Os Cantos da Gaiola

[O título deste conto é uma homenagem ao amigo escritor: Eli Coelho]

Sou um prisioneiro, embora não me recorde de ter cometido crime algum, a menos que comer alpiste seja crime. Num belo dia eu procurava algo para comer – os recursos estão mais escassos a cada dia, principalmente no verão que é onde tudo murcha e tudo seca e tudo morre por aqui onde nasci – então vi aquela coisa cheia de grades montada com uma convidativa tigela de grãos e água fresca, não tinha como resistir. Ouvi cantos de outros companheiros por perto, mas não entendia o que eles estavam querendo me dizer, a fome falava mais alto que as suas doces vozes. Era um dia quente e eu estava confuso e com fome, não hesitei, embora lembrasse o que minha mãe sempre dizia sobre me aproximar demais das casas do bicho-homem e enquanto eu fazia a minha farta refeição, as portinhas ao meu redor começaram a se fechar para sempre. Desesperei-me. Já tinha ouvido falar daquilo, só então me dei conta o quanto tinha sido burro em desobedecer aos conselhos de minha mãezinha e mais imprudente ainda por ignorar completamente os conselhos dos meus amigos. Não demorou muito para o bicho-homem aparecer para me buscar e me colocar no que seria a minha nova casa pelo resto de meus dias. Minha casinha engradeada, que logo descobri se chamar gaiola, foi levada a uma sala onde encontrei outras dezenas de iguais a mim, mas de diferentes cores, cantos e tamanhos, presos como eu. Três ou quatro deles nasceram em cativeiro e por isso não sabiam o verdadeiro significado de voar livre.

Nunca me senti tão triste como nos primeiros dias engaiolado. Chorava meus cantos de angústia e desespero por horas a fio, mas aquilo parecia encher o bicho-homem de prazer. A única coisa boa ali era a comida, mas não demorou muito até eu começar a enjoar do alpiste. Comer passou a ser um hábito mecânico, sem sentido. Eu jamais trocaria minha liberdade por toda comida do mundo. Em momentos de maior desespero, batia contra as grades que me aprisionavam e embora elas parecessem frágeis, eu não tinha forças suficientes para causar-lhes o menor dano que fosse e sempre acabava com uma asa machucada ou o bico dolorido. Todos os dias o bicho-homem nos visitava, era desesperador, momentos de horror quando ele estava por perto. Já ouvia histórias de que eles comiam alguns de nossa espécie e sempre que a porta se abria, eu achava que a minha vez havia chegado, jamais me acostumaria com sua presença. Mas na maioria das vezes ele apenas sentava naquela coisa que balança e ficava ouvindo enquanto quase todos, em suas jaulas, gritavam palavras de socorro, ódio, ofensa, misericórdia, mas como sempre, o homem parecia gostar do que ouvia. Não conseguia, por mais que me esforçasse para tentar entender, o porque daquilo. Que prazer havia para uma criatura tirar gratuitamente a liberdade de outras? Chorava com saudades dos meus diante da impiedade do homem. Os outros que ali estavam pareciam já loucos – consequência do cárcere, acredito eu – e eu sabia que meu destino era ficar louco também. Isso me fazia estremecer, mas às vezes eu desejava que acontecesse logo, seria mais suportável se eu não tivesse consciência da desgraça que havia se acometido sobre mim.

Algum tempo se passou, eu acreditava começar a perder a minha sanidade, passava o dia pulando de um lado para o outro e às vezes esquecia quão pequeno era o meu espaço. Estava começando e eu estava um pouco feliz por isso, algo aconteceu, um outro bicho-homem entrou junto com o que havia me deixado ali e ao apontar para mim, deu algumas folhas secas para o meu aprisionador original e depois de me cobrir com um pano branco, senti que estava me locomovendo. Depois de uma escuridão que me fez adormecer, acordei em um lugar novo. Com paredes de cores diferentes. Eu sabia que era noite, mas não consegui mais dormir, temia o que me aconteceria no dia seguinte. Felizmente, não foi pior do que tudo que já me havia acontecido, ali não tinha mais nenhum igual a mim, mas fui colocado numa janela e pela primeira vez em muito tempo, pude ver um pouco da natureza que eu costumava conhecer e amar. Chorei de emoção e cantei, desta vez, de felicidade, pois acreditava que jamais veria a beleza do verde novamente.