Um canto no mundo
A vida é repleta de eventos, laços afetivos e pontos de vista. O olhar analítico, ou seja, o ponto de vista é apontado aos eventos, aos laços afetivos e constrói versões da história, as quais são transmitidas aos ouvintes dando origem às tradições, à cultura. Lena, tendo consciência desses elementos e exercitando o papel de mãe preocupado com a formação do filho, faz periodicamente um levantamento dos fenômenos, laços afetivos e do provável ponto de vista que moldará sua obra mais rica nomeada de Gabriel. O sonho de ser mãe, descartado hoje por várias mulheres, finalmente seria consumado ao lado do raro Pablo, o qual sempre dava força, assistência, momentos de alegria; amava no sentido desconhecido por muitos.
No dia 14 de setembro de 1987, Lena com muito custo, pois estava só naquela manhã, se agacha com a enorme barriga e pega três envelopes dispostos no chão em frente à porta da primeira sala da casa silenciosa. Caminhando aos cômodos internos, separa uma mala direta e uma correspondência do banco na mão direita e as joga sobre a mesa, mas continua com uma carta na mão esquerda, a qual causa sorriso e nostalgia.
O remetente era um amigo do casal, quando isso eles não eram, que respondia pela palavra Camilo e nos tempos de colégio sempre falava de seu inconformismo, vontade de viver aventuras, sentir a vida e refleti-la até o ultimo dia. Música, poesia e os pensamentos de liberdade envolviam o grupo de cinco adolescentes até mesmo na faculdade; anos jamais revividos, acontecimentos, vínculos entre seres humanos embriagados pela utopia e visões de mundo compartilhadas e em formação, fez surgir um mundo mágico. Essa mesma realidade paralela composta por seres eternos e perfeitos por falta de crítica, desmoronou pela viagem entorpecida seguida por muitos na época e o distanciamento se apresentou como única alternativa para os alternativos.
Lena senta na cama e abre o envelope curiosa por notícias sobre os longos anos de distanciamento, e quem sabe, encontraria respostas sobre o que o destino fez de Ana e Pedro. Camilo, com palavras serenas e distintas, mas transmitindo a mesma energia do passado conta os acontecimentos mais marcantes e decisivos dos onze anos corridos. Após os seis anos vivendo e trabalhando na cidade com os pais, período onde enfrentou duramente o vício, encontrou equilíbrio e esperança de existir alimentado por amor e encantado pela vida. Em abril, no dia do aniversário de Camilo, Pedro entra pelo portão da casa dos pais do remetente cantando a música: Preciso Urgentemente de Encontrar um Amigo (Os Mutantes) com o violão velho que distribuía melodias nas praças da cidade na época da escola.
A tinta preta sobre as cinco páginas revelaram o caminho de Ana que assim como os outros havia se libertado da dependência química e hoje morava em uma casa, não longe da pequena cidade do interior, na encosta de uma montanha. Na terra ela planta o que consome e sua biblioteca pulsa vida quando as crianças das fazendas vizinhas vêm aprender literatura. Todos os dias, a amante das letras sobe a montanha e sente a si mesma distante dos afazeres rotineiros. Ao acompanha-la em uma dessas subidas à montanha, junto a Pedro que isso já fazia, Camilo experimentou algo que compartilhou com a antiga amiga através da caneta.
“Olhando do alto desta montanha, posso ver a beleza do azul infinito que paira sobre nossas cabeças e que não contemplamos quando estamos ocupados aí em baixo. Percebo que sinto, graças à sensibilidade da minha pele, a brisa fresca e feroz que também me permite abastecer os pulmões calejados por minhas obras e extremismos.
Os pássaros transeuntes convictos de seus destinos de reprodução, caça ao pão e enigmática imigração, são distintos se comparados a nós – nomeados de civilizados, mas com instintos e impulsos destruidores do mecanismo corporal e do lar comum. Ao contrario do observador crítico e egocêntrico, o amigo planador de bico fino sabe seu papel na peça que não permite ensaios. Ele não se ilude com banalidades, não omite suas manchas e não se prende às pedras que a lei soberana da gravidade impede de ser levadas ao azul anil.
Sou levado a viver o que sou e buscar saber o que é isso que sou levado a viver. Fecho os meus olhos e não sinto o mundo externo, mas apenas o vazio, a princípio, que me faz ser o que sou agora; desconhecedor de mim.”
A vida é repleta de eventos, laços afetivos e pontos de vista. Lena, como mãe preocupada que é, encontrou o canto no mundo onde Gabriel provavelmente não viverá a angústia de fazer tanto e não ser nada. É bem provável que o raro Pablo tenha lá a liberdade de ensinar como ser raro ao novo habitante do planeta que amará as mulheres como elas merecem ser amadas. Lena encontrou a Casa no Campo cantada por Elis Regina.