HISTÓRIA DO CERCO A RAVENA

Eu adotara um cabelo mais longo e um bigode simpático naquele outono. Nunca me importei com a

aparência, mas desde que Berenice partiu, tenho construído e desconstruído minha imagem, às vezes

uma franja que vai além da sobrancelha e me tampa os olhos, às vezes um topete tipo bom moço dos

anos 50, no entanto, naquele outono, eu adotara a minha aparência mais singela e definitiva: eu

me tornara, aos trinta anos, o reflexo perfeito do meu avô. Como se este tivesse saído daquelas

velhas fotografias e ganhado novamente existência. E por onde eu passava, assombrava os mais

antigos, porque também nos gestos, no jeito de falar, olhar, andar viam em mim o meu avô em

pessoa.

Eu não fui para a barricada quando Ravena foi sitiada. Eu queria notícias de Berenice mas o cerco

dificultava tudo. Tentei fugir numa ambulância e acabei preso. Os recursos da cidade iam ficando

cada vez mais escassos, não tinham mais como manter a cadeia então nos mandaram para uma fazenda,

um antigo sanatório da cidade, onde plantávamos milho, cana e alguns legumes.

Depois, me lembro que acordei no colo de minha mãe, no banco de

trás do carro, na estrada de

Sabará.

Tocava no rádio do velho Fiat,

"Oh, darling

If you leave me".

Era inverno.

25/04

João Dinato
Enviado por João Dinato em 19/06/2014
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