia, o próprio motor que o faz um dos melhores atores de teatro de seu tempo, e o que lhe levara a interpretar as maiores peças, nos maiores teatros. É mundialmente conhecido.

Vive a verdade de cada emoção, e cada emoção, de verdade, o atinge. Sabe que perderá anos de vida assim, por úlcera fulminante ou ataque do coração, por permitir que seu estado espiritual se altere em tão poucas horas, todos os dias.

Toda inédita vez que se dava o ato final do amor, qualquer seja complexidade da peça, ou a habilidade da atriz, não lhe importava. Ele não interpretava o amor. Ele, verdadeiramente, amava.

Fecham-se as cortinas.

Abrem-se as cortinas.

Aplausos!

Fecham-se as cortinas.

Abrem-se as cortinas.

Mais aplausos!

Por fim, as cortinas se encerram.

Atrás delas, mais nada.

O maior ator de todos os tempos (“Sabe interpretar com se interpretasse a própria vida!”, repetia aquele tabloide de primeira linha), abraça toda a equipe, um a um. Respeitável.

Chamam-lhe para jantar, mas ele não pode. Ocupado. Ignora também os bilhetes e gritos das fãs histéricas na saída. Comprometido. Sorri para todos, dá alguns autógrafos. Simpático.

Entra em um carro, ajeitando sua blusa de couro. Elegante. Pede ao motorista que lhe deixa próximo ao metrô na rua L. Humilde. Ao sair, deixa uma nota gorda. Generoso.

O metrô, vazio e escuro, é seu santuário. O silêncio o envolve. O balanço o embala. O deprime. O enjoa. O desmascara. “Quantos papéis, quantos papéis, quantos ainda tenho que interpretar? Papéis, são papéis e mais nada. Homem triste, mulher amada! Quantos papéis serão nada?”

Neste momento, à badalada fatal de sua abóbora de metal (décimo segundo apito, da décima segunda estação), como nas noites anteriores, ele rasga todos seus papéis, de dentro e de fora do palco. Ateia-lhes fogo e lhes cospe seu ranho. O lobo rasga a pele do cordeiro.

Abre a porta do velho apartamento, cheirando a mofo e comida estragada. Repulsivo. Nenhum recado na caixa postal, nem precisou conferir. Solitário. Todo o dinheiro é engolido por dívidas antigas, e não há mais nada, sabe que não há, ou não quer saber. Miserável. Senta no sofá e joga as roupas ao chão. Intratável.

Liga o canal pornô, o único que assiste. Obsceno. Pensa na mulher do diretor. Pervertido. O som alto da garganta impura, faz o vizinho bater-lhe ao teto. Bate de volta. Baderneiro. Grita obscenidades ainda piores. Grosseiro. Promete dar uma boa lição em seu vizinho. Vingativo. Sente uma vontade, perturbadora, fatal, de sufocar-lhe com o travesseiro. Imoral.

Cansa-se de si mesmo. Covarde. Vadio, atira-se na cama, do quarto escuro, grunhindo palavras inaudíveis. Sombrio.

Não possui mais nada, apenas a si mesmo. Faltam-lhe os papeis.

As cortinas de seus olhos fecham-se.

E então, abrem-se as cortinas.

Fecham-se as cortinas.

Abrem-se as cortinas.

Fecham-se as cortinas.

Abrem-se as cortinas...

Não adianta.

Não há aplausos.

“Fodam-se as cortinas!”

Por fim, as cortinas se encerram.

Atrás delas, mais nada.

Josadarck
Enviado por Josadarck em 12/08/2014
Reeditado em 19/01/2015
Código do texto: T4920142
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